Este disco é lançado no teu dia de aniversário [Samuel Úria faz esta sexta-feira 41 anos].
Mas ele foi escrito quando ainda tinha 39.
Então não é um disco da ternura dos 40.
O Rui Portulez [A&R na NorteSul] escreveu o primeiro press release do disco, e escreveu-o com uma propriedade que eu fiquei a admirar bastante. Não conversámos e ele foi atrás de muitos pontos que seriam pontos de reflexão do disco. E ele fala disso, da idade, uma coisa que não tinha pensado quando estava a escrever as canções. Mas agora, a posteriori, se calhar dou-lhe razão. Andei um bocado adormecido na transição dos 39 para os 40. Não festejei. O máximo de festejos que fiz foi ir almoçar e jantar com a minha mulher. Num dia tinha 39 e no outro 40. Não me senti mais velho por causa disso, mas acho que não fui absolutamente impermeável a essa transição. Há coisas que, de repente e de forma inconsciente, se tornaram mais adultas. Ou pelo menos perdi alguns vícios de uma meninice prolongada, que se calhar já era altura de se perderem.
Este é um disco para quem quiser andar a remoer e a chafurdar num excesso de quietude ou numa pacificação obrigatória
A escrita de canções pode também estar dependente desse mindset que se alterou. Não foi consciente, mas este pode ser um disco de alguma madurez, que eu no dia-a-dia posso não manifestar. Antes, talvez fruto de um hedonismo juvenil, só tinha mesmo pica para fazer aquilo que me apetecia. Agora, sinto-me a ter pica de despachar as coisas. E pode ter a ver com a idade.
Curiosamente, as circunstâncias tramaram-te. O disco, que tinha data de lançamento marcada para março/abril, acabou por ser adiado.
O adiamento foi chato, não tive trabalho — como os meus colegas praticamente também não tiveram —, mas não foi só isso. Quando o projectei, e foi uma coisa absolutamente consciente, quis que fosse um disco um bocadinho mais contido. Eliminei, ou pelo menos fugi, de algumas fórmulas que tinham tido sucesso no dia anterior.
Como toquei o disco anterior durante muito tempo, não quis ficar refém daquilo que teve mais respaldo no público. Queria mesmo que fosse um disco de transição, que pudesse ser ouvido sem preocupações de ser vendável. Mas depois de um período de confinamento tenho a noção de que as pessoas possivelmente não querem ouvir um disco contido. Uma das funções das artes é o escape e este disco não o vai oferecer. Quanto muito, este é um disco para quem quiser andar a remoer e a chafurdar num excesso de quietude ou numa pacificação obrigatória.
Em algum momento pensaste em deixá-lo na gaveta ou em não o editar com o alinhamento inicialmente previsto?
Isso seria difícil por questões práticas, que se tornam em questões económico-financeiras. Quando começou o estado de emergência o disco já estava a ir para a fábrica. Voltar a fazer tudo ia custar mais dinheiro e ia-se perder aquilo que se tinha feito. Mas eu acho que também não conseguia não assumir um conjunto de canções que foram feitas especificamente num conjunto.
E agora a pergunta que é uma espécie de feitiço que se vira contra o feiticeiro: durante a série de lives que fizeste para o SAPO24, aquando do período de confinamento, questionaste os teus convidados sobre se eram eles os responsáveis pelo que vivíamos. Na tua visão, os seus discos tinham um quê de premonitório. Mas o teu também.
É verdade. Curiosamente escrevi para um desses discos...
... para o dos Clã.
Sim. Escrevi uma canção que também parece uma previsão de uma catástrofe. O tema da Capicua, também para os Clã, parece que foi feito para agora…
Não consigo escrever sem a perspetiva de, no meio da escuridão, cantar a olhar para a luz que está ao fundo do túnel
O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, veio pedir, por estes dias, a "autocontenção dos portugueses". “A Contenção” foi um dos primeiros temas que o público ouviu do novo disco. Podemos dizer que foi profético?
Isso foi uma profunda felicidade ou infelicidade. A palavra fazia sentido na canção. E, em toda sua amplitude, até aplico menos o significado que hoje em dia é mais usado: o de estarmos contidos. Na minha música, a contenção que nos arresta é usada mais no instante do que propriamente num período prolongado. Mas há mais coisas, até o próprio título do disco ["Canções do Pós Guerra”] pode parecer um pouco profético.
Um tom bélico que vem na senda dos últimos dois discos.
Lá está. O primeiro discurso do Marcelo Rebelo de Sousa [o da declaração do estado de emergência] parecia que era uma coisa quase Churchilliana.
Sobre a parte da guerra simbolicamente associada à pandemia... Acho que não consigo traçar nenhum paralelismo com a guerra de que eu queria falar. Mas, por outro lado, todas estas questões que têm a ver com os conflitos raciais e com o tumulto político-ideológico que surgiu entretanto, essas sim, quase que posso falar de previsão. Não da maneira como foram incendiadas, aí não fui bafejado com informação privilegiada sobre o futuro. Mas havia tantos indícios de que se houvesse alguma crise, se o mundo desse alguma guinada por motivos de força maior, que as coisas se iam extremar ainda mais. Isso era tão evidente que sobre isso já estava a escrever. Já percebia que se acontecesse alguma coisa que nos afectasse a todos, e esse todos é o mais global que eu me lembro alguma vez na vida, a natureza humana não ia revelar o seu melhor. Isso parecia-me bastante claro. Era tão evidente que eu quis escrever sobre isso. Calha-me esse lado profético, por um lado, por sorte, por outro.
Há mais alguma coisa sobre a qual já tenhas escrito e ainda não tenha acontecido? Devemo-nos precaver de algo?
Olha, espero que não. O disco não é completamente negativo e eu não consigo escrever sem a perspetiva de, no meio da escuridão, cantar a olhar para a luz que está ao fundo do túnel. Mas, por outro lado, este é um disco que tem muitos momentos desabonados e um olhar desapaixonado em relação ao que nos rodeia. O desapaixonado, pelo menos para mim, é uma força criativa mais premente do que propriamente a paixão. Porque a paixão está banalizada. Até em termos literários já se escreveu tudo sobre a paixão. Sobre o desdém, sobre os medos ou receios ainda há mais terreno a explorar. Pelo menos na música.
Eventualmente irei tornar-me num cantor de protesto ou de intervenção
E será a tua, essa voz?
Um bocado por oportunismo, talvez. Já me habituei e já me é natural. Mas tenho canções de amor neste disco, não é de todo pautado por esse olhar desconfiado e desesperado. Tenho canções de amor e lembranças delicodoces que ponho em canção. Mas acho que já me habituei a ocupar esse lugar do chatinho que às vezes se põe a dar sermões ao mundo.
E vens preencher o lugar de algum chatinho que entretanto tenha desaparecido?
Preencher o lugar não diria, mas sinto alguma ligação às canções de intervenção. Não acredito que Portugal se vá tornar numa ditadura; não acho que a extrema-direita vá chegar ao poder. Mas vamos ter de conviver com ideologias e ideais que nós pensávamos, pelo menos eu pensava, que já estavam sanados. E um dos remédios para esse saneamento tinha sido a música.
Nas minhas visões críticas, nos meus sermões, nunca me tinha sentido propriamente um sucessor dos cantores de intervenção, mas acho que, não por via daquilo que me deixaram, mas por via de outros presentes que estão à minha espera, eventualmente me irei tornar num cantor de protesto ou de intervenção.
A caminho desta conversa vi um título da Blitz sobre o apoio dos músicos norte-americanos aos candidatos presidenciais — ou o não apoio a Donald Trump. Como será com as nossas? Num momento em que a classe artística, mais do que nunca, está descontente e se sente abandonada pela classe política, vês músicos a apoiar os candidatos às eleições de janeiro?
A arte em Portugal não é artesanato português, é muito diversa. Em termos estéticos, mas também de atitudes e de conceitos. Viria com maus olhos se estivesse tudo a afunilar para um candidato presidencial. Tendo em conta que, de todos os que surgiram, só um é que desconfio que não é democrata. Com mais ou menos defeitos, acho que os outros candidatos são válidos — e que têm todos muitos defeitos. Olharia sempre com desconfiança para vozes muito concordantes em torno de um delfim.
Acho que é mais fácil sair em desacordo de um candidato. Em Portugal, e do que conheço dos meus colegas, acho que isso já está a acontecer de alguma maneira. Ainda não vi foi isso traduzido, de forma explícita, em música. Se o senhor, de quem ainda não foi dito o nome, for para uma segunda volta das eleições presidenciais (e ele fez uma jogada de mestre ao dizer que se demitia se a Ana Gomes tivesse melhor votação do que ele)... Se isso acontecer, vai ser um bocado difícil às pessoas ficarem indiferentes. Podem voltar as canções políticas.
Mas é compreensível que, de repente, não haja cabeça nem motivação para que o nosso trabalho surja, não em função da subsistência, mas em função do papel social que devemos ter. É quase exasperante pensar que nós queremos fazer a nossa função, queremos até cumprir para lá do profissional, e estamos limitados pela conjuntura e pela maneira com que a conjuntura é cavalgada por quem tem as rédeas.
Há uma sede de voltar à rotina dos palcos?
Epá, sim. Há muita vontade de voltar à rotina, de pensar que 2021 é um ano com trabalho. Mais do que a rotina, há a vontade do próximo concerto. Porque nunca sabemos se há o a seguir.
E o próximo é?
No Cubo Mágico, a 19 de setembro, em Viseu.
Como é que este novo álbum resultará ao vivo?
É um disco difícil de reproduzir sozinho, ao contrário do anterior em que dei muitos concertos em formato de duo. Mas ainda estou a apalpar terreno em relação a este. Ainda não comecei os ensaios, mas prevejo que nem sempre seja possível, ainda por cima com a redução das plateias, levar a banda comigo.
Nos concertos de lançamento vou conseguir levar banda e coro, até porque não são concertos para equilibrar as contas — os concertos de lançamento normalmente dão prejuízo. Vamos ser, se calhar, mais de 20 pessoas em palco.
Lembro-me de quando comecei a tocar, de falarmos da malta que tinha tido carreiras de sucesso, ou sucesso moderado, nos anos 90, o tempo das vacas gordas. Falávamos disso com alguma inveja, não muito séria. Agora, temos de falar no tempo das vacas bem nutridas, elegantes, porque vamos para o tempo das vacas magras. E vamos ter nostalgia das condições que tínhamos há meio ano.
Já era altura de assumir que quando disse que não era do prog-rock estava simplesmente a ser teimoso, não estava a fazer uma afirmação de vida
É muito estranho pensar que tinha começado a conseguir levar coro, e pagar cachet à malta do coro. Já a projetar fazê-lo, no próximo disco, em salas maiores. E ter a capacidade financeira para levar mais malta, cenário, ter os meus técnicos de som e luz... Agora, não faço a mínima ideia. Vamos ter, se calhar, de fazer duas datas no mesmo dia e a ganhar o mesmo...
Felizmente, tirando um elemento da minha banda, ninguém vive exclusivamente da música. Só o meu baixista é que é músico profissional. Eles ficarem sem estes concertos não é uma calamidade para as famílias e para a sua saúde financeira. Mas, mesmo assim, era um extra. Isto é malta que está comigo há mais de dez anos. Vou levá-los, na medida do possível, mas tenho a consciência que não vai ser sempre possível.
Quem é que podemos ouvir em “Canções do Pós-Guerra”? E esta pergunta tem truque...
Há participações que são especiais, mesmo especiais, porque não foram planeadas. Gravei o grosso do disco em Vila Nova de Gaia, nos Groove Wood Studios, um sítio fantástico na parte turística da cidade, com o rio perto de nós. Houve um dia que o Miguel Araújo, um amigalhaço antigo, foi lá almoçar. E ele, que é um guitarrista exímio, gravou “As Traves”. Aquilo tinha um som um bocadinho mais retro, o Miguel ouviu e disse logo que já sabia que guitarra colocar ali.
Há uma convidada mais planeada, a Monday [Catarina Falcão], que faz um dueto comigo numa canção [“Cedo”]. Quando escrevi a canção já tinha a ideia de que queria que fosse um dueto e, para ser sincero, a Catarina foi logo a primeira opção que me veio à cabeça. Gosto muito do trabalho dela, acho-a muito talentosa na escrita de canções. Está com uma mão muito cuidadosa e ágil a escrever. A Catarina conseguiu levar uma componente emocional, que queria para a canção. E cumpriu mais do que o que estava à espera, porque levou arranjos feitos por ela para as vozes. Eram o tipo de arranjos que nunca escreveria daquela forma e ela trouxe mesmo um input fabuloso.
Já escreveste para ela e para a irmã [Golden Slumbers], no Festival da Canção de 2017.
Exatamente, foi aí que ficámos amigos. Depois, tenho malta de um coro que está comigo também já há muito tempo. Embora alguns vão mudando. Queres que diga os nomes de todos? Posso já dizer que uma das coisas mais excruciantes que me aconteceram nos últimos meses foi perceber que há uma falha, na parte impressa, em relação a um dos membros do coro: o do Tiago Silva que, ainda por cima, é o capitão daquela malta. Pelo menos numa canção, ficou creditado como Miguel Silva. Ficaria de coração partido com qualquer pessoa do coro, mas com o Tiago…
E o José Cid, também entra? Para quem dizia que não é do prog-rock, na “Aos pós” imagino o Cid, ao piano, a cantar o tema.
Entra, entra. A inclusão do piano aconteceu quando estava a cantar o tema, sem piano, num ensaio. O piano veio porque tinha o José Cid na cabeça. A ideia do refrão é ser um bocadinho prog. Já era altura de assumir que quando disse que não era do prog-rock estava simplesmente a ser teimoso, não estava a fazer uma afirmação de vida. Então, que esta canção [“Aos pós”] me corrigisse. Até porque é uma canção que fala de aspetos geracionais. Não estou a enterrar, mas estou a apontar para a ironia da canção em que digo que não sou do prog-rock. Foi de propósito, esse momento José Cidico.
Com a ajuda da Joana Linda, este é um álbum visual?
É quase uma compensação feita ao período em que o disco esteve encafuado em casa. A ideia de todas as canções serem filmadas nas ruas de Lisboa pareceu-me o antídoto para esse veneno que me estava a corroer. Embora isto ainda não tenha sido explicitado, porque os vídeos não estão a sair pela ordem que estão no disco.
Quando sair o disco vão sair os vídeos para todas as canções e será [uma história] continua. Não é um plano de sequência absoluta, há ligeiros cortes, mas o passeio começa num sítio de Lisboa e acaba noutro. E são as canções todas do disco que estão em sequência.
Não só tem a ver com essa ideia de querer ir para a rua, porque não pude ir para a rua durante tanto tempo — nem o disco pôde. Antes de perceber que a casa podia ser uma prisão, quase no sentido literal, na prisão domiciliária a que todos estivemos votados, quando não conseguia encontrar a palavra certa já me sentia preso. E para me libertar desse confinamento, normalmente vou dar passeios por Lisboa a pé. Às vezes posso parecer um maluquinho a balbuciar coisas... E esta é uma homenagem que faço ao processo criativo.
Samuel Úria apresentará "Canções do pós-guerra" no sábado, no Cubo Mágico, em Viseu, a 6 de outubro no Teatro Tivoli, em Lisboa, no dia seguinte na Casa da Música, no Porto, e, no dia 24 de outubro, no Teatro Diogo Bernardes, em Ponte de Lima.
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