"Branco velho
Tinto e jeropiga
Com peixe frito"

Foi com Dany Silva na voz de Tito Paris que a conversa em plena arena do Campo Pequeno começou. A sala de espetáculos receberá o músico este domingo, 28 de novembro, num concerto com "O melhor de Tito Paris & Amigos". Já não é clara a razão pela qual "Branco, Tinto e Jeropiga" surgiu, mas não seria o único tema que teríamos oportunidade de ouvir naquele exclusivo do embaixador da música cabo-verdiana. Embaixador, com passaporte diplomático, e comendador da Ordem do Infante D. Henrique.

Com 58 anos e mais de trinta anos de carreira, Tito Paris trabalhou com Bana, Dany Silva, Paulino Vieira, Cesária Évora, Paulo de Carvalho, entre tantos outros. E é precisamente com uma história com Paulo de Carvalho que começamos esta entrevista — "mandei-o para aquela parte e desliguei o telefone".

Do Mindelo a Lisboa, do baixo à bateria, da "Voz de Cabo Verde" ao sorriso de uma crioula, de Cesária a Madonna. Percorremos vários caminhos numa estrada calcetada por grandes músicos — Tito Paris, incluído.

Sobre a 'rainha da pop' recai um elogio traiçoeiro. Madonna, que gravou "Batuka", tema do mais recente álbum "Madame X", com a Orquestra de Batukadeiras — a qual também levou em tour —  teve "visão", algo que o ministro da Cultura de Cabo Verde "não tem". "Ele é meu amigo, mas está a dormir", diz Tito Paris. Não só ele, como todos os ministros da Cultura da lusofonia, acrescenta.

"A lusofonia tem pessoas fantásticas para dar ao mundo. Da mesma forma que o Dino D'Santiago deu à Madonna, e que a Madonna teve a visão de ir buscar fulano, sicrano e beltrano", atira. Para ler nesta entrevista, que de morna só teve mesmo a música.

Estamos no Campo Pequeno, onde daqui a uns dias receberá os seus "amigos de sempre". Quem são eles?

Tenho vários amigos, muitos deles de sempre. Estarão comigo a Mariza, a Cremilda Medina, o Paulo de Carvalho, o Agir, o Paulo Gonzo, o Paulo Flores... E mais surpresas. Mas de todos os amigos que já citei, o amigo mais fiel que terei aqui comigo é o público. Costumo dizer que o público é 70% do concerto, 25% somos nós.

E os outros 5%?

São as surpresas [ri-se].

De onde vêm essas amizades. Por exemplo, com o Paulo de Carvalho?

Vou contar uma história muito engraçada. Desde criança, em Cabo Verde, que ouvia o Paulo de Carvalho. "Chamava-se Nini, vestia de organdi..." [canta]. Quando vim para Portugal comecei a seguir o Paulo pela televisão, na altura só havia a RTP. Falamos de 1981-82.  Mais tarde, quando comecei a minha carreira, o meu compadre e padrinho do meu filho, o António Vieira, como sabia que gostava muito dele, ligou-me e fez-se passar pelo Paulo de Carvalho. Já uns anos depois, quem me ligou mesmo foi o Paulo. Então mandei-o para aquela parte e desliguei o telefone. Voltam a ligar-me e dessa vez era o empresário José Serra. "Então meu, o Paulo de Carvalho liga para ti e tu mandas para aquela parte", disse-me. Eu fiquei envergonhado, claro. Contei ao Serra tudo o que se tinha passado e da partida do meu compadre. Quando o conheci o Paulo pedi-lhe desculpa e contei-lhe o que se tinha passado. Desde então que somos grandes amigos. Trabalhei com ele, já fizemos uma tournée de norte a sul de Portugal, fomos a Cabo Verde. Aprendi muito com ele, por isso não podia faltar neste palco.

O Dany Silva que puxou por mim, foi com ele que me assumi como cantor, como artista

Pelo que contou, terá não só o Paulo de Carvalho como o Agir. Duas gerações em palco. 

Eu andei com o Agir ao colo. Fico muito feliz por vê-lo hoje onde está e por poder dividir o palco com ele.

Este concerto comemora 34 anos de carreira, mas em 2012 já tinha feito um concerto de celebração dos 30 anos. Desde quando é que estamos a contar?

Eu comecei a cantar em 1987, mas sou músico profissional desde 82. Conto desde 87 para cá. Comecei a cantar nos bares, com a "Voz de Cabo Verde", depois assumi a minha carreira com o Dany Silva.

Começou no baixo, depois veio a bateria e a guitarra, e por fim a voz. Foi fácil essa transição?

Foi o mestre Luís Morais que me trouxe de Cabo Verde a pedido do Bana. Quando cheguei, vinha todo contente a pensar que tocaria baixo, o instrumento que sempre toquei. Mas o Paulino Vieira disse-me 'não, não, não, você vai tocar bateria'. Bateria, eu? Comecei a ver a minha vida... Mas o Paulino disse para não me preocupar, que me ia ensinar e que seria um bom baterista. Bom, e assim comecei a tocar bateria na “Voz de Cabo Verde”.

Quando fomos fazer uma tournée na Europa, por Espanha, Bélgica, Holanda, vários países... Chegámos na Holanda e o baixista bazou. Foi a minha sorte, e voltei a tocar baixo. Quando chegámos a Lisboa, ainda estive três-quatro anos [com a “Voz de Cabo Verde”], mas vi que aquilo não era o que queria. Recebo depois o convite do Dany Silva, que estava em alta na época. Mais um desafio!, ele queria-me na guitarra.

Cantar, cantar comecei na "Voz de Cabo Verde" incentivado pelo Paulino Vieira. Ele queria que cantasse, mas eu dizia-lhe que não sabia, tinha vergonha. Foi o Dany Silva que puxou por mim, foi com ele que me assumi como cantor, como artista. Antes compunha para outras pessoas, depois comecei a compor para mim e a aceitar temas de outros compositores. Até hoje. A quem é que agradeço? Ao Paulino Vieira e ao Dany Silva.

"Vocês estão a ver Tito? Ele vai para Lisboa tocar com a "Voz de Cabo Verde", vai ser um grande músico". Nunca mais me esqueci destas palavras

Quem é a pessoa mais importante na sua carreira?

São muitas, mas tenho de falar obrigatoriamente no Luís Morais, que me trouxe de Cabo Verde. Um dia foi ter comigo, estava eu a jogar matraquilhos, e disse-me: "Tu vais comigo para Lisboa". 'Tá bem, pensei eu. Ele tinha cada coisa...

Sei que é adepto do Futebol Clube do Porto, recorda-se com que equipa estava a jogar?

Era azul, é sempre [ri-se].

E veio mesmo para Lisboa.

O Luís Morais mandou-me tirar os documentos, passaporte, licença militar, registo criminal, e dias depois estávamos a tocar num café-concerto, na rua de Lisboa, em Mindelo, quando ele disse para o público: "Vocês estão a ver Tito? Ele vai para Lisboa tocar com a "Voz de Cabo Verde", vai ser um grande músico". Nunca mais me esqueci destas palavras, parece que ainda oiço a voz dele a dizê-lo.

O rosto da Cesária era o passaporte de todos os cabo-verdianos

Chega com 19 anos a uma efervescente Lisboa dos anos 80. Recorda-se dos primeiros dias? Onde foi, com quem esteve?

Na altura havia muito pouca informação sobre Portugal em Cabo Verde. Os jornais saiam aqui e só dois ou três dias depois é que chegavam lá. A minha primeira preocupação foi mandar jornais para os meus amigos. Especialmente o jornal d'A Bola, n'é? E comia muita fruta, acordava de manhã e ia comprar fruta. Porque havia muito pouca fruta na altura em Cabo Verde. Agora temos tudo, mas na altura não havia. E eu gostava muito de uva, pêra, maçã, tangerina. Era muito nice.

Faz em dezembro 10 anos da morte da Cesária Évora. Poucas pessoas talvez saibam, mas produziu o primeiro disco da Cesária. Como é que a recorda?

A Cesária praticamente viu-me nascer, era muito amiga da minha mãe. Era tão pobre que, quando chovia, a casa dela ficava cheia de água. Mas a Cesária via as estrelas através desse buraco no tecto por onde chovia. Sem saber que ia fazer parte dessas mesmas estrelas que ela via. Ela morreu da mesma forma que nasceu: inocente, cheia de amor, humana, genuína.

O seu legado tem sido respeitado?

Eu penso que sim, mas falta mais. O rosto da Cesária era o passaporte de todos os cabo-verdianos.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

O que é que sentiu quando em 2019 a UNESCO proclama a morna como Património Imaterial da Humanidade?

Estava fora, no estrangeiro. Acho que estava em Angola e dali ia para o Brasil. Senti-me muito feliz e orgulhoso quando me ligaram a contar. Só que Cabo Verde devia ter dado muito mais importância a isso. Dado que a UNESCO nos reconheceu, o Estado, o Ministério da Cultura e todas as câmaras municipais deveriam reconhecer o mesmo. Cabo Verde não tem ouro, não tem diamantes, não tem petróleo. Temos duas riquezas: a nossa cultura e o Homem. Ambos têm de ser bem tratados.

Já fui desprezado várias vezes, já me pediram para cantar outra coisa 'melhor do que a morna'

Quer com isso dizer que a morna é mais reconhecida no exterior? Em Portugal, na Holanda...

Os cabo-verdianos da diáspora ouvem mais morna que os cabo-verdianos em Cabo Verde. Ouve-se morna em Cabo Verde, não estou a dizer o contrário, mas nos outros países dão mais valor.

Uma vez fui a Inglaterra dar um concerto e dei uma entrevista à BBC. O jornalista perguntou-me o que era a morna e eu respondi: 'já viu uma crioula sorrir?'. Ele chamou uma cabo-verdiana que trabalhava lá, uma mulher linda, com uns olhos verdes, que começou a sorrir quando me viu. A morna é isso, é o sorriso de uma crioula.

Esta conversa justifica o título que lhe é atribuído, o de embaixador da música cabo-verdiana. Isso acarreta alguma responsabilidade?

Sim. Desde que cheguei a Portugal nunca deixei de acreditar na minha cultura. Já fui desprezado várias vezes, já me pediram para cantar outra coisa 'melhor do que a morna'... Mas nunca desisti, nunca tive vergonha da minha cultura.

Em 2017, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou-o com a comenda da Ordem do Infante D. Henrique. Que importância teve esse reconhecimento?

Foi importante para a lusofonia. Senti-me orgulhoso, é um título de responsabilidade, mas minha forma de estar não mudou depois disso. Sou embaixador da cultura cabo-verdiana pelo mundo, tenho o título de diplomata...

O título de embaixador não é meramente uma força de expressão?

Não, tenho mesmo o passaporte de diplomata.

A condecoração teve algum significado para a grande comunidade cabo-verdiana em Portugal?

Acho que sim. Qualquer pessoa de Cabo Verde a trabalhar em Portugal, seja em que área for, ao ver um patrício ser condecorado pelo Presidente, deveria ficar orgulhoso. E eu acho que ficou. Ainda outro dia entrei num restaurante e alguém me chamou de senhor comendador. Não estou habituado a isso, mas respondi positivamente.

Sou dos dois países, com muito orgulho, amor e carinho. Tenho uma grande paixão e amor por Portugal e por Cabo Verde

Tem algum sonho ou objetivo que gostasse de ver concretizado?

Já consegui que alguns se concretizassem, mas tenho outros que não posso revelar. São sonhos muito bonitos. Se vir que não consigo concretizar em vida, revelo-os para ver se outra pessoa pode pegar neles.

Mas são sonhos...

Tudo depende do meu país, da vontade...

Quando diz 'meu país', refere-se a Portugal ou Cabo Verde?

Aos dois. Porque eu sou dos dois países, com muito orgulho, amor e carinho. Tenho uma grande paixão e amor por Portugal e por Cabo Verde.

Como é que vê outra geração de músicos, como o Dino D'Santiago ou a Mayra Andrade, a levar a bandeira de Cabo Verde a palcos internacionais e a novos públicos?

Fico muito contente.

Quando subo a um palco, penso nos cantores que já não estão cá. O que é que eu quero dizer com isso? Quero dizer que estou a andar numa estrada feita por outros cantores. Na lusofonia, essa estrada foi feita pelo Bana, Carlos do Carmo, Amália, Ildo Lobo, Bonga, etc... Eles foram os calceteiros, e hoje também já me sinto um. O Dino e os restantes estão a andar nessa estrada. Tudo o que quero é que eles sejam bons calceteiros mais tarde, melhores que nós.

E sobre o facto de a Madonna ter levado em tour a Orquestra de Batukadeiras?

A Madonna teve uma visão muito melhor do que a do ministro da Cultura de Cabo Verde. Ele é meu amigo, mas está a dormir. Não sabe onde é que está a essência... Acho que o ministro da Cultura deveria ser um político, e o secretário de Estado um homem de cultura.

É preciso fazer mais na lusofonia. Os ministros da Cultura da lusofonia dormem muito

Explique-me melhor isso.

Um ministro, de qualquer área, tem de ser um político. Fazer política. Mas ter também um secretário de Estado, que perceba de saúde, cultura, etc., para lhe dar suporte. Um ministro tem de ter visão, o da Cultura não tem. Todas as ilhas de Cabo Verde têm uma cultura diferente, não podemos dar atenção só a uma ilha porque se nasceu lá.

Quantas vezes é que já gravei com grandes cantores internacionais? Gravei com o Paulo de Carvalho, com a Mariza, com o Roberto Leal, com a Anna Maria Jopek (Polónia). O ministro da Cultura pronunciou-se? Não se pronunciou. Pelo Dino pronunciou-se, e eu fico contente. Mas Dino só gravou com a Madonna e eu gravei com todos os que já pronunciei.

O nosso Ministério da Cultura também está a dormir?

É preciso fazer mais na lusofonia. Os ministros da Cultura da lusofonia dormem muito, no sentido de [não perceberem] onde podemos chegar. A lusofonia tem pessoas fantásticas para dar ao mundo. Da mesma forma que o Dino deu à Madonna, e que a Madonna teve a visão de ir buscar fulano, sicrano e beltrano.

Depois de "Mim ê Bô" (2017), vamos ter de esperar mais 15 anos por um novo disco?

Não, será para breve. Já tenho material suficiente para começar a trabalhar num novo disco e em janeiro vou entrar em estúdio para gravar. E este concerto também vai dar em disco.

Porque o seu tempo é precioso.

Subscreva a newsletter do SAPO 24.

Porque as notícias não escolhem hora.

Ative as notificações do SAPO 24.

Saiba sempre do que se fala.

Siga o SAPO 24 nas redes sociais. Use a #SAPO24 nas suas publicações.