SOPHIA, O MITO
A Consagração e o Princípio do Fim
Na década de 1990, o mito Sophia tinha já galgado fronteiras. Traduzida em mais de uma dezena de países, hoje tão diversos como França, EUA, Tailândia, Venezuela, Sérvia ou China, a presença da poeta causava sensação. Fosse pela forma ímpar de declamar, pelas participações desconcertantes ou pelos atrasos e distrações, Sophia afirmava‑se com uma poesia mas também com uma personalidade muito próprias.
Ainda no final dos anos 1980 consegue agitar o anfiteatro da prestigiada Universidade de Paris IV, conhecida como Sorbonne, completamente cheio para a ouvir durante o encontro «Les Belles Étrangères», dedicado a Portugal. Os oradores entravam por ordem alfabética e, aproximando‑se a letra S, ninguém sabia da poeta portuguesa. Em surdina, todos perguntavam por Sophia, inquietos com o seu desaparecimento.
Até que, no momento exato, faz uma entrada triunfal chegando à sessão que lhe competia no programa a dizer poesia, na sua cadência e tom inconfundíveis. Aos conferencistas leu o texto «Arte Poética V», mais tarde publicado na primeira edição de Ilhas, em 1989.
«Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura. Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio. Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram‑me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas – coloquei‑me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:
A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.
Na plateia, os franceses renderam‑se. «Aparecer assim foi mágico. Era muito bonita, de grande simplicidade.» O poeta Nuno Júdice, também a participar no encontro, ainda hoje recorda o momento como uma metáfora do que era Sophia.
«Tinha‑se tornado um mito. O mito estava na poesia dela e ela encarnava esse mito.» Daquela vez na universidade francesa, antes de falar em público, Sophia tinha ido às compras, perdera‑se e atrasara‑se.
Tal como em Bordéus, e em tantos outros sítios, onde provocava fúrias aos demais escritores, como Virgílio Ferreira. Em maio de 1990 compõe um trio com Nuno Júdice e Al Berto em novo encontro literário, registado no jornal Bordeaux Loisirs, onde se escreve que Sophia «aparece sem contestação como uma das figuras mais importantes das letras portuguesas».
A poeta que encantara os franceses na Sorbonne e que lera textos de Eduardo Lourenço em Bordéus era a mesma autora que viajava carregada de malas e comprimidos, vivendo obcecada com pequenas maleitas. Uma peculiaridade desconcertante para todos aqueles que sentiam estar perante o mito Sophia. A preocupação obsessiva com a compra de repelente num país da Europa continental, e o simples facto de escolher como tema de conversa um assunto tão terreno como a picada de insetos, assombrou o poeta Al Berto em Bordéus: «Mas os mosquitos também picam a Sophia!?»
Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores (1964), Prémio Teixeira de Pascoaes pela obra O Nome das Coisas (1977), Grã Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada (1981), Grã Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (1987), Prémio da Crítica da Associação Internacional de Críticos Literários (1983), Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças (1992), Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (1994), Prémio Francesco Petrarca, da Associação de Editores Italianos (1995), Grã Cruz da Ordem de Sant’Iago da Espada (1998).
Portugal e outros países europeus tinham‑se já rendido à poesia e à personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen quando junta àquela lista de troféus a mais importante distinção da língua lusa. Em 1999, torna‑se a primeira mulher portuguesa a receber o Prémio Camões.
Por ser a forma mais imediata à época, a boa nova deveria ter chegado por telefone. Isto se a poeta não tivesse deixado o auscultador fora do descanso, causando alvoroço entre os que a tentavam contactar. Inquieta pela responsabilidade de ser a guardiã de tão importante nova e sentindo‑se impedida de a partilhar, à meia‑noite Maria Velho da Costa põe‑se a caminho.
Desloca‑se pessoalmente à Travessa das Mónicas para transmitir à amiga como a 11.ª edição do Prémio Camões tinha sido decidida por unanimidade no Brasil, em Salvador da Baía. Apanhada de surpresa e ainda descrente, questiona:
― «O Prémio, Maria? Qual Prémio?»
Ao que a amiga romancista respondeu:
― «O Camões».
Porque a madrugada não seja boa companheira, nem mesmo para notívagos como Sophia. Ou porque tudo aquilo – e àquela hora – parecia vir a despropósito, só lhe ocorre comentar:
― «Mas agora?»
Como dirá ao jornal Público e em várias entrevistas, «pensar muito em prémios é um mau pensamento». Mas Sophia dava importância ao facto de ser reconhecida em vida e gostou especialmente de receber o Prémio Camões.
Até porque era muito criteriosa com tudo o que publicava. Crítica com os outros como com ela, era a primeira a exigir de si própria.
Preparada para gerir o choque da poeta, a coautora de Novas Cartas Portuguesas, com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, fica pela Travessa das Mónicas a receber os telefonemas, apresentando‑se como secretária de Sophia, com quem celebra até às duas da manhã com cerejas e vinho branco.
A distinção, criada para destacar anualmente um escritor que tivesse contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua portuguesa, na altura ainda apenas em Portugal ou no Brasil, valia 10 mil contos (50 mil euros). Nesse ano, em que o júri era presidido por António Alçada Baptista, o nome de Sophia havia sido proposto pelos portugueses e logo aceite pelos brasileiros.
Quando o dia clareou, Sophia recebeu, além dos telefonemas e telegramas, enormes ramos de rosas vermelhas, as suas favoritas, como as oferecidas pelo casal amigo Ana e João Bénard da Costa. Juntos, aproveitam a ocasião festiva para planearem uma viagem à Grécia, que nunca chegaria a acontecer por Sophia se sentir já debilitada e sem coragem para longas caminhadas ou escadarias, ainda que a prometerem encontros com os deuses.
Embora gostasse de prémios, especialmente deste, e a poucos meses de completar 80 anos, Sophia mantinha o seu lema de vida: «Não é o importante, é o que importa.» Talvez defeito de poeta, nunca deixara de se focar no que realmente contava: «Eu para escrever preciso de paz, silêncio e liberdade... faltando essas coisas não se pode escrever.»
No dia da entrega do prémio, 19 de novembro de 1999, pela mão do presidente da República, Jorge Sampaio, Sophia escolheu alhear‑se dos salamaleques oficiais para dedicar tempo ao filho do irmão Gustavo, então nos seus 18 anos. Perante a pergunta de Sampaio e Maria José Rita sobre se precisava de alguma coisa, pediu: «Sim, que chame o meu sobrinho Tomás».
Queria mostrar os jardins do Palácio de Belém ao Andresen mais novo, aquele que já não imaginava vir a conhecer quando o irmão foi pai pela quarta vez, aos 60 anos.
Escolheu a família para viver o momento. Representada por um adolescente, a quem podia levar pela mão e revelar o que tanto a encantara na sua própria infância: a natureza e os jardins. Agora não os do Campo Alegre, mas os da residência oficial da mais alta figura do Estado, no Palácio de Belém.
Também no seu discurso da cerimónia de entrega do Prémio Luís de Camões, o presidente mencionou as gerações futuras, considerando que, ao distinguir Sophia, homenageava um símbolo da língua portuguesa que era uma referência.
«De uma beleza tão alta e exata, a sua obra é, no século agora a terminar, uma das criações em que nos revemos e de que nos orgulhamos. Nos poemas, nos contos, nas histórias infantis, nos testemunhos de sabedoria, Sophia fala‑nos da nossa cultura e da nossa civilização como memória, vida e futuro. Fala‑nos da luz do sol e da sombra que é o seu espelho, da elevação das montanhas e da imensidão do mar, das estátuas gregas e dos atos humanos. Fala‑nos do trigo que sacia a fome aos homens, das obras imortais que são capazes de criar e também dos campos de concentração onde matam. Fala‑nos da beleza, da generosidade e da vergonha que não pode ser esquecida para não ser repetida.»
Antes de entregar a distinção que leva o nome do autor d’Os Lusíadas, o chefe de Estado assinala a importância do sentido de justiça na obra da poeta: «De todos nós deve ser a pergunta que Sophia põe na boca de um dos três Reis do Oriente. “Que pode crescer dentro do tempo senão a justiça?”» E enfatiza o seu papel de combate à repressão recorrendo aos versos da própria autora:
Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
Foi poeta, mas também por isso foi política.
«Verdadeiramente aristocrata porque fez do que recebeu uma marca do espírito, uma exigência, uma responsabilidade e uma partilha, nunca um privilégio, uma vaidade ou uma marca social de discriminação, a atitude moral de Sophia, de uma integridade luminosa, foi política, no mais nobre sentido que, desde os gregos, se dá à palavra política – a dedicação à pólis, a cidadania.»
Por os escritos que deixa serem um testemunho de «universalidade e de grandeza», Sampaio termina agradecendo a obra
da autora e a missão que tem cumprido na língua portuguesa.
A poeta ouviu com atenção, e alguma emoção, as palavras que o presidente da República lhe dirigiu. Mas mesmo em dia de consagração pública, a premiada continua a ser Sophia. Distraída do que é empecilho à conquista da tão amada imanência, perde o cheque do galardão – do tamanho de uma pessoa – obrigando a família a regressar ao palácio depois da cerimónia para procurar o documento impresso especialmente para aquele momento.
Passados os anos‑fronteira entre a adolescência e a idade adulta, Tomás recorda esse dia como a substância do que era a tia Sophia: «Não estava para formalismos nem categorizava as pessoas. Preferia procurar os detalhes incomuns de cada um. Nunca lhe senti necessidade de importância ou promoção. Fazia as coisas pelo bem que lhe sabia, com naturalidade e alguma inocência. Teve sempre esse lado da infância e da liberdade de escolher.»
O Prémio Camões, que em 1995 havia sido entregue a José Saramago, três anos depois distinguido com o Nobel, trouxe consigo maior reconhecimento internacional à poeta portuguesa. Em 2001 recebe o Prémio Max Jacob Étranger e em 2003 o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero‑Americana, o último entregue em vida. Já doente, não se consegue deslocar a Madrid para receber o prémio, fazendo‑se representar pelo filho, Miguel Sousa Tavares.
Muitos entendem que ficou a faltar o Nobel.
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