Determinar qual é o ponto zero do rock n' roll é uma tarefa hercúlea. A discussão tem tantos anos quantos o género musical, e tem envolvido não apenas académicos e artistas como, claro está, os fãs, sem os quais a música não teria sido mais que uma nota de rodapé dentro da história da cultura norte-americana. Os candidatos são muitos, e variados: há Robert Johnson, há Elvis, há Bill Haley, Chuck Berry, Little Richard, Sister Rosetta Tharpe e até Hank Williams. E há Ike Turner, que em 1951 gravou aquela que muitos consideram ser a primeira canção rock de sempre, 'Rocket 88', um blues a rebentar de ritmo, ode a um (então) recente modelo de automóvel da Oldsmobile.
Mas esta não é a história de Ike Turner. Não poderia ser, tendo em conta tudo o que veio depois – não só no que ao rock n' roll diz respeito, como em relação à cantora pela qual Ike se deslumbrou, apadrinhou, nutriu e, durante o auge da sua carreira, espancou brutal e violentamente como uma qualquer boneca de trapos. A linguagem tem que ser dura porque esse foi um período duro na vida de Tina Turner, que superou a medonha omnipresença do seu colega e carrasco para, já mulher quase na meia-idade, se tornar numa das maiores estrelas do séc. XXI.
Num ano em que o nome Tina Turner volta a ser notícia, tanto pela estreia do documentário “Tina”, que voltará a contar a história de vida da voz por detrás de 'Private Dancer' ou 'What's Love Got To Do With It' (chegará à plataforma HBO este sábado, mas sem data de estreia em Portugal), como pela sua nomeação para o “corredor da fama” do rock n' roll (onde já se encontra, não a solo e sim na companhia de Ike), importa recuperar para a praça pública tanto os seus sucessos como os seus traumas – ainda para mais estando nós na era #MeToo. «A Oprah ajudou-me a perceber o quão importante era que eu continuasse a falar. Era uma oportunidade de chegar a mulheres abusadas, de trazer esta temática difícil à baila», escreve em 2018. Esta não é, portanto, a história de Ike porque é uma história de sobrevivência e porque acabou, ele próprio, e por culpa própria, por ser uma nota de rodapé. E sobrevivência é a segunda coisa que Tina Turner soube fazer de melhor. A primeira foi cantar.
De volta ao começo
Não se pode dizer que a infância de Tina Turner, nascida a 26 de novembro de 1939, tenha sido pobre. Na Nutbush (Tennessee) onde foi criada, nada faltava para os padrões da época. Havia roupa e comida sobre a mesa, havia um vasto campo onde, criança, trabalhava a apanhar algodão e onde se divertia, de quando em vez, a subir às árvores. Mas faltava amor, emoção que Tina, cujo nome de baptismo é Anna Mae Bullock, só conheceria já depois do seu sucesso. A filha mais nova de Zelma Priscilla e Floyd Richard Bullock era uma criança indesejada, e essa ideia ainda persiste na cabeça de Tina, hoje com 81 anos. «A minha mãe era uma mulher que tinha filhos, mas que nunca os quis realmente ter», escreve, na sua autobiografia de 2018, “My Love Story”.
À falta de afeto dos pais, a menina Anna (que até se suspeitava ser fruto de adultério) foi forçada a encontrar na música algo que a transportasse para longe de uma vida emocional difícil. Acompanhada pela avó, descobre, como muitos afro-americanos, a música dentro de uma igreja – pelas vozes de coros gospel –, chegando, pouco depois, a cantoras como Mahalia Jackson e a já mencionada Sister Rosetta Tharpe. Mas que não se diga que as suas maiores influências foram mulheres. Tina viu-se sempre como fazendo parte do rock n' roll que, quer se queira quer não, é um estilo musical sobretudo falocêntrico; não é de estranhar que boa parte das canções que interpretou tenham sido compostas por homens, até porque a própria admitiu «não ouvir muita música feita por mulheres».
A adolescência foi um período igualmente ausente de grandes momentos de felicidade. Aos 40 anos, não havia homem (e até algumas mulheres) que não encontrasse nas suas longas pernas uma fonte para os mais variados desejos e sonhos libidinosos, mas Anna não sabia senão estranhar-se. Citada em “Break Every Rule”, biografia de Mark Bego, a própria confessa: odiava o formato do seu corpo. «Tinha um pescoço e um tronco pequenos, era como se fosse feita de pernas». Ter ancas e seios proeminentes era sinónimo de sensualidade, e a cantora via-se à parte desse mundo.
Sem corpo, encontra o respeito alheio pela força da sua voz. Certo verão, em Knoxville, para onde os pais se mudaram para trabalhar, deixando as irmãs com familiares, Anna dá por si numa loja a encantar as vendedoras com as suas versões das canções que escutava atentamente no rádio. Sem artifícios e apenas por diversão, ganhando inclusive algumas moedas pelas prestações, estes seriam os seus primeiros “concertos”. Nenhuma das pessoas presentes imaginaria sequer que aquela rapariguinha à sua frente seria, quase meio século depois, uma enorme estrela. Em Nutbush, descobre igualmente uma paixão pelo cinema (chega a sonhar ser atriz), e junta-se ao coro da igreja.
Antes dos seus verdes anos, seria obrigada a passar por novas dificuldades. A mãe abandona a família e muda-se para St. Louis; o pai volta a casar, mas o enlace fica marcado por vários casos de violência doméstica. Quando Anna faz 13 anos, também ele a deixa sozinha, na casa de uma prima, onde arranja trabalho como empregada doméstica de um casal branco. Para além de aprender todos os afazeres diários, descobre também – palavras suas – que um casamento pode ser algo feliz, já que até aí não tinha tido grandes exemplos disso.
Homem típico
Após entrar para o liceu, onde se torna “menina de claque” e perde a virgindade no banco de trás de um carro (acontecimento que terá inspirado 'Steamy Windows', canção lançada em 1989), Anna muda-se para St. Louis, onde reencontra a mãe. E é nesta cidade que se cruza com o homem que, mais que nenhum outro, e para o (pouco) bem e o (muito) mal, irá mudar para sempre a sua vida: Ike Turner.
Ike era uma estrela local, tanto pela sua música como pelo seu temperamento. De pavio curto, tornara-se conhecido por espancar outro homem com a coronha da sua arma. Anos mais tarde, a cantora tentaria compreender o porquê deste tipo de comportamentos: o pai de Ike havia sido brutalmente espancado após se envolver com uma mulher branca, e no liceu as miúdas não lhe ligavam. O ódio, a sensação de vingança e de paranóia, foram tomando conta do seu espírito. Não que isto sirva de justificação, naturalmente. Mas Tina Turner mostrou-se sempre apta a perdoar, mesmo quando o perdão não parece possível.
Numa certa noite, Anna vê-o a tocar com os seus Kings of Rhythm, ficando mais fascinada pela música que pelo “mulherengo” Ike. «Não era o tipo de homem pelo qual se sentia atraída», escreve Mark Bego. Mas aquele ritmo, aquele calor elétrico, fizeram mossa: a palavra que a cantora usa é “transe”. Os espetáculos de Ike Turner e dos Kings of Rhythm, nestes clubes fumarentos e alcoólicos, era pontuado pela ocasional chamada ao palco de uma qualquer «mulher bonita» que quisesse mostrar os seus dotes. E Anna, sentindo o “bichinho”, acede. Com uma versão de 'You Know I Love You', de B.B. King, leva Ike à estupefação. «Ele ficou tão surpreendido» com a voz dela «que parou de tocar, aproximou-se de Anna e levantou-a no ar», relata Bego.
Inicia-se aqui a parceria entre Ike Turner e Anna, que mudaria, a pedido do primeiro, o seu nome para Tina – inspirado por “Sheena, a Rainha das Selvas”, com o nome registado em nome de Ike, assim como a Tina pessoa passaria a ser sua propriedade. Tina passa a atuar com Ike de forma regular, mesmo que a sua mãe tenha, a princípio, torcido o nariz dada a má fama do autor de 'Rocket 88'. Tem de ser este a convencer Zelma a permitir as saídas da sua filha. Estávamos no final dos anos 50, e já outros artistas faziam parte da dieta musical de Tina Turner: Ray Charles e Sam Cooke à cabeça. «Não gosto de canções bonitinhas. Gosto delas sujas, e o rock n' roll adapta-se ao meu tipo de voz», explica mais tarde a cantora.
Tanto mentor como colega, Ike viria a ser também amante de Tina, mesmo que esta não nutrisse por ele qualquer sentimento romântico. Bastava vê-lo rodeado de tantas e tantas mulheres, bastava ver a forma como se encolerizava, para que esse sentimento não pudesse existir. Ao início, o objeto dos desejos de Tina é outro: Raymond Hill, que conheceu através de Ike, e que se tornou no pai do seu primeiro filho, Raymond Craig, nascido em 1958. Aos quinze dólares que Ike lhe pagava por semana, para cantar, Tina juntou o salário de um trabalho numa maternidade local, o que lhe permitiu mudar-se para um apartamento na companhia do filho. Não durou muito; pouco depois, encontra o seu pousio na própria casa de Ike.
A própria descreve o seu relacionamento com Ike como “fraternal”, mas depressa este se torna sexual. À medida que este tipo de relação crescia, Tina começa por fim a sentir algo por Ike, e engravida do seu segundo filho. As filhas-canções também surgem por volta desta altura: 'Box Top', primeiro, na qual faz apenas coros, e 'A Fool In Love', a seguir, quando o cantor original, Art Lassiter, desaparece com o dinheiro do cachê ainda antes de a gravar. 'A Fool In Love' torna-se um sucesso numa rádio local, e daí é enviada para editoras de todo o país, chegando ao segundo lugar das tabelas de vendas relativas à música R&B. Uma dessas editoras, a Sue Records, assina contrato com Ike, que não deixava de ser o principal compositor e maestro da empreitada Kings of Rhythm.
Que tem o amor a ver?
Visto que assinavam como Ike e Tina Turner, não foi de estranhar que o público tenha assumido que se tratava de um casal. Mas o casamento só viria mais tarde. Pelo meio havia as digressões, que nem a doença conseguia travar. Quando Tina foi hospitalizada, durante seis semanas, devido a um caso de hepatite, Ike chegou ao ponto de contratar uma prostituta no seu lugar, dando início a um rumor que se prolongaria durante anos – o de Tina como “mulher da vida”. Um acidente num cabeleireiro força-a a adotar uma das suas imagens de marca, as muitas perucas que fizeram as delícias dos fãs nos anos 80. Entre Ike e Tina ainda havia relação, mas não a esperada. «Sentia que ela era minha irmã, e não minha mulher», afirmou o músico anos mais tarde. «O sexo com ela parecia obrigação». Curiosamente, o mesmo dirá Tina, usando outra palavra: violação.
O pesadelo Ike Turner passou a tomar conta da cantora. Para além dos abusos psicológicos, existiam as agressões, gratuitas e violentas, muitas vezes até antes dos próprios concertos, levando-a a contratar uma maquilhadora que conseguisse disfarçar as marcas do ódio. A pressão que Ike poderia estar a sentir para continuar a debitar êxito atrás de êxito era descarregada na sua anti-protegida mas, à época, poucos o sabiam – ou se importavam. O casamento dá-se, por fim, no México, após uma ex-amante ter começado a exigir parte dos lucros de Ike. «Alguém lhe passou um papel e ela assinou-o», narra Mark Bego. Em “My Love Story”, Tina destapa um pouco mais do véu ao qual não teve direito: na mesma noite em que se casaram, Ike obriga-a a visitar um bordel em Tijuana.
Tina Turner não queria o casamento mas, conforme desabafa mais tarde, estava a pensar na sua família e na sua carreira: muito dificilmente uma mulher afro-americana, nos anos 60, conseguiria cuidar sozinha de dois filhos. E mesmo que o dinheiro obtido com a música fosse parar aos bolsos de Ike, Tina sabia que, pelo menos, teria o que vestir e o que comer. Na idade adulta, como na infância, tratava-se de sobreviver sem amor. Mas a cantora sabia-o: um dia teria que o deixar, mesmo sendo ele o responsável máximo pelo seu sucesso. O medo perpétuo que sentia a isso a obrigava.
Um dos primeiros acasos de liberdade, onde Tina sentiu que poderia, de facto, ter uma carreira longe de Ike Turner, deu-se em 1966. A convite de Phil Spector – outro génio musical cuja obra ficou irremediavelmente manchada pela sua violência – Tina grava e edita 'River Deep – Mountain High', dos maiores exemplos da wall of sound popularizada pelo produtor. O single não obtém grande sucesso nos Estados Unidos («era demasiado negro para as rádios pop, e demasiado pop para as rádios negras», justificou Tina), mas o Reino Unido descobriu algo nele: atingiu o terceiro lugar das tabelas nesse país. O público gostou, e os artistas também, com os Rolling Stones a convidar Ike e Tina Turner para fazerem as primeiras partes de uma digressão britânica. Nascem também aqui duas amizades para a vida de Tina, com Mick Jagger (que lhe roubou alguns dos seus movimentos de dança), e Keith Richards.
A vida privada de Tina impele-a, contudo, a procurar conforto em “videntes” - as quais admite frequentar ainda hoje. Uma delas dá o mote, dizendo-lhe estar destinada a tornar-se numa das maiores estrelas pop de todo o planeta, ao passo que o seu parceiro seria esquecido. Independentemente da veracidade desta história, mesmo quem não acredita em bruxas e sabe que elas existem não pode deixar de concordar: a profecia tornou-se realidade. A queda de Ike Turner para as drogas, sobretudo a cocaína, que o deixava num estado ainda mais violento e maníaco, acelerou o processo. Nestes tempos cruéis, Tina chega mesmo a tentar suicidar-se, tomando 50 Valiums de uma só vez. Ao acordar no hospital, a seu lado estava Ike, com as palavras que ninguém, especialmente uma suicida, quer escutar: «Se queres morrer, mata-te!».
Mostra algum respeito
Mark Bego descreve toda esta situação da melhor forma. Tina, diz, «havia gostado de Ike quando o conheceu. Durante algum tempo, amou-o. Quando essa sensação desvaneceu, voltou a gostar dele como amigo. Por fim, passou a odiá-lo e a odiar estar com ele». Como não? Por culpa de Ike, Tina Turner era visita regular aos hospitais, e era forçada a trabalhar mesmo estando grávida ou gravemente doente, já para não falar de todas as ocasiões em que teve que esconder um olho negro ou um lábio rasgado. Ike era uma ameaça constante à sua segurança, apesar de todo o sucesso que haviam obtido em conjunto. Alguém tinha que ceder; foi Tina.
Numa primeira tentativa de fuga, a cantora acaba em casa de uma prima, mas é imediatamente descoberta por Ike. Na segunda, refugia-se em casa da amiga Maria Booker, com os filhos, mas também essa saiu gorada. A gota de água deu-se em Dallas, dentro de uma limusina, com Tina a responder, pela primeira vez na sua vida, às agressões de Ike Turner. «Sabia que ia fugir», contou depois. À chegada ao hotel Hilton, ensanguentada e humilhada, deixa Ike a dormir num dos quartos e põe-se em fuga, caindo nas boas graças do gerente do Ramada Inn, nas proximidades, que a deixa ficar numa suíte sem pagar e coloca seguranças à sua porta. «A cara dela estava tão inchada que só conseguia comer sopa e bolachas», aponta Bego.
Pedindo auxílio ao manager de Ike, Tina voa primeiro para Los Angeles, para casa deste, e depois para a casa de Maria Booker, que a coloca a viver com a irmã, a portuguesa Ana Maria Shorter, esposa do músico de jazz Wayne Shorter. Meses mais tarde, Ike localiza-a, e procura recuperá-la pela força. Só a polícia local coloca um entrave nos seus planos. Por fim longe de Ike e auxiliada por amigas como Rhonda Gramm e Cher, que também havia passado por um casamento turbulento com Sonny Bono, Tina consegue algumas presenças na televisão e concertos em pequenos clubes. Os grandes palcos teriam, por agora, que esperar.
Divórcio finalizado, Tina limita-se a pedir não mais que os seus dois carros Jaguar, os royalties das poucas canções que compôs e os direitos sobre o nome Tina Turner. Do dinheiro de Ike não queria nem um cêntimo, deixando perplexo o juiz responsável pelo processo. «Ela não queria dever-lhe nada», diz Mark Bego. Doravante, só se preocuparia com a sua vida e com o seu futuro, após dezasseis anos de pesadelo. Estava finalmente livre, mesmo que a sua carreira tivesse sido colocada em ponto morto.
A música faz-me dançar
Metendo a quinta, Tina contata Lee Kramer, então manager de uma outra conhecida estrela dos anos 80, Olivia Newton-John. Este irá apresentá-la a um seu sócio, Roger Davies, no sentido de a contratarem. Mas Davies tinha algumas reservas, e só tirou as teimas após um concerto de Tina no Fairmont Hotel, em São Francisco. Como Ike anos antes, ficou tão impressionado com a voz e a performance da cantora em palco que decidiu assinar imediatamente contrato.
Mas os Estados Unidos, que a tinham visto nascer, não estavam ainda preparados para a ver a solo. Estávamos em 1981, o disco havia engolido a pop, a new wave preparava-se para o fazer. Já ninguém escutava o bom e velho rock n' roll. Até que surge a sua grande oportunidade, com três concertos no Ritz, altamente elogiados e muito bem frequentados: no público estavam nomes como Mick Jagger, Robert De Niro, Diana Ross ou Andy Warhol.
Na ressaca destes espetáculos, os Stones voltam a convidá-la para fazer as suas primeiras partes. O mesmo faz Rod Stewart, que dá um concerto com Tina, na Califórnia, que foi transmitido para todo o mundo via satélite. Porém, as grandes promotoras e editoras teimavam em não arriscar, pensando que Tina estava ainda com Ike Turner. Mais uma vez, foi o Reino Unido a salvá-la: 'Ball of Confusion', colaboração com a British Electric Foundation de Martyn Ware e Ian Craig Marsh (ex-Human League e mais tarde Heaven 17), foi um sucesso em terras de Sua Majestade. As guitarras haviam sido trocadas pelos sintetizadores e as máquinas de ritmos, mas a garganta continuava lá. Suja, poderosa, rock.
Com a British Electric Foundation, Tina lança também uma versão de '1984', de David Bowie, que acaba por impulsionar a sua carreira de forma inocente. A um grupo de executivos da Capitol, deixa escapar que Tina Turner é «a sua cantora preferida de sempre», levando a editora a apostar nela. Para trás ficou uma proposta de Roger Davies, que queria ver Tina a gravar um tema intitulado 'Physical'. A cantora rejeitou a proposta, e 'Physical' foi um sucesso nas mãos da sua outra artista, Newton-John. Poder-se-ia utilizar a expressão “auto-sabotagem”, caso o que viesse a seguir não se tivesse tornado muito maior que 'Physical'...
Dançarina privada
«Não vou cantar essa porcaria piegas», exclama Tina ao escutar a primeira maqueta de 'What's Love Got To Do With It'. Auto-sabotagem, não era? Tudo acabou por se resolver. O autor da canção, Terry Britten, acaba por lhe fazer alguns ajustes, e 'What's Love Got To Do With It' encontra mesmo o seu espaço em “Private Dancer”, o álbum que, gravado em apenas duas semanas, fez de Tina uma estrela. Não só por ter voz para isso, mas porque se soube rodear e aprender com os melhores: o tema-título é uma “sobra” dos Dire Straits, e ao seu lançamento sucede uma digressão com Lionel Richie.
A crítica especializada rasgou-se em elogios. Para o The New York Times, “Private Dancer” era «um marco na evolução da música pop/soul». O Los Angeles Times afirmava que a voz de Tina era tão sensual que seria capaz de «derreter o vinil». A MTV passou, abundantemente, o videoclip gravado para 'What's Love Got To Do With It', levando Tina a toda uma geração de jovens que não conheciam o seu trabalho com Ike. Só nos Estados Unidos o disco vendeu mais de 5 milhões de cópias, alcançando o estatuto de 5x platina – e o resto do mundo não se lhe mostrou alheio.
Para Mark Bego, o renovado sucesso de Tina Turner prendeu-se com o facto de que todos, com poucas exceções, «se surpreenderam com o seu aspeto e com a vitalidade e energia que exsudava em palco». Aos 45 anos, Tina tinha «uma atitude, uma beleza interior» que não permitia espaço à indiferença. Depois de anos e anos a remar contra uma maré de agruras e agonias, Tina encontrava o seu lugar ao sol – um lugar mais que merecido, não porque o seu passado inspirava pena, mas porque ela retinha, naquelas danças e naquela voz, algo de espetacular. Todas as revistas queriam tê-la na capa. As famosas pernas ajudavam, claro, apesar de Tina ainda se dizer «entretida» pela atenção constante aos seus membros inferiores. O segredo estava na atitude: Tina não sentia ter, nem parecia ter, a idade que constava do seu bilhete de identidade.
“Private Dancer” foi o início de uma escalada ao auge, e o álbum que lhe permitiu começar a acrescentar o seu nome à lista dos “grandes”. Como em 1985, quando o fez tanto no cinema, ao lado de Mel Gibson em “Mad Max 3 - Além da Cúpula do Trovão”, como na música, acrescentando a sua voz às de 'We Are the World'. A sua participação no Live Aid desse ano também ficou para a história, entrando ao lado de Mick Jagger para interpretar 'It's Only Rock And Roll', saindo sem a saia com que entrou, subtilmente arrancada pelo vocalista dos Stones. A cerimónia desse ano dos Prémios Grammy foi o corolário do seu sucesso: Gravação do Ano, Canção do Ano e Melhor Performance Pop.
Encontros no estrangeiro
Mais importante que qualquer estatueta era o facto de Tina, mulher conhecida por manter boas relações com qualquer fã que a aborde na rua, poder por fim cumprir o seu sonho de atuar perante gigantescas multidões, como tantos o fizeram antes de si. A digressão em torno de “Private Dancer” foi vista por cerca de 3 milhões de pessoas; a subsequente, em torno de “Break Every Rule” (álbum de 1986), foi-o por 5 milhões – e valeu-lhe um recorde no Guinness, quando 180 mil pessoas a viram atuar no Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, ainda hoje o concerto solo (com bilhetes pagos) de uma mulher com mais público de sempre.
Para além do lançamento de “Break Every Rule”, 1986 é também o ano em que Tina conquista uma estrela do “corredor da fama” de Hollywood, e edita a sua biografia, “I, Tina”, que anos mais tarde seria adaptada para cinema com o nome “What's Love Got To Do With It”. A ideia para o livro, conta Bego, surgiu porque Tina estava «farta» de falar aos jornalistas sobre Ike. Desta forma, qualquer questão sobre o ex-marido que lhe fosse colocada mereceria a resposta: «leiam o livro». A sua posição por esta altura era, à falta de melhor termo, de desafio. Muitos souberam dos seus problemas com Ike só após ler “I, Tina”, mas a cantora recusava descrever-se como «vítima». «Esse rótulo é uma desculpa», afirmou. «Como se atrevem? Eu mantive sempre a minha situação sob controlo. Estava com ele porque queria. Porque lhe tinha feito uma promessa».
Curiosamente, é a mesma opinião que Ike manterá até ao ano da sua morte, em 2007, com uma autobiografia própria pelo meio. O músico chegou mesmo a culpar Tina Turner pelas agressões que ele próprio havia feito, acusando “What's Love Got To Do With It”, o filme, de lhe ter sabotado a carreira e não mostrando qualquer tipo de arrependimento. Hoje em dia, a opinião de Tina mudou: vítima, sim, com a capacidade de poder ajudar outras mulheres com a sua história, e sem se deixar engolir pelo desejo de vingança. «Magoaram-me. Não me orgulho de me terem magoado, nem preciso que tenham pena de mim. Perdoo muito facilmente. Sou muito paciente. Aprendi muito com aquele homem doentio», diz.
O passado podia estar sempre predisposto a atormentá-la, mas Tina preferiu olhar para o futuro. E alcançou-o, quando conheceu Erwin Bach, diretor executivo da EMI na Europa e 17 anos mais novo que a cantora. «Precisava de amar alguém. Era uma mulher livre, com liberdade de escolha. E escolhi o Erwin», conta. Nesse caso de amor à primeira vista – foi Erwin quem a foi buscar ao aeroporto durante uma visita de Tina à Alemanha – a diferença de idades nunca foi problema. E quem seria capaz de rejeitar a voz de 'The Best', a canção que descreve a crença que muitos fãs de Tina Turner têm em relação à cantora?
Simplesmente a melhor
Depois de tanto ter (sobre)vivido, Tina Turner opta por colocar uma pausa na sua carreira. Estávamos em meados dos anos 90, e a cantora decide mudar-se com Erwin para a Suíça, onde ainda hoje reside. Pelo meio regressa momentaneamente ao estúdio para gravar, com os U2, 'GoldenEye', tema para o filme de James Bond com o mesmo título. Os jornalistas começam a atirar-lhe a questão em que poucos artistas querem pensar: a da reforma. «Penso muito em fazê-lo», confessa em 1997. «Na verdade, já o tentei. Nem era bem reformar-me, queria fazer mais filmes, viajar menos».
A morte da mãe, que mesmo nunca lhe tendo transmitido amor era sustentada por Tina, abalou-a – até se lembrar que a sua mãe sempre achou, mesmo quando Tina já era uma estrela e vivia com Erwin, que a cantora não era responsável pelo seu sucesso. Aliás, Zelma era ainda uma defensora de Ike Turner, com quem mantinha uma relação de amizade mesmo décadas após o divórcio entre Ike e Tina. «A minha mãe nunca me conheceu verdadeiramente, e atribuiu sempre o meu sucesso ao Ike. Havia sempre um fosso entre nós». Tina opta por não ir ao funeral, querendo evitar o circo mediático que acabou por ter lugar quando Ike a criticou pela sua ausência.
Na viragem do milénio, anuncia: a “Twenty Four Seven Tour” será a sua última digressão de sempre. Um engodo, já que a esta se seguiria uma digressão especial de aniversário, oito anos depois. Ainda assim, saltava à vista de todos que Tina iria deixar os palcos muito em breve. A própria confessava-se «cansada» das constantes viagens, e pretendia passar mais tempo recatada no seu lar. «Quando se tem quarenta anos disto, deixa de ser divertido e mágico. Passa a ser um trabalho», explica.
Ao longo dos últimos anos, vários problemas de saúde ameaçaram arrancar Tina do mundo dos vivos, nomeadamente um AVC (poucas semanas após o casamento com Erwin, em 2013), um cancro intestinal (que só foi conhecido em 2018, com a publicação de “My Love Story”) e uma insuficiência renal (resolvida quando Erwin lhe doou um dos seus próprios rins). Mas a cantora insiste em sobreviver, e em inspirar as gerações de hoje. Em 2018, estreou o musical “Tina!”, baseado na sua vida e nas suas canções. Em 2020, o produtor noruguês Kygo remisturou 'What's Love Got To Do With It', alcançando considerável sucesso. E, este ano, chegará ao pequeno ecrã o documentário “Tina”, com a chancela da plataforma HBO e a presença, via entrevistas, não só da própria como de alguns dos nomes que mais marcaram a sua vida, como a atriz Angela Bassett, que a interpretou no cinema, ou Kurt Loder, que a ajudou a escrever a sua biografia. Quem já o viu, em festivais de cinema como o Berlinale, só guarda elogios. No website Rotten Tomatoes, “Tina” reúne uma taxa de aprovação de 94%, baseada em 18 críticas publicadas. A revista Variety descreveu-o como «catártico», com Owen Gleiberman a escrever que «ao vê-lo, percebemos duas coisas: Tina Turner não é apenas uma força da natureza, mas um génio». No Hollywood Reporter, David Rooney destaca que «independentemente das vezes que a história de Tina foi contada», esta permanece «fascinante», apontando o documentário como «uma celebração, uma história única de sobrevivência». Continuará Tina Turner a ser simply the best? Talvez. Alguma vez deixou de o ser?
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