Dez espaços, entre o Porto e Matosinhos, recebem, entre 9 e 18 de outubro, mais uma edição do Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP), que regressa com um total de 25 apresentações que acontecem em dez salas de espetáculo do Porto e de Matosinhos, limitadas a metade da capacidade. Explorando os “Limites do Humano", a edição de 2020 propõe-se indagar sobre os discursos e pensamentos nas ciências e na política, com uma programação que inclui ainda um 'concerto-performance', três 'workshops' 'online' e as duas 'masterclasses'

Preparada no meio de uma pandemia, a programação segue como estava planeada antes da covid-19. Igor Gandra, diretor artístico do FIMP, conta como o vírus, em vez de uma reformulação, trouxe antes uma nova maneira de olhar para problemas antigos. O objetivo foi “manter o programa como ele estava”, por ser “um projeto que foi desenhado a dois anos e que fazia sentido que se mantivesse”. “Ao mesmo tempo, sinto é que a realidade acabou por tomar conta das coisas de uma forma que nós não podíamos imaginar no início. Muitas destas questões ganharam uma atualidade diferente, muitas das questões dos espetáculos e os projetos que estão aqui presentes. Acho que a nossa leitura sobre eles é que se atualizou em função desta realidade — e isso é muito interessante de constatar”, explica.

“A verdade é que a omnipresença deste vírus introduz não apenas uma série de comportamentos novos, não apenas traz à superfície apenas uma série de questões políticas e sociais — que já existiam, que já estavam subjacentes no modo como a sociedade se organiza. Mas que se tornam mais gritantes”, diz Igor Gandra. “Vejamos, por exemplo, o caso da precariedade na cultura: ela sempre existiu, mas com os confinamentos, os cancelamentos, etc., de repente tivemos colegas em situações de completo desespero.”

“O vírus de facto veio como que revelar um pouco uma série de coisas que já cá estavam — mas também traz umas novas; e eu acho que são essas coisas novas que criam chaves de leitura para os objetos também novas, diferentes, ou atuais, para os espetáculos que o FIMP traz”.

Assim, o SARS-CoV-2, nome oficial do coronavírus que emperrou o mundo, vem ser ele próprio “um questionador da ideia de matéria animada”, conta Igor. “Porque um vírus é um bocado isso, é inerte, não está bem vivo, mas ao mesmo tempo tem agenda, o que é uma coisa bastante impressionante, se pensarmos. Mas isto de facto é um aspeto estrutural do mundo enquanto tal, do mundo orgânico, do mundo invisível, do mundo material”.

“No festival usamos a marioneta como pretexto para refletir sobre estas coisas: historicamente, mesmo antes da minha direção, ainda no tempo da Isabel Alves Costa estar à frente do festival. E a hibridação, a ideia de o FIMP fazer conviver no mesmo programa diferentes linguagens, artistas com percursos também tão distintos, tem um pouco a ver com isso, com este desejo — a expressão não é minha — de criar curto-circuitos pelo modo como junta coisas que normalmente não estariam juntas, é um bocado esse o nosso princípio orientador”.

A imagem do FIMP apodera-se mesmo dos ícones desta espécie de covidoceno, do tempo da covid, animando frascos de álcool-gel, máscaras, e um cone de sinalização, que assim ganham vida e encarnam os protagonistas da contemporaneidade. “Temos um conjunto de frascos de álcool-gel em marcha, todos na mesma direção, numa imagem um pouco militarizada ou totalitária. Temos aquelas máscaras a secar ao sol, numa coisa de repouso, à espera. E temos aquele cone um pouco ameaçador, que sinaliza uma barreira.Acho que estes três objetos são uma belíssima síntese do tempo que vivemos e das preocupações que temos, das expectativas e das ansiedades que a realidade atual produz em nós”, explica Igor Gandra, sublinhando que se trata de uma proposta de design do estúdio Gráficos do Futuro.

No tempo das bocas tapadas e das barreiras a enclausurar gotículas e medos, os objetos impõem-se e camuflam a comunicação humana, pondo-lhe à frente uma “eloquência própria”. “No fundo”, conta Igor, “cada objeto tem a sua forma própria de comunicar. E os objetos — vamos chamar objetos àquilo que se separa do nosso corpo, que não é o nosso corpo — têm uma uma forma de eloquência própria. Acho que os objetos têm algumas vantagens em termos de comunicação em relação a outras formas. Tem que ver com uma certa singeleza e uma certa inocência que eles têm, que tem a ver com a mudez, no caso dos objetos que são mudos, que não falam, não produzem som”.

“Tem que ver com um certo lugar de pouco prestígio na hierarquia ontológica a que estão vetados. Aliás, objetificar normalmente é um termo usado para menosprezar”, acrescenta. “Mas, ao mesmo tempo, é essa sua condição que lhes permite aceder a certos níveis de compreensão e de expressão de situações que por vezes são complexas ou que estão um bocado sobrevalorizdas simbolicamente e os objetos, as marionetas, por terem essa condição um bocado mais baixa, acabam por conseguir falar sobre coisas que os humanos sozinhos têm mais dificuldade em expor poeticamente — mesmo discursivamente”.

Do mal do mundo à manufatura dos corpos

Pegando nas marionetas para expiar os males dos homens, o festival arranca com "KAMP", dos Hotel Modern (Países Baixos), no Teatro Carlos Alberto, a 9 de outubro. Este trabalho, que, explica Igor, "marca pela disparidade entre a precariedade dos objetos e o peso histórico" dos temas retratados, a viagem é a bordo de uma maqueta enorme, representando o campo de Auschwitz-Birkenau. Milhares pequenas marionetas de sete centímetros, feitas à mão, encarnam prisioneiros e carrascos. Através de câmaras minuatura, o público é "testemunha silenciosa do assassínio em massa, cometido numa cidade construída para o efeito.

O trabalho é já de 2005, mas chega ao Porto no ano em que se assinalam 75 anos da libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho e com a extrema direita "de regresso do lugar de onde se julgou ingenuamente que ela não sairia mais", lê-se no prospeto do festival.

Segue-se, no dia seguinte, no Rivoli, "Transfiguration" (transfiguração), a estreia do francês Olivier de Sagazan no Porto, com aquilo a que Igor Gandra chama "escultura em tempo real". A obra vai buscar o mito do escultor que quer dar vida à criação, com Sagazan a confundir-se no barro e na obra, apagando a sua identidade e tornando-se ele mesmo na peça.

O festival passa ainda pela estreia absoluta de "Liliput", da bailarina espanhola residente em Portugal, Ainhoa Vidal, uma proposta para o público mais jovem, com uma viagem através do ser humano, disponível no Café Teatro do Teatro do Campo Alegre, nos dias 16, 17 e 18 de outubro.

Também para as crianças, o wrokshop de construção e manipulação de marionetas — Fimpalitos —, que pega em restos de cenografias dos vários teatros do Porto para dar vida a novas personagens.

Do programa, destacam-se ainda os espetáculos "Uma Coisa Longínqua", do Teatro de Ferro & Carlos Guedes, "O Fim do Fim", da Alma d'Arame & Companhia João Garcia Miguel, e "Lições de Voo", pelo Teatro de Marionetas do Porto. Filipe Moreira, vencedor da quarta bolsa de criação Isabel Alves Costa, apresenta, em estreia absoluta, o espetáculo "Fibra", a que se juntam outras estreias como "O que já não é e o que nunca foi", de Joaclécio Azevedo, e "O Cheiro dos Velhos", do Grupo Cultural Português do Mindelo & Teatro de Marionetas do Porto, em estreia nacional.

O festival termina no subpalco do Rivoli, com a estreia nacional de "Cratère 6899", da belga Gwendoline Robin, com "uma brecha que nos conduz às origens do mundo, quando os cometas colidiram com a terra. Um espetáculo em torno de uma cratera, criado com o encontro com o astrónomo Yaël Naze e o oceanógrafo Bruno Delille.

Dos 13 espetáculos, sete têm lugar no Teatro Municipal do Porto (TMP). Quatro são espetáculos internacionais, três dos quais em estreia nacional, revelou Tiago Guedes, diretor do TMP. Na conferência de imprensa de apresentação do programa do FIMP'20. Tiago Guedes responsável lembrou ainda que, tal como acontece com a programação do TMP, a lotação das salas será limitada a 50% da sua capacidade, cumprindo as normas da Direção-Geral da Saúde.

Os palcos do Teatro Municipal do Porto — Rivoli e Campo Alegre —, do Teatro Nacional São João — Teatro Carlos Alberto, do Palácio do Bolhão, Círculo Católico do Porto e da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, no Porto, assim como a sala icónica do Teatro Constantino Nery, em Matosinhos, acolhem este ano o Festival Internacional de Marionetas do Porto.