Prefácio

Quando comecei a escrever para cinema e televisão, uma das primeiras lições que tive é que devemos evitar as coincidências, que essas situações enfraquecem a narrativa, que mostram falta de criatividade por parte do argumentista, pondo em causa a verossimilhança. No entanto, a minha vida tem sido marcada por felizes coincidências e também o convite para escrever este prefácio foi uma delas. A dissertação do Vítor Madaíl Herdeiro chegou-me pelas mãos do Marcos Cardão, um historiador e amigo de infância, que havia sido o seu arguente na defesa para a obtenção do grau de mestre, durante a rodagem da série Glória.

A RARET parece ter sido um segredo bem guardado e, de um fôlego, duas obras de natureza aparentemente diferente nasciam sob um mesmo tema que tinha estado na sombra demasiados anos. É difícil compreender como um complexo de duzentos hectares, onde trabalhavam cerca de quinhentas pessoas, para além das muitas crianças e jovens que frequentavam a escola, e que funcionou durante mais de quarenta anos, poderia ser desconhecido da opinião pública ou mesmo dos historiadores que se dedicam à investigação da nossa história recente.

Em dezembro recebemos Tânia Ganho

Tânia Ganho é a convidada do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 16 de dezembro, pelas 21h.

Iremos conversar sobre "Apneia", editado em 2020 pela Casa das Letras, assim como sobre outras das suas obras.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Além disso, pode ficar a par de tudo o que acontece no clube de leitura através deste link.

Como cresci com estas histórias assumi com naturalidade que era do conhecimento público uma situação que vim a perceber ser tão extraordinariamente complexa e desconhecida da generalidade da minha geração, como das gerações que ainda têm memória desse país cinzento da ditadura Salazarista. A minha família materna trabalhou na Emissora Nacional, cresci naqueles corredores, assisti a muitas emissões de programas, concertos de orquestras que eram gravados para a Antena 2, sentado num canto do antigo estúdio da Rua do Quelhas, transformado agora em condomínio. Ainda hoje quando entro num estúdio de rádio sou assaltado por essas recordações e pelas histórias que o meu avô contava sobre o Serão para Trabalhadores, o Festival da Canção Portuguesa ou a Volta a Portugal em Bicicleta. Mas outras histórias surgiam nessas conversas sobre a rádio, e uma delas era recorrente, as visitas à cidade americana no Ribatejo, a RARET. Foram as suas muitas histórias o gérmen do que viria a ser a série Glória, que é uma obra ficcional, mas ancorada numa realidade que é um fresco da sociedade da época, das suas estruturas sociais, mentais, das dinâmicas familiares e de género.

Então, como é que se explica o desconhecimento generalizado deste centro retransmissor no nosso país e do papel relevante que teve na guerra hertziana que fez parte das estratégias de propaganda e contra-propaganda entre os Estados Unidos e a União Soviética na década de 1950 e seguintes? Esta é uma pergunta que fiz repetidamente a mim próprio durante a investigação que levei a cabo durante mais de dois anos, uma viagem que me levou por arquivos públicos nacionais e estrangeiros, que me permitiu conversar com ex-funcionários e percorrer os edifícios agora devolutos da RARET onde muita documentação ainda jaz pelas divisões.

A obra que agora têm nas mãos construiu-se de forma diversa, como um objecto de investigação, um trabalho académico rigoroso na forma como trabalha as fontes, como problematiza o tema cruzando áreas como a diplomacia, propaganda, rádio e Guerra Fria. Mas o trabalho académico só cumpre verdadeiramente o seu propósito quando sai das paredes da universidade para o espaço público. E aqui encontram-se os nossos caminhos, naquilo que aparentemente não tem ligação, o mundo do historiador e o mundo do argumentista, realidade e ficção, polos opostos ou simplesmente duas formas diferentes de tentar captar as possibilidades do que foi o passado. No meu entender, a ficção, tal como a historiografia, terá um papel importante na criação da consciência histórica e da memória colectiva, o que nem sempre é uma construção pacífica porque invariáveis vezes questionam as nossas crenças e (pre)conceitos.

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De forma diferente, em simultâneo, e sem sabermos, trilhámos os nossos caminhos para trazer ao conhecimento do público a história do centro retransmissor da Rádio Free Europe, do papel que a rádio teve na guerra de propaganda no período da Guerra Fria, da relação institucional entre Portugal e os Estados Unidos, mas também, numa dimensão menos institucional, do que foi a presença americana naquela comunidade rural que vivia em grande isolamento.

Espero que leiam a obra com o entusiasmo que merece, porque a historiografia nasce nos arquivos, nas bibliotecas, nos centros de investigação, mas o seu propósito só é completamente concretizado quando chega a todos, porque um historiador também deve ser um divulgador. E esta obra que agora vão ler tem o rigor a que a investigação histórica obriga, mas também a capacidade para comunicar com o público não especialista, tornando-se um discurso e uma reflexão sobre o país que fomos e o papel que tivemos na Guerra Fria.

Pedro Lopes - Autor de Glória

Introdução

É objectivo desta investigação analisar o envolvimento das autoridades portuguesas com o National Committee for a Free Europe (NCFE) − organização anti-comunista fundada nos EUA em 1949 − e cuja criação se ficou a dever à acção combinada do Departamento de Estado e da Central Intelligence Agency (CIA). A materialização do acordo firmado entre as autoridades portuguesas e o National Committee for a Free Europe, em 1951, tinha como objectivo a construção de um centro retransmissor da Radio Free Europe (RFE) em território português, destinado à difusão de emissões radiofónicas para os países da Cortina de Ferro. O período cronológico aqui analisado abarca um total de doze anos, desde 1951, data da assinatura do contrato de concessão entre as autoridades portuguesas e a RARET, e estende-se até 1963, data da renovação do mesmo, após um período de tensão nas relações luso-americanas no início da década de 1960.

RARET - A Guerra Fria Combatida a Partir da Charneca Ribatejana
RARET - A Guerra Fria Combatida a Partir da Charneca Ribatejana créditos: Edições 70

Livro: “RARET - A Guerra Fria Combatida a Partir da Charneca Ribatejana"

Autor: Vitor Madail Herdeiro

Editora: Edições 70

Data de lançamento: 9 de dezembro

Preço: €13,41

A aliança entre as autoridades portuguesas e o National Committee for a Free Europe viabilizou a utilização do espaço radioeléctrico português, ao mesmo tempo que colocou o conhecimento técnico e a mão-de-obra nacionais ao serviço dos fins e objectivos definidos pela RFE. A emissora norte-americana retransmitiu a partir de Portugal os conteúdos radiofónicos, produzidos em Nova Iorque e em Munique, ao longo de quarenta e cinco anos, ou seja, até 1996.

O presente livro visa contribuir para um aprofundamento dos estudos acerca das relações luso-americanas, tomando como objecto de estudo a parceria firmada entre as autoridades portuguesas e o National Committee for a Free Europe, posteriormente designado Free Europe Committee (FEC) e a Radio Free Europe, nos primórdios da Guerra Fria. A presença do NCFE em Portugal por mais de quatro décadas, a par da ausência de estudos sobre o tema de um ponto de vista português, justifica o interesse e estimula a curiosidade sobre uma dimensão pouco explorada do conflito ideológico que marcou a segunda metade do século XX − a utilização das rádios ao serviço dos estados enquanto veículos de comunicação de massas.

A participação de Portugal nesta aliança anti-comunista obrigou à constituição de uma empresa − a RARET − especialmente vocacionada para albergar os objectivos da Radio Free Europe, funcionando como subsidiária da emissora norte-americana em Portugal.

A Sociedade de Anónima de Rádio Retransmissão SARL, popularmente identificada como a «rádio dos americanos», e, após o 25 de Abril de 1974, como a «rádio da CIA», passou à história como RARET. Tinha a sede em Lisboa, no edifício da Garagem Monumental, na zona do Areeiro, e centros receptores e retransmissores na Maxoqueira e na Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos. Para trás ficou uma memória física, pontuada por antenas e edifícios, em conjunto com uma memória vivida por todos aqueles que aí trabalharam e que agora convém resgatar, acrescentando mais um capítulo à história das relações luso-americanas na segunda metade do século XX.