Promovido pela Fundação Círculo de Leitores, com o apoio da Fundação José Saramago, da Porto Editora e da Globo Livros, o prémio foi entregue durante uma cerimónia no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), sala onde o Estado Português recebeu e homenageou José Saramago, em 1998, ano em que foi distinguido com o Prémio Nobel da Literatura.

Rafael Gallo torna-se o quarto autor brasileiro a receber este galardão, depois de Adriana Lisboa, Andréa del Fuego e Julián Fuks, tendo submetido "Dor Fantasma" à consideração sob o pseudónimo "Pestana".

Nascido na cidade de São Paulo, no Brasil, em 1981, Rafael Gallo tem "criado histórias e inventado personagens desde pequeno", destacam os promotores do prémio, acrescentado que as suas primeiras incursões na área da literatura foram os contos que acabou por compilar num volume intitulado “Réveillon e outros dias”, que propôs a várias editoras, sem nunca ter sido aceite ou publicado.

Tudo mudou quando concorreu ao Prémio SESC de Literatura, um concurso brasileiro para autores de obras inéditas, que lhe permitiu publicar o livro, em 2012, pela editora Record e, de certa forma, tornar-se escritor. Em 2015, lançou o seu primeiro romance, “Rebentar”, também pela editora Record, que foi distinguido com o Prémio São Paulo de Literatura, na categoria de autores estreantes com menos de 40 anos.

Desde então, não publicou outro livro, embora tivesse um romance inédito, “Dor fantasma”, e 40 anos de idade quando foi divulgada a abertura de candidaturas para a mais recente edição do Prémio Literário José Saramago.

Bruno Vieira Amaral,  elemento do júri destacado para fazer o elogio da obra vencedora, enalteceu a qualidade de escrita do vencedor: “é mão cirúrgica, aplicando incisões seguras e sábias, é mão de pintor, na pincelada criativa e intencional, é mão de maestro segurando a batuta e guiando a orquestra num crescendo de som e fúria que culmina no magistral desenlace do romance”.

Durante o seu discurso, Rafael Gallo evocou o episódio de um imigrante haitiano que terá confrontado Jair Bolsonaro no início da pandemia da Covid-19, em março de 2020, dizendo ao presidente do Brasil "acabou, você não é presidente mais", comparando essa circunstância com a atual, em que saiu derrotado das eleições presidenciais deste ano.

O autor admitiu ter caído de joelhos no chão quando recebeu a chamada de que tinha vencido este prémio, após ter ressalvado que na sua lista de romances favoritos consta “O Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago. Como leitor e como escritor, Rafael Gallo sublinhou que a atribuição desta distinção será doravante "a pedra onde se baseará um novo capítulo" da sua vida.

Mais tarde, aos jornalistas, admitiu que a conquista do troféu é "um sonho difícil de descrever”.

Ministro destaca papel da arte e das humanidades na preservação da democracia

O encerramento desta sessão ficou a cargo do ministro da Educação, João Costa, que pontou a sua intervenção com a leitura de um poema de Paulo José Miranda, o primeiro vencedor do Prémio Literário José Saramago.

“As grandes conquistas da humanidade não se fizeram com cálculos financeiros”, referiu João Costa, para logo a seguir acrescentar: “Precisamos mesmo dos humanistas e de quem estude humanidades para não deixarmos o mundo nas mãos de quem para tudo faz contas e de quem para tudo desumaniza”.

Uma desumanização que acontece, desde logo quando a arte, a literatura e a poesia estão ausentes, sustentou.

As principais felicitações foram para o vencedor do prémio, que João Costa já conhecia pela obra "Réveillon" e disse estar "desejante de ler" o livro agora premiado.

Saudando os perto de 1000 alunos convidados para comparecer no Grande Auditório do CCB para esta sessão, João Costa dirigiu-se tanto à minoria que não frequenta um curso de Humanidades — realçando que já é possível fazerem disciplinas dessa área — como à maioria que optou por esta área de estudos, pela escolha muitas vezes incompreendida e questionada.

“A escolha das humanidades não precisa de justificação, da mesma maneira que a escolha pela poesia, pela literatura e pela arte não precisa de justificação. (…) Elas são e, por serem, fazem-nos melhores”, afirmou.

Por outro lado, o ministro acrescentou que o papel das artes e das humanidades não se esgotou nas grandes conquistas do passado, mas é hoje tão importante na sua garantia.

“Vivemos tempos estranhos, tempos de polarizações, de radicalismos e de discursos fáceis”, disse o governante, sublinhando que a história também mostrou que “quem tem medo da democracia e da liberdade, tem medo dos escritores, dos poetas, da palavra e da arte”.

E é por esse motivo que João Costa considerou que os artistas, neste caso os escritores, e os humanistas são “o garante da liberdade e da democracia”.

“Os populistas são aqueles que encontram respostas simples para problemas complexos. A literatura traz-nos a complexidade para aquilo que, à primeira vista, até parece simples”, concluiu, sob o som dos aplausos que enchia o Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

E dirigindo-se aos estudantes presentes, deixou a missão: “Têm de ser os embaixadores da leitura, os guardiões da democracia e os promotores do conhecimento livre e dos direitos humanos”.

O ministro da Educação reforçou também o papel da literatura no combate "aos discursos fáceis" ao introduzir complexidade na vida, terminando com uma citação de José Saramago: "não nos vemos se não sairmos de nós".

Um prémio reformulado

Para esta 12.ª edição do galardão, recorde-se, houve uma alteração no modelo de concurso, passando a distinguir inéditos ainda não publicados de autores até 40 anos — anteriormente, o limite era de 35 anos. Até à edição anterior, de 2019, o prémio distinguia uma obra já publicada.

Essa mudança dos modelos, aliás, é aludida na nota biográfica que o autor assinou a propósito da conquista deste prémio. Gallo já tinha concorrido ao Prémio Literário José Saramago em 2017 com "Rebentar", não tendo vencido. "Eu tinha exatamente 35 anos. Fiquei contente pela vitória de Julián Fuks, outro escritor brasileiro e um amigo, mas também triste por não poder mais concorrer", admite.

No entanto, com a mudança do limite para os 40 anos, nova oportunidade de concorrer surgiu — e o alento reavivou-se também.

"Não publiquei outro livro desde então. Tinha um romance inédito, Dor fantasma, e 40 anos de idade quando foi publicado o edital mais recente do Prémio José Saramago. Havia nele duas mudanças fundamentais: seriam contemplados romances inéditos e a idade limite passava a ser de 40 anos. O grande sonho se refazia para mim", escreve.

Gallo recebe o valor pecuniário de 40.000 euros e a publicação da sua narrativa em Portugal (Porto Editora) e Brasil (Globo Livros), sendo distribuída nos restantes países de língua portuguesa. Até agora, o escritor paulista não tinha obra publicada no nosso país.

A Fundação Círculo de Leitores, promotora do galardão, tinha referido que a alteração ao modelo “gerou um grande interesse e permitiu um claro aumento do número de participantes”.

As candidaturas estiveram abertas de 08 de janeiro até 31 de maio deste ano, tendo sido recebidas “cerca de 600, maioritariamente oriundas de Portugal e do Brasil, tendo-se verificado também uma significativa participação de Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe”, segundo comunicado da entidade organizadora.

Durante a apresentação, a Presidente do Júri, Guilhermina Gomes, ressalvou que "mais de 40% das participações foram de mulheres", ressalvando que "o prémio é dado por mérito e não por quotas".

A cerimónia de entrega desta edição do Prémio Literário José Saramago contou com a presença de todos os membros do júri desta edição, nomeadamente José Luís Peixoto, Prémio Literário José Saramago 2001; Gonçalo M. Tavares, Prémio Literário José Saramago 2005; João Tordo, Prémio Literário José Saramago 2009; Bruno Vieira Amaral, Prémio Literário José Saramago 2015; Pilar del Río, Presidenta da Fundação José Saramago; Guilhermina Gomes, em representação da Fundação Círculo de Leitores; e Nélida Piñon, Membro Honorário.

A primeira edição do Prémio José Saramago de literatura foi em 1999, tendo sido vencedor Paulo José Miranda com o romance “Natureza Morta”. Já o vencedor da anterior edição, em 2019, foi Afonso Reis Cabral com a obra “Pão de Açúcar”.

O Prémio Saramago já distinguiu 11 autores, maioritariamente de nacionalidade portuguesa – sete -, três brasileiros e um angolano, Ondjaki, em 2013, com “Os Transparentes”.

José Luís Peixoto ("Nenhum Olhar"), Adriana Lisboa ("Sinfonia em Branco"), Gonçalo M. Tavares ("Jerusalem"), Valter Hugo Mãe ("O Remorso de Baltazar Serapião"), João Tordo ("As Três Vidas"), Andréa del Fuego ("Os Malaquias"), Bruno Vieira Amaral ("As Primeiras Coisas") e Julián Fuks ("A Resistência") são os outros vencedores.

O Prémio José Saramago foi instituído em 1999 e tem uma periodicidade bienal, pelo que a última edição deveria ter-se realizado em 2021, o que não aconteceu devido à pandemia, obrigando ao adiamento para 2022.

*com Lusa