O que escrevemos em 2018, por ocasião da última passagem de Roger Waters por esta mesma Altice Arena, podíamos escrever ainda hoje. A história não avança. A guerra, maldita, soa ainda com mais força aos ouvidos dos europeus. Waters, cujas posições políticas o tornam, em igual medida, num alvo a abater e em alguém que merece um holofote e um microfone, segue sem se calar. Os Pink Floyd, enquanto entidade, nunca se reerguerão (e, depois das mais recentes polémicas, com a esposa de David Gilmour a chamar “antissemita”, “misógino” e “apologista de Putin” ao baixista, com o primeiro a corroborar a “verdade” de cada palavra, muito menos). Os fãs dos Pink Floyd, enquanto houver discos, não deixarão nunca de se reerguer. E a velha frase de Karl Marx parece ter sofrido uma mutação: a história repete-se, e é agora simultaneamente trágica e farsante.

Farsante, porque a posição de Waters em relação à guerra na Ucrânia, colocando o ónus das hostilidades exclusivamente na NATO e no Ocidente, tende a ignorar os crimes cometidos pelo outro lado da barricada. Que o músico tenha discursado na ONU a convite do governo russo, quando passou uma carreira a insurgir-se contra regimes autoritários e totalitários, mancha-o de uma camada indelével de hipocrisia. Durante o espetáculo, o primeiro da digressão “This Is Not A Drill”, que Waters descreve como “a sua primeira digressão de despedida”, mencionou a influência de escritores como George Orwell (sobretudo “1984” e “O Triunfo Dos Porcos”) e Aldous Huxley (“Admirável Mundo Novo”). Ao mesmo tempo, como salientou o fã ao nosso lado, Waters mostrou, nos ecrãs habilmente colocados a meio da Arena, várias imagens dos tempos antigos dos Pink Floyd, cortando David Gilmour de todas elas, um gesto a roçar o estalinista...

Isso não significa que não se possa continuar a apreciar a música e a arte de Roger Waters. Até porque muitos dos presentes na Altice Arena pertenceriam, provavelmente, a um grupo numeroso de fãs dos Pink Floyd que gostam do grupo pela sua música, tendendo a ignorar as letras (na reportagem do Público, o jornalista Mário Lopes cita um fã que exclamou, no final, «nem me ponham a falar das politiquices dele», um claro sinal nesse sentido; um pouco à semelhança dos eleitores de direita que gostam de Rage Against The Machine sem entender que estes os desprezam). Até porque, independentemente da nossa posição em relação a algo que parece básico – devemos, ou não, apoiar o direito da Ucrânia de se defender da agressão russa? Devemos, ou não, apoiar o direito da classe ucraniana de se defender do fascismo russo? –, na base da mensagem de Waters está um sentimento universal: os mais poderosos odeiam-nos e não se importam com a nossa morte.

A polémica, nesta primeira de duas datas na Altice Arena, foi chutada para canto. Do lado de fora, quando ainda não eram grandes as filas para entrar na sala, não se vislumbraram quaisquer protestantes ucranianos ou, até, israelitas, dias depois de a Comunidade Judaica do Porto ter tentado fazer com que os concertos fossem cancelados, à semelhança do que aconteceu em Frankfurt, na Alemanha. Tivemos, isso sim, quem à entrada distribuísse panfletos pró-Palestina, lembrando que, nessa particular zona do mundo, há um povo que é oprimido há 75 anos e com o qual poucos se parecem importar. O apoio veemente de Waters a um boicote ao estado de Israel valeu-lhe várias acusações de anti-semitismo, da parte de quem acha que toda a crítica que é feita às ações desse mesmo estado é anti-semita (o que, sejamos francos, não é só uma estupidez como é ofensivo, quer se apoie o tal boicote ou não). Essa luta em particular enrijeceu-lhe a pele, e a mensagem que é colocada nos ecrãs, pouco antes do início do concerto, é-o em tom de desafio: «se és daquelas pessoas que adora os Pink Floyd mas não suporta as posições políticas de Roger Waters, vai-te foder e enfia-te no bar».

Não vimos ninguém a enfiar-se no bar (muito menos a outra coisa), mas vimos dezenas de telemóveis em punho assim que as luzes se apagam e os músicos tomam as suas posições, divididos por cada um dos quatro cantos do palco. Às imagens de uma cidade em ruínas seguiu-se 'Comfortably Numb', clássico dos Pink Floyd com que Waters abre esta nova digressão e que ganha, aqui, uma nova roupagem eletrónica, bem menos interessante que a original, presente em “The Wall”. A ausência do mítico solo de guitarra – tocado por Gilmour, o que o deve explicar... – também contribuíu para isso. Se no filme baseado em “The Wall” a canção serve de banda-sonora ao momento em que a personagem principal, a estrela rock Pink, é sedada de forma a poder dar um espetáculo, podemos traçar um pequeno paralelo com o presente: Waters a escolhê-la para primeiro tema da tour, criando uma analogia entre as suas posições e o quão distante estas parecem colocá-lo do seu próprio público. A canção como automedicação, para que o espetáculo possa continuar mesmo que queiram a sua cabeça. E o contrário também se aplica, o público a perder-se no instrumental e ignorando o que Waters diz: your lips move, but I can't hear what you're saying.

Os ecrãs erguem-se e, por fim, toda a banda é revelada a todos os setores da Altice Arena, para permitir a entrada em cena a Roger Waters, o stand still! professoral de 'The Happiest Days Of Our Lives' gritado pelo próprio. Os LEDs brilham com mensagens: are we good? Are they evil?, para que o público coloque o seu próprio significado neste “nós” e neste “eles”. Não que tenha tempo para pensar, já que de imediato surge a segunda (e mais famosa) parte de 'Another Brick In The Wall', com milhares de vozes em uníssono a mostrarem que continuam sem precisar de educação. Até se chegar a 'The Powers That Be', tema de “Radio K.A.O.S.”, com as mensagens a serem trocadas pelos nomes de vítimas de violência policial, do fascismo, da religião: Mahsa Amini, George Floyd, Breonna Taylor, Marielle Franco. Lembramo-nos da digressão “Zoo TV”, dos U2, onde, com Sarajevo destroçada pela guerra, os irlandeses faziam chamadas em directo com os habitantes da cidade bósnia. Waters não chega a esses extremos, mas o propósito é o mesmo: deixar-nos desconfortáveis e cientes do privilégio que é poder assistir a um concerto rock, enquanto outros, irmãos, humanos, sofrem.

Não só. A ideia passa, também, por nos mostrar que somos cúmplices desses crimes, sempre que deixamos calar a voz e depositamos a nossa confiança em políticos mais ou menos eleitos. Ronald Reagan surge no ecrã (e é vaiado), e por baixo a acusação: criminoso de guerra. George Bush, idem. Bill Clinton, George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump, o mesmo. Joe Biden? Esse já merece uma nota de humor: “ainda só agora começou”, dando a entender que o atual presidente norte-americano também será brevemente culpado de matar inocentes. Com isto, Waters não pretende apenas criticar o complexo militar-industrial norte-americano, e sim mostrar ao Ocidente que tem as mãos tão manchadas de sangue quanto os seus supostos inimigos. Mais tarde, como que para vincar este ponto, diria: «a NATO está a tornar tudo pior».

Uma garrafa de mezcal em cima do piano ilustra o momento mais intimista do concerto, 'The Bar', que seria repetido no encore, desta feita com toda a banda em volta de Waters para um brinde. O tema, o mais recente da sua carreira a solo, tem origem no seu conceito de um bar, um lugar seguro onde nos podemos encontrar com amigos e desconhecidos e, simplesmente, falar – que é, na sua concepção, o mais importante que podemos fazer, especialmente no que toca à Ucrânia (que Waters pronuncia como “the Ukraine”, artigo definido à frente, prática que os próprios ucranianos querem terminar dado que essa forma de os anglófonos se referirem ao país tem origem soviética). Um pequeno percalço com a click track – não esquecer que foi o primeiro concerto da etapa europeia da tour – obrigou-o a parar e a corrigir-se.

De volta ao passado, um dos maiores destaques da noite foi para 'Have A Cigar', que soou incrivelmente poderosa (também) por cortesia de Joey Waronker, o baterista de serviço. 'Wish You Were Here' deu início a uma longa homenagem a Syd Barrett, que foi seu amigo de infância e o homem que mais marcou os primeiros tempos dos Pink Floyd, de tal forma que nos referimos quase sempre a um pós-Syd Barret quando falamos de “A Saucerful of Secrets” (que ainda contou com ele) para a frente. Nos ecrãs, Waters contou a história de como assistiu a um concerto de Gene Vincent e dos Rolling Stones ao lado de Barrett, que finalizou com «quando se perde alguém que amamos, isso serve para nos lembrarmos: this is not a drill», ou «isto não é uma simulação», em português. Pouco importa que a história nos diga que Waters, ao lado dos demais Pink Floyd, optou por abandonar Barrett em casa, a caminho de um concerto em Southampton, marcando a sua saída do grupo. A homenagem culminou com 'Shine On You Crazy Diamond', partes seis a oito, até se chegar a 'Sheep', canção que contou com a presença de uma enorme ovelha insuflável a pairar pelos ares, e com o momento caricato protagonizado por um casal, que claramente não sabia o significado de “ovelha” para além do animal, e decidiu posar para uma fotografia assim que a banda a começa a tocar.

Após um intervalo que serviu para testemunhar que, apesar das invectivas de Waters contra o patriarcado, os seus concertos continuam a ser sobretudo para homens (a casa de banho destes estava repleta, a das mulheres não), o músico regressou de gabardina, óculos escuros e sob longos panos com martelos para encarnar a figura totalitária que construiu “The Wall”, terminando 'In The Flesh' com uma rajada de metralhadora. 'Run Like Hell', dedicada «aos paranóicos presentes na Arena», antecedeu imagens de civis mortos pelo exército norte-americano no Iraque, as quais só conhecemos por mérito de Chelsea Manning e Julian Assange. Daí, Waters partiria para o campo da reinvidicação (e aí ninguém poderá criticar a mensagem): «todos precisamos de ter direitos», sejamos nós palestinianos, iémenis, nativo-americanos, mulheres, pessoas transgénero ou – muito resumidamente – humanos. A muito saudada 'Money', com o guitarrista Dave Kilminster a emular Gilmour na perfeição, foi ainda mais directa: «os porcos vão matar-nos a todos».

Navegando pelas águas de “The Dark Side Of The Moon”, Waters e grupo foram saltitando por 'Us and Them', 'Any Colour You Like', 'Brain Damage' e 'Eclipse', partindo para o encore com um “obrigado” em português dirigido a todos os lados da Altice Arena (ainda que se tenha equivocado nos respetivos pontos cardeais). Esse disco fez recentemente 50 anos, mas há um outro prestes a cumprir data redonda: “The Final Cut”, que cumpre o seu 40º aniversário esta terça-feira, 21 de março, e que está nesta digressão representado por 'Two Suns In The Sunset', uma bonita canção sobre holocausto nuclear. «Estamos a passar pelos tempos mais perigosos que há vivemos», afirmou, referindo também o célebre Relógio do Juízo Final, que marca atualmente 90 segundos para o apocalipse. Um copo erguido ao público, Waters aproveitou também para homenagear o seu irmão mais velho, recentemente falecido, antes de terminar o espetáculo com uma interpretação mei escuteiro, meio Arcade Fire, de 'Outside The Wall', com os membros da banda a saírem do palco em fila, continuando a tocar até chegarem aos bastidores. Ninguém vai alterar a sua posição política depois deste espetáculo, o que é tão válido agora como em 2018. Muitos dos fãs dos Pink Floyd continuarão sem entender a mensagem, quando não a ignoram completamente. Pena é que o próprio, às vezes, também o faça, e daí todas as contradições do artista ao longo do último ano. Mas se alguém tiver saído da Altice Arena com vontade de dialogar em vez de pegar imediatamente numa pistola, pode ser que o relógio recue umas milésimas.

*Créditos da imagem de capa: Francisco Paraíso