Prefácio
Quando comecei a escrever para cinema e televisão, uma das primeiras lições que tive é que devemos evitar as coincidências, que essas situações enfraquecem a narrativa, que mostram falta de criatividade por parte do argumentista, pondo em causa a verossimilhança. No entanto, a minha vida tem sido marcada por felizes coincidências e também o convite para escrever este prefácio foi uma delas. A dissertação do Vítor Madaíl Herdeiro chegou-me pelas mãos do Marcos Cardão, um historiador e amigo de infância, que havia sido o seu arguente na defesa para a obtenção do grau de mestre, durante a rodagem da série Glória.
A RARET parece ter sido um segredo bem guardado e, de um fôlego, duas obras de natureza aparentemente diferente nasciam sob um mesmo tema que tinha estado na sombra demasiados anos. É difícil compreender como um complexo de duzentos hectares, onde trabalhavam cerca de quinhentas pessoas, para além das muitas crianças e jovens que frequentavam a escola, e que funcionou durante mais de quarenta anos, poderia ser desconhecido da opinião pública ou mesmo dos historiadores que se dedicam à investigação da nossa história recente.
Como cresci com estas histórias assumi com naturalidade que era do conhecimento público uma situação que vim a perceber ser tão extraordinariamente complexa e desconhecida da generalidade da minha geração, como das gerações que ainda têm memória desse país cinzento da ditadura Salazarista. A minha família materna trabalhou na Emissora Nacional, cresci naqueles corredores, assisti a muitas emissões de programas, concertos de orquestras que eram gravados para a Antena 2, sentado num canto do antigo estúdio da Rua do Quelhas, transformado agora em condomínio. Ainda hoje quando entro num estúdio de rádio sou assaltado por essas recordações e pelas histórias que o meu avô contava sobre o Serão para Trabalhadores, o Festival da Canção Portuguesa ou a Volta a Portugal em Bicicleta. Mas outras histórias surgiam nessas conversas sobre a rádio, e uma delas era recorrente, as visitas à cidade americana no Ribatejo, a RARET. Foram as suas muitas histórias o gérmen do que viria a ser a série Glória, que é uma obra ficcional, mas ancorada numa realidade que é um fresco da sociedade da época, das suas estruturas sociais, mentais, das dinâmicas familiares e de género.
Então, como é que se explica o desconhecimento generalizado deste centro retransmissor no nosso país e do papel relevante que teve na guerra hertziana que fez parte das estratégias de propaganda e contra-propaganda entre os Estados Unidos e a União Soviética na década de 1950 e seguintes? Esta é uma pergunta que fiz repetidamente a mim próprio durante a investigação que levei a cabo durante mais de dois anos, uma viagem que me levou por arquivos públicos nacionais e estrangeiros, que me permitiu conversar com ex-funcionários e percorrer os edifícios agora devolutos da RARET onde muita documentação ainda jaz pelas divisões.
A obra que agora têm nas mãos construiu-se de forma diversa, como um objecto de investigação, um trabalho académico rigoroso na forma como trabalha as fontes, como problematiza o tema cruzando áreas como a diplomacia, propaganda, rádio e Guerra Fria. Mas o trabalho académico só cumpre verdadeiramente o seu propósito quando sai das paredes da universidade para o espaço público. E aqui encontram-se os nossos caminhos, naquilo que aparentemente não tem ligação, o mundo do historiador e o mundo do argumentista, realidade e ficção, polos opostos ou simplesmente duas formas diferentes de tentar captar as possibilidades do que foi o passado. No meu entender, a ficção, tal como a historiografia, terá um papel importante na criação da consciência histórica e da memória colectiva, o que nem sempre é uma construção pacífica porque invariáveis vezes questionam as nossas crenças e (pre)conceitos.
De forma diferente, em simultâneo, e sem sabermos, trilhámos os nossos caminhos para trazer ao conhecimento do público a história do centro retransmissor da Rádio Free Europe, do papel que a rádio teve na guerra de propaganda no período da Guerra Fria, da relação institucional entre Portugal e os Estados Unidos, mas também, numa dimensão menos institucional, do que foi a presença americana naquela comunidade rural que vivia em grande isolamento.
Espero que leiam a obra com o entusiasmo que merece, porque a historiografia nasce nos arquivos, nas bibliotecas, nos centros de investigação, mas o seu propósito só é completamente concretizado quando chega a todos, porque um historiador também deve ser um divulgador. E esta obra que agora vão ler tem o rigor a que a investigação histórica obriga, mas também a capacidade para comunicar com o público não especialista, tornando-se um discurso e uma reflexão sobre o país que fomos e o papel que tivemos na Guerra Fria.
Pedro Lopes - Autor de Glória
Introdução
É objectivo desta investigação analisar o envolvimento das autoridades portuguesas com o National Committee for a Free Europe (NCFE) − organização anti-comunista fundada nos EUA em 1949 − e cuja criação se ficou a dever à acção combinada do Departamento de Estado e da Central Intelligence Agency (CIA). A materialização do acordo firmado entre as autoridades portuguesas e o National Committee for a Free Europe, em 1951, tinha como objectivo a construção de um centro retransmissor da Radio Free Europe (RFE) em território português, destinado à difusão de emissões radiofónicas para os países da Cortina de Ferro. O período cronológico aqui analisado abarca um total de doze anos, desde 1951, data da assinatura do contrato de concessão entre as autoridades portuguesas e a RARET, e estende-se até 1963, data da renovação do mesmo, após um período de tensão nas relações luso-americanas no início da década de 1960.
A aliança entre as autoridades portuguesas e o National Committee for a Free Europe viabilizou a utilização do espaço radioeléctrico português, ao mesmo tempo que colocou o conhecimento técnico e a mão-de-obra nacionais ao serviço dos fins e objectivos definidos pela RFE. A emissora norte-americana retransmitiu a partir de Portugal os conteúdos radiofónicos, produzidos em Nova Iorque e em Munique, ao longo de quarenta e cinco anos, ou seja, até 1996.
O presente livro visa contribuir para um aprofundamento dos estudos acerca das relações luso-americanas, tomando como objecto de estudo a parceria firmada entre as autoridades portuguesas e o National Committee for a Free Europe, posteriormente designado Free Europe Committee (FEC) e a Radio Free Europe, nos primórdios da Guerra Fria. A presença do NCFE em Portugal por mais de quatro décadas, a par da ausência de estudos sobre o tema de um ponto de vista português, justifica o interesse e estimula a curiosidade sobre uma dimensão pouco explorada do conflito ideológico que marcou a segunda metade do século XX − a utilização das rádios ao serviço dos estados enquanto veículos de comunicação de massas.
A participação de Portugal nesta aliança anti-comunista obrigou à constituição de uma empresa − a RARET − especialmente vocacionada para albergar os objectivos da Radio Free Europe, funcionando como subsidiária da emissora norte-americana em Portugal.
A Sociedade de Anónima de Rádio Retransmissão SARL, popularmente identificada como a «rádio dos americanos», e, após o 25 de Abril de 1974, como a «rádio da CIA», passou à história como RARET. Tinha a sede em Lisboa, no edifício da Garagem Monumental, na zona do Areeiro, e centros receptores e retransmissores na Maxoqueira e na Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos. Para trás ficou uma memória física, pontuada por antenas e edifícios, em conjunto com uma memória vivida por todos aqueles que aí trabalharam e que agora convém resgatar, acrescentando mais um capítulo à história das relações luso-americanas na segunda metade do século XX.
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