O final de "The Last of Us" é tudo e mais alguma coisa e vinca bem aquilo que um ser humano é capaz de ser: brutal e maravilhoso, violento e cuidador, atencioso e impiedoso. É a demonstração daquilo que um pai é capaz de fazer por amor — independentemente do que isso representa, do que está em causa ou das consequências dessa decisão. Quando toca aos nossos, especialmente no caso de crianças ou filhos, deixa de existir certo ou errado, há apenas o cuidar e salvar.
Craig Mazin, o cocriador da série, explicou que este episódio não serve apenas para mostrar as partes bonitas do amor. Tem a intenção de mostrar também aquilo que muitas vezes não se fala ou que fica omissa dos livros e das histórias: o seu lado negro. Pegando nas suas palavras, é sobre "como tudo o que é maravilhoso e tudo o que é mau pode, em última análise, começar com o amor". É esse o intuito de toda a jornada, destes nove episódios: até onde vai um pai pelo amor?
Mas, pelo início. Aqui no real sentido do termo, visto que o episódio vai até à origem de toda esta história: ao nascimento de Ellie.
Flashback: As duas Ellies
Nas cenas iniciais deste Episódio 9 ("Look for the Light"), recuamos 14 anos no tempo e damos com Anna, uma mulher muito grávida e a correr desalmadamente num bosque em direção a uma casa (pela urgência da cena e do ruído em redor, percebemos que está a fugir de um infetado). A muito custo, Anna consegue chegar ao destino, subir as escadas e barricar-se exausta no chão de um quarto — mas a natureza não perdoa e as águas rebentam, vendo-se sozinha, prestes a dar à luz e à mercê do perigo. Perigo que ultimamente consegue entrar em casa e romper pela porta do quarto adentro.
O que acontece a seguir é uma batalha pela sobrevivência, que termina com Anna a espetar a navalha — que Ellie vai herdar — na cabeça do infetado. No entanto, desenrolaram-se duas coisas durante este doloroso processo: a bebé Ellie nasce e Anna é mordida (por esta ordem dos acontecimentos).
A nova mãe é forçada a reagir, cortando rapidamente o cordão umbilical (que explica a imunidade) enquanto aguarda desesperadamente que alguém chegue em seu socorro — que acaba por ser Marlene, a líder dos Pirilampos, com quem percebemos ter uma relação de amizade. No seu último suspiro, Anna pede a Marlene que tome conta da filha (ficando assim revelado como é que sabia tanto sobre Ellie no Episódio 1) e que esta acabe com a sua vida num ato de misericórdia antes de se transformar.
Diga-se que em toda esta sequência inicial funciona como bónus duplo para os fãs mais antigos:
- 1) Anna é interpretada pela atriz Ashley Johnson, a voz de Ellie nos videojogos, cuja personalidade se confunde com a própria personagem. Ou seja, neste episódio, estamos a ver a atriz que muitos consideram ser a Ellie, a dar à luz a personagem que ajudou a criar. É ao mesmo tempo um momento perfeito de homenagem a alguém que tanto contribuiu para o sucesso de "The Last of Us" e uma espécie de "passar da tocha" a Bella Ramsey;
- 2) A par, é um momento muito importante porque confirma uma teoria sobre a imunidade de Ellie que os fãs gamers há muito suspeitavam - baseada numa carta escrita por Anna a Ellie que pode ser encontrada como artefacto no primeiro jogo.
Presente: Momentos icónicos
Explicada a imunidade de Ellie, o episódio corta para a atualidade e damos conta de que Ellie e Joel já se encontram em Salt Lake City — local sinalizado no mapa do laboratório na universidade com os macacos no Episódio 5. No entanto, há quase uma troca de papéis e de personalidades. Joel recorda as aventuras dos últimos episódios, mostra-se mais falador e bem-disposto. Ellie, por seu turno, está de olhar vazio, calada, perdida nos seus pensamentos e a sofrer com todo o trauma do tempo recente. O coração violento de David ainda é memória fresca.
É então que acontecem dois momentos-chave do episódio:
- No primeiro, enquanto Ellie e Joel inspecionam um edifício abandonado (e em obras) para procurar um caminho seguro para o hospital, a série replica quase ipsis verbis uma das partes mais icónicas de toda a esfera "The Last of Us"— a cena em que Joel e Ellie interagem com uma girafa. É uma das que os fãs mais acarinham e guardam na memória. Tanto que o site de videojogos IGN interrogou mesmo "se esta não será a cena mais importante" da saga.
Convém dar contexto para justificar a importância da girafa: no jogo, os gamers vêm de uma sequência super intensa, difícil e de muitas a horas a matar infetados, a fugir de perigos (humanos e não-humanos). O jogador está preocupado com o horror e o realismo mundano da sobrevivência — só que é esse mesmo realismo, que torna o jogo uma experiência brilhante, que faz com que a mesma experiência seja igualmente esgotante. Depois, claro, convém não esquecer que todo o stress provocado pelo confronto com David ainda está cravado no coração: quer no da Ellie, quer no do jogador.
Ellie, como se disse, está a começar a sofrer os danos psicológicos das perdas de Riley, Tess e do confronto com o vilão maior da temporada. Ou seja, passou de adolescente que faz piadas com revistas pornográficas a adolescente silenciosa. E é neste espírito, derrotista e niilista, que aparece uma girafa no meio do nada — e aparece carregada de simbolismo. A girafa é um animal terno, afável, mas imponente, que em "The Last of Us" simboliza a esperança e a prova que, apesar de tudo o que há de mau, ainda existe no mundo espaço para a beleza, afeto e bondade.
O segundo, depois do momento girafa, dá-se quando Joel e Ellie passam por um hospital militar abandonado. É aqui que Joel conta a verdadeira história da cicatriz na cabeça - foi uma tentativa de suicídio, motivada pela morte de Sarah. Ellie interrompe a confissão e diz-lhe que Joel está a contar aquela história para dizer que o tempo cura tudo, mas um Joel e olhar penetrante corrige a versão: "Não foi o tempo que o fez". É o mote para uma conversa honesta em que dizem o que realmente sentem um pelo outro, mas sem o "I love you" ou o "I Love you too" destas ocasiões. Nem um nem outro são brindados à arte das palavras e dos sentimentos. Porém, sem dizerem a palavra, dizem tudo. É uma daquelas cenas vitais para o desfecho do episódio porque vai humanizar de tal forma Joel - muito por culpa do talento de Pedro Pascal - que o vamos desculpar pelo mal que vai fazer a seguir.
Confessado o amor e feita a projeção para o futuro ("Quando acabarmos vamos para onde quiseres. Ter com o Tommy, para a quinta das ovelhas, a Lua"), Joel quer manter o clima de positividade com a filha adotiva e pede para ela sacar do seu amado livro das piadas secas. Dá-se um riso barato aqui, avalia-se uma anedota acolá, mas o bonito momento de família é interrompido por uma explosão de uma bomba de fumo atirada por dois membros dos Pirilampos.
O episódio corta para um Joel a despertar no hospital, onde é saudado por Marlene — que revela que não o pode levar até Ellie porque Ellie está a ser preparada para uma cirurgia. É que afinal não é só "tirar sangue" ou fazer "testes". O cientista dos Pirilampos pensa que a imunidade de Ellie existe devido à sua exposição ao cordyceps desde o nascimento, sendo que o seu corpo liberta um mensageiro químico que engana a infeção e leva-a a pensar que ela já está infetada. No entanto, há um problema, como Joel faz questão de frisar a Marlene: o cordyceps cresce no cérebro, o que significa que Ellie vai morrer durante a cirurgia. Marlene insiste que eles não têm outras opções, já que Ellie é a única pessoa imune que os Pirilampos encontraram. Mas Joel já não ouve grande coisa e seguem-se três minutos de violência insana e de absoluta barbaridade, em que se vê um pai que não quis saber de mais nada a não ser salvar a filha — matando tudo e todos os (inocentes) que se cruzaram no seu caminho.
É uma decisão que, obviamente, levanta muitas questões. Alguns vão argumentar que a decisão de Joel foi compreensível dada a sua ligação emocional a Ellie, enquanto outros acreditam que foi egoísta e não tem defesa. Mas seja qual for a opinião, a realidade é que se trata de um final que nos apresenta um dilema moral complexo, que desafia as nossas crenças e valores. Haverá, afinal, uma decisão certa e errada? A moralidade diz-nos que sim, mas a opinião divide-se, porque o final está escrito de maneira a que tudo fique aberto à interpretação e à análise de cada um.
- No podcast oficial da série, Neil Druckmann, o criador do jogo, revelou que nos testes iniciais, a maioria dos jogadores estavam divididos (50/50) quanto à decisão final de Joel e quanto ao que fariam se realmente lhes fosse dada a opção de potencialmente salvar o mundo ou apenas salvar Ellie. Exceto um grupo. Os pais, disse Druckmann, estavam 100% com Joel. Sem exceções.
Porém, não é ainda nesta toada ética que a série acaba. Depois deste momento à John Rambo, Joel ainda mentiu descaradamente a Ellie. Primeiro no carro em que fugiram após o raide no hospital (em que disse que existiam "muitas outras pessoas imunes" e que "não há cura") e a seguir na última cena da série e do jogo (um dos diálogos mais populares da saga):
Ellie: Jura. Jura que tudo o que disseste dos Pirilampos é verdade.
Joel: Juro.
Ellie: Ok.
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