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Naquela rua não faltavam pessoas e casas a precisar de conserto.

Quando tudo aconteceu, já elas estavam nas últimas: Piedade e a casa, periclitando nuns oitenta e tal anos mal contados, sem maquilhagem que disfarçasse as rugas, nem as imperfeições de raiz, nem nenhum dos massacres que o tempo deixava à mostra, esperando a morte como quem aguardava vez numa fila.

As famílias são uma espécie de manta de retalhos, cada um com o seu feitio, é o que lhe dá graça; difícil é encaixá-los na teia do croché com uma certa harmonia e consistência. Piedade sempre mantivera a família unida, fazia-o sem se notarem falhas, remendos ou pontas soltas; puxava daqui, ajeitava dali, arquitetava padrões e espaços, enquanto os emparelhava a todos no cenário. Mas o tempo e as mudanças haviam-lhe trocado as voltas.

É Desta Que Leio Isto: Em maio recebemos Teolinda Gersão

Há muito esgotado no mercado português, "O Cavalo de Sol" regressa às livrarias pela mão da Porto Editora, razão para endereçarmos o convite a Teolinda Gersão para o encontro deste mês do É Desta Que Leio Isto, clube de leitura da MadreMedia. Editado em 1984, foi distinguido com o Prémio de Ficção do PEN Clube em 1989, versando sobre o tabu da homossexualidade nos anos 30 do século XX.

Autora de mais de 20 livros, Teolinda Gersão é uma das grandes escritoras portuguesas da atualidade, tendo sido galardoada com alguns dos mais prestigiados prémios literários nacionais, nomeadamente o Grande Prémio de Romance e Novela da APE, o Prémio do PEN Clube (1981 e 1989), o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco, o Prémio Fernando Namora (1999 e 2015) e o Prémio Literário Vergílio Ferreira 2017 pelo conjunto da sua obra.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

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As visitas do filho e dos netos iam rareando como os últimos pingos de chuva caídos do beiral nos dias pardos. As almoçaradas ruidosas de domingo que impregnavam o ar de amor tinham encolhido, tornando-se avulsas, camufladas de pequenos silêncios, e certo dia Piedade dera por si a comer voltada para os púcaros de latão adormecidos na parede da cozinha, confraternizando com louças e tarecos.

Começara por acaso, como se pensasse em voz alta – acontecia a tanta gente – mas depois tornara-se um refúgio. Tratava a casa como uma companheira de longa data, com quem vivera alegrias e desassossegos que trouxeram o rigor de muitos invernos, partilhando gracejos, mágoas e confidências que não estavam ao alcance de mais ninguém. Não que tivesse perdido o tino – falar sozinho não é sintoma de demência – e Piedade sabia bem que a casa era feita de pedra, tijolo e ferro, mas algumas coisas ganham alma de tanto as pessoas se afeiçoarem a elas.

Antes de tudo acontecer, eram uma manta de retalhos imperfeitos – cada um tinha o seu lugar, a sua história num carreiro de linhas. Até que o medo e os segredos os foram desmanchando ponto a ponto.

E as famílias desfeitas não se reparam. Uma vez por outra, reinventam-se.

2

A casa nascera numa das zonas mais ilustres da Baixa do Porto, em que as fachadas dos edifícios floresciam como árvores de pedra. Muito antes dos prédios novos, dos bares, da música de rua, do barulho das máquinas, das gruas coladas ao céu, de os tróleis arranharem o chão, dos comedores de sonhos, de os velhos se tornarem ainda mais velhos.

De fora parecia um pouco simplória, semblante anémico de azulejos caídos, equilibrada em três andares esguios, com varandins debruçados sobre o passeio. O mais importante estava lá dentro: lembranças, saudades, pequenas relíquias que não se viam.

No rés do chão ficava a sala de estar e o quarto de costura, despido dos moldes e tecidos de outrora, onde repousava a velha máquina Singer que Piedade já só usava para fazer uns arranjos de vez em quando. A garganta do vestíbulo estendia-se ao quintal nas traseiras de que agora se ocupavam as ervas daninhas, os vasos mortos, um bidão atulhado de inutilidades e uma escadaria enferrujada. Só o tanque se mantinha quase intacto, vazio e entranhado de limo, resignado ao abandono.

A escada principal era íngreme e queixosa, escoltada por meia dúzia de quadros em que as fúrias do mar rasavam as paredes lascadas. Da claraboia que rasgava o telhado trespassava uma luz fria, expondo encantos e feridas. No primeiro andar, havia uma casa de banho com uma cara antiga – à exceção do cilindro e da máquina de lavar roupa que a necessidade trouxera –, uma saleta de arrumos onde não entrava o sol e quartos forrados de flores mortas com portadas quase sempre corridas em que conviviam móveis, bibelôs e velharias. Vindo os ímpetos da invernia, os tetos altos enchiam-se de pequenas barrigas de humidade de onde vertiam uns tímidos pingos de chuva e o estuque ia cobrindo a mobília de fiapos de neve por entre o rendilhado dos naperons. Era preciso subir ao último piso para chegar à cozinha e à sala de jantar que, nesse tempo, tinha pouca serventia. A cozinha era morna e acolhedora, com cheiro de compota fervida ou refogado a estalar no tacho. Gervásio, o guardador da casa, morava no vão da chaminé por cima do fogão. Pelo menos era o que a avó antigamente apregoava para que as crianças rapassem o prato da açorda ou do peixe cozido com grelos, e bastava um sussurro do vento para lhes gerar um frio na espinha. Acima da banca, do louceiro e dos canecos enganchados à parede, uma mansarda ascendia ao telhado onde, dantes, a antena da televisão sobrevoava a casa como um inseto gigante. A chuva e a ventania entortavam-na quando menos convinha, arrastando a imagem do ecrã com um barulho invernoso; e, nessas ocasiões, o avô empoleirava-se para lhe afinar as hastes conforme as instruções que a mulher lhe ia dando.

Maria Rosa, a mais ousada dos dois filhos gémeos, não se impressionava com alturas. Quando se via sozinha, transpunha a portinhola, pisava a escama de telhas que conhecia pelo tato e sentava-se no beiral sustentado por uma cornija de pedra. De cima, via perfeitamente o quintal e a água leitosa no tanque onde a roupa branca corava ao sol; olhando em redor, os chapéus aprumados das outras casas, umas mais altas do que as outras, como as pessoas; a abóbada da Igreja de Nossa Senhora da Vitória e até os torreões da Sé; só não alcançava os salpicos de luz no rio.

Mas a medula da casa era a saleta de arrumos, um sepulcro de tralha, memórias e preciosidades a que quase só Piedade dava valor. Principalmente a arca onde a sua mãe guardava os linhos, os melhores panos de renda e a manta com a qual embrulhara pela primeira vez os bebés que perdera. Para Piedade eram fantasmas, porque não os conhecera e ninguém falava neles. Certa vez, em pequena, fizera do baú esconderijo e ainda levara duas palmadas por encardir o enxoval com a crosta de sujidade que trazia nos pés. A mãe sentava-se, levantava a tampa da arca e ficava a olhar lá para dentro com um ar ausente, sem tocar nas roupas. Só muitos anos mais tarde, Piedade compreendeu que não existiam palavras nem lágrimas onde coubessem determinados tipos de dor, e antes houvesse um baú onde se pudessem deixar. A mãe não chorava à sua frente, nem mesmo quando pressentira a morte como quem reconhecia o cheiro de sopa azeda.

– Estou para morrer – dissera-lhe, franzindo o nariz, com os olhos postos num cadeirão vazio.

E no dia seguinte morrera.

O pai estourara as poupanças em bordéis esconsos e maus negócios, deixando-lhe somente a casa e a promessa duvidosa de uma riqueza que nunca aparecera e a que quase ninguém dava crédito. Não lhes teria mudado a sorte.

Piedade morava entre Agustina, mais irmã do que amiga, e um prédio devoluto em guerra de partilhas. Não sobrava muita gente dali para falar do passado. Tirando meia dúzia de idosos que se recusavam a facilitar a vida à morte, os vizinhos mais antigos já mal saíam de casa, a não ser para ir ao médico ou aviar as receitas na farmácia. Faltavam-lhes as forças e a vontade e, ultimamente, também a coragem. De vez em quando vinham à janela para arejar as bochechas de giz, trocar desconsolos ou entreter-se com a vista que lá fora sempre ia mudando e lhes devolvia algum ânimo. Mas as casas chamavam-nos logo para dentro. Quando estavam um dia sem aparecer, a dona da retrosaria e os moradores mais desembaraçados batiam-lhes à porta, aflitos, não fosse algum morrer e ficar para lá a decompor-se até que se desse pelo cheiro, como acontecera com a pobre Emília uns anos antes.

Muito poucos para que se pudessem esquecer.

3

A febre do alojamento local instalou o pandemónio. Depois de os comedores de sonhos andarem por ali que nem perdigueiros, os velhos estremeceram com as suas casas degradadas e nada voltou ao que era.

Havia pouco mais de dois anos, já o turismo pulsava na cidade e a Baixa se mostrava de cara lavada, mais segura, airosa, tão bonita de se ver, até o ruído se tornara agradável de passagem. Tantos hotéis e seus parentes; restaurantes e sombrinhas plantadas na calçada como canas de bambu; lojas novas à procura do antigamente; filas que se alongavam nos passeios; o português adormecido na boca; casas a darem o último sopro enquanto as congéneres abastadas ressuscitavam sem rugas nem dores, com os andaimes a treparem-lhes pela espinha a um ritmo alucinante.

A Baixa era uma melodia vibrante cheia de acordes novos. Redescobertos os encantos do Porto antigo, veio a epidemia. Da construção, dos investimentos, das cirurgias plásticas, dos senhorios ávidos a empurrarem os inquilinos como estorvos em direção à rua, primeiro com jeitinho, depois a qualquer custo; chutando-os como pedras no caminho. Demorando-se na conversa enquanto perguntavam disfarçadamente

– Então, e essa saúde, hã?

sem quererem saber da saúde para nada, como era óbvio, mortinhos por que eles estivessem mortinhos, poupando-se à lengalenga do colesterol; das contas na farmácia; do reumático; das insónias; das graças dos netos e bisnetos repetidas inúmeras vezes porque a cabeça já não era a mesma; das caras presas nas molduras que os observavam de olhos parados.

Agustina não foi exceção.

Três Mulheres no Beiral
créditos: Oficina do Livro

Livro: Três Mulheres no Beiral

Autor: Susana Piedade

Editora: Oficina do Livro

Preço: 13,95 €

Ela e Piedade só se largavam quando lhes chegavam gripes e bronquites, e cada uma tinha a chave de casa da outra para alguma eventualidade. Os anos não tinham levado tudo a Agustina, mas eram sobretudo os olhos azuis que mais falavam por ela, tão vivos que se destacavam até nas fotografias desmaiadas que decoravam móveis e paredes. Era uma inquilina exemplar e nunca se atrasara com a renda; no dia combinado lá estava ela à espera do senhorio com as notas dobradas no bolso do avental, sem refilar dos aumentos nem das obras por fazer, para não o ouvir resmungar que por tão pouco mais valia ter o prédio vazio. Nascera naquela casa e ali ficara mesmo depois de lhe terem morrido os pais; cada embrião que o corpo rejeitara; o marido; até não lhe restar ninguém. Comprara a morte a prestações – expressão que adotava com a maior seriedade – a uma agência funerária, para deixar tudo tratado quando chegasse a hora, porque morrer ainda ficava caro e não queria legar despesas nem ser descartada de qualquer forma num buraco. Vivia sozinha havia mais de quarenta anos – já só contava as décadas – sem outra companhia que não fossem os amigos pegados e os gatos sem dono que vinham ter à sua porta. Como lhes enchia a barriga de migas e restos, só lhe desamparavam a entrada quando as gaivotas os afugentavam à bicada. O seu grande medo era perecer num lar malcheiroso onde arrebanhavam os velhos como gado, ou numa cama gélida de hospital entre desconhecidos.

A solidão assustava-a, não a morte.

E não era a única: no prédio em frente ao de Piedade, Carlota tinha uma história quase igual; mais adiante, o senhor Alberto; e até o empregado da loja de têxteis no rés do chão de um edifício decrépito recebera uma proposta estrondosa para se ir embora ao fim de anos de serviço; a Baixa estava cheia destes casos. As pessoas apegavam-se às casas, aos costumes e aos lugares; algumas viviam ali havia tanto tempo que faziam contas de cabeça para se lembrarem, e talvez morressem como as flores se as arrancassem de lá.

No começo da primavera, Agustina saiu de casa a arrastar as pantufas e, cheia de tremeliques, bateu à porta da amiga para lhe contar que o senhorio vendera o imóvel e os novos proprietários queriam despejá-la à pressa. Não faltavam imobiliárias, sociedades e Fundos a comprarem casas e lojas a granel por aquelas bandas. Mas uns levavam as investidas ao limite. Primeiro, deixaram-lhe um recado na caixa do correio. Depois, voltaram com promessas e papéis, garantindo-lhe um apartamento jeitoso não muito longe, mais aconchegante, que era uma forma de dizer assim para o pequeno, nem os móveis lá cabiam; mas, quando ela recusou, trocaram logo as simpatias por ameaças e incumbiram dois brutamontes de lhe passar a mensagem. Quando lhe cortaram a eletricidade para a amedrontar, andou à luz de velas e lamparinas a óleo, sempre com medo de pegar fogo à casa, sobressaltando-se só de ouvir o batente ou a serenata dos gatos esfomeados à porta.

Assim nascia o terror.

O senhor Alberto até pagara a um homem com corpanzil para o proteger, mas depois andava à míngua o resto do mês, só pele e osso, a pedinchar a sopa dos pobres, remédios a fiado, e não resistiu à miséria por muito tempo. Restava-lhe a dignidade.

Os moradores ficavam sempre mais tranquilos com as visitas da assistente social que os acompanhava, uma cara amiga, pois o bem que lhes fazia ia muito além das suas funções, mas não chegava para a abundância de queixas que o advogado da associação ia empilhando sobre a mesa. A lei protegia os inquilinos mais antigos, mas os tiranos arranjavam formas de a contornar.

Nem Piedade se livrou da praga.

Começou também com uns bilhetinhos metidos na caixa de correio, brotavam como cogumelos venenosos. Depois do primeiro, ela apanhava-os e deitava-os ao lixo sem os ler. Talvez os intrusos julgassem que a vergavam facilmente; naquela idade, as pessoas não precisavam de muito para morrer, e para eles tanto dava, mais velho, menos velho. Uma vez bateram-lhe à porta com uma conversa fiada de vendedores de Bíblias, como quem anuncia a chegada do Salvador, mas Piedade estava de sobreaviso e percebeu logo ao que iam. Fez-se de desentendida e despachou-os em três tempos, porque, ao contrário da maior parte dos vizinhos, arrendatários tratados abaixo de cão, a casa pertencia-lhe. Julgou que o assunto ficara arrumado, mas eles voltaram. No começo, sozinhos, de mãos vazias, como se lá tivessem passado por acaso,

– Bom dia, minha senhora, como vai?

cheios de salamaleques, só os olhos a espreitarem pelo postigo entristecido, sorrisos desafinados. Pouco depois, sobrevoavam a casa como abutres; as caras mudavam, mas o paleio era o mesmo. Vinham aos pares ou em grupo, fatos e gravatas com voz grossa, carregando papéis numa pastinha polida, uma caneta a jeito para o caso de a persuadirem com dois dedos de conversa, apontando-lhe as linhas com uma cruz como se ela fosse parva.

– É só assinar.

Já sem se esforçarem tanto por agradar, retocando os argumentos para parecerem diferentes:

– Diga lá, minha senhora, para que quer este casarão na sua idade?

– Deve ser uma carga de trabalhos.

– E a família sem ligar patavina a isto, não é?

– Qualquer dia fica para aqui tudo ao abandono.

Já a primavera mudava de têmpera, e eles sempre de volta da mesma lengalenga, menos cerimoniosos do que dantes, espetando o pé na entrada para não levarem com a porta na cara, as palavras mais pesadas, mais difíceis de se entenderem, línguas ásperas que ela nunca aprendera. Certa tarde, apareceu um chinês com ar de importante escoltado por um par de fantoches. O tradutor coçava o pescoço enquanto ia pondo as frases em português, desviando o olhar, à medida que o do lado sublinhava as partes importantes como um marcador. Muniam-se de certezas, projetos, números; tudo tinha um preço e o dinheiro mudava mentes e corações. Não atribuíam importância às pessoas, nem ao que as fincava ali como árvores centenárias. Mais velho, menos velho; se os limpassem de lá de uma vez por todas, era um ver se te avias.

Os lugares pareciam-se cada vez menos com as gentes dali, como se deixassem de lhes pertencer; faltava-lhes a alma, a rusticidade, os modos brejeiros, as expressões despudoradas, as vozes entrelaçadas com sotaque do Norte. Recriavam-se cenários bonitos, embora estéreis, desenraizados. Andavam todos à procura do antigo para o trocar por coisas novas a imitar o antigo.

Muitos tentaram a sorte, uma enchente movida pela cobiça. A avó recebeu propostas com mais dígitos do que os que podia contar de cabeça. Não faltavam investidores à procura de um edifício para recuperar, alguns viviam a esquadrinhar ruínas para encher os bolsos, e até os remediados se enchiam de sonhos ao olharem para o casario. As rendas estavam pela hora da morte, porém, havia sempre alguém disposto a pagar uma fortuna por uma caixa de fósforos no coração da cidade e melhor ainda se tivesse vista para o Douro, deslumbrante em qualquer estação.

Mas Piedade resistiu. Não lhe fazia falta dinheiro para comer nem para aquecer os pés no inverno, e eram sobretudo os afetos que mais pesavam na decisão. A casa não se resumia a um teto, uma comodidade, um mero imóvel. Era o seu lugar, não tinha nem queria outro. Custava-lhe imaginar que esventrassem a sua velha companheira para lhe darem uma cara nova que jamais reconheceria se a voltasse a ver, que não lhe lembraria nenhuma tropelia da infância, a mobília que herdara dos pais, o cheiro das madeiras, o baú de recordações, a sua festa de casamento, o nascimento dos filhos, as correrias dos netos, as histórias e as gargalhadas, e as lágrimas também; absolutamente nada.

Queria acabar ali os seus dias.

E há que respeitar os desejos dos velhos, que já não devem ter muitos.

Mas o inesperado arranja sempre maneira de se meter.