Urbano: uma carta de afecto
de José Jorge Letria
Lembras-te, Urbano, do tempo em que os jornais falavam,
apesar de não os deixarem falar
e de os quererem emudecidos de medo,
desse tempo em que falava em nós e por nós
a quimera de uma liberdade prometida
nos livros e nos sonhos que povoavam os livros?
Lembras-te, Urbano, das manhãs do Diário de Lisboa,
com o Assis Pacheco, o Raul Rêgo e o Pedro Alvim,
vozes cronicando a magia de um quotidiano
em que a única magia que havia
era um novelo de afecto dentro das palavras?
Lembras-te, Urbano, do tempo em que escrevias
para a malta da minha idade, nosso irmão mais velho,
erguendo a biblioteca do nosso amor
ao que era livre, exaltante e único?
Lembras-te, Urbano, de teres sido
nosso companheiro de canções
por via dos poemas que escreveste
para a voz límpida e alta do Adriano,
enquanto as portas em redor se fechavam
e as paredes tinham ouvidos
e a beleza das mulheres possuía o toque secreto
do que é perene e intemporal?
Lembras-te, Urbano, do timbre doce
da palavra «camaradagem», a que nunca deixaste de dar
o sentido total e absoluto de um pacto
celebrado com a paixão pelas causas?
Lembras-te, Urbano, de teres sido
o irmão mais velho dos cantores, dos poetas,
daqueles que contigo palmilharam os caminhos
da errância e da dádiva, andarilhos dos sonhos
que o cansaço e o medo nunca fizeram prescrever?
Lembras-te, Urbano, da tua coragem discreta,
da tua bravura de cavaleiro andante, sem alarde,
das lutas que valiam a pena
e que eram de todos os dias, como o amor,
como o pão, o vinho e a fraternidade?
Lembras-te, Urbano, de tudo o que a tua modéstia
não te consente que lembres,
porque eras daquilo em que acreditavas
muito antes de seres de qualquer outra coisa,
porque tinhas a doçura do aço
e a firmeza do granito, porque nunca precisaste
de levantar a voz para mostrares que tinhas razão,
porque nunca disseste não a quem te pedia
o consolo de uma palavra amiga,
tivesse a forma de um prefácio ou de um abraço
daqueles que permitem vencer tormentas,
porque nunca fizeste preço para a entrega
nem te bateste por nada em troca do que quer que fosse?
Lembras-te, Urbano, do sabor quente, do agasalho
que nos dava a palavra «resistência»,
ponte lançada entre as margens de um rio
que nós sabíamos que acabaria por desaguar
na praça luminosa das nossas canções?
Lembras-te, Urbano, dos dias mágicos
que podiam levar ao cárcere ou à morte,
mas que valiam a pena por serem únicos,
como único é tudo o que se ama
enquanto o amor teima em resistir?
Lembras-te, Urbano, de ouvir o teu Alentejo
a falar dentro dos teus livros
com a sua voz serena e sábia,
cantochão de uma memória tão antiga
como a das pedras e dos mitos?
Lembras-te, Urbano, de tudo o que nos dás
e nos deste, sendo o que sempre foste,
combatente das verdades relativas
que nunca deixaste tornarem-se dogmas,
porque o teu sentido de liberdade nunca o consentiu,
e assim te transformaste num homem
grande como os livros que continuaste a escrever,
portas abertas para a inquietação azul
das perguntas que nunca terão resposta?
Lembras-te, Urbano, de tudo o que vales
para nós que te lemos e estimamos,
geminados nesse amor à vida
que se tornou laborioso amor à escrita,
coração altaneiro e livre a marcar o ritmo
de tudo o que ainda nos falta descobrir?
Eu lembro-me, e por isso to digo,
voz colada à memória dos afectos,
como se dissesse: que pobres ficaríamos
se tu não fosses quem és, na escrita
como na vida, fraterno e firme
como o mais perene dos abraços.
(Poema escrito para uma homenagem a Urbano Tavares Rodrigues na Universidade Nova de Lisboa, em 2011)
URBANO: HERÓI CÍVICO E ESCRITOR INTEMPORAL
Reedita-se este livro no ano em que se celebra o centenário do nascimento de Urbano Tavares Rodrigues, de quem fui amigo durante mais de 40 anos e com quem trabalhei no Diário de Lisboa, tendo também partilhado com ele as emoções dos actos de resistência política em que estivemos presentes em Lisboa, no Alentejo e noutros lugares do país.
Recordo sempre a sua invulgar coragem física, a par de uma afectividade intensa que o ligava às pessoas com que se sentia identificado. Era sempre excepcionalmente generoso e solidário, mesmo com quem não o merecia.
Fui duas vezes ao Liceu Francês onde, afastado por razões políticas da Faculdade de Letras, devia sempre ser professor e aonde voltou depois do triunfo de Abril. Recordo-me da estima e da admiração que os colegas e os alunos tinham por ele, admirando a sua obra e a sua disponibilidade para ajudar quem dele precisava.
Um dia, estando eu em Bruxelas, numa reunião internacional de sociedades de autores, conversámos longamente ao telefone porque ele não compreendia nem aceitava a razão por que não lhe tinha sido atribuído o Prémio Camões, de que era indiscutível merecedor.
Visitei-o em casa já perto do final da vida e revejo-o na afectividade intensa que o ligava à família e aos amigos, sobretudo os mais jovens, que nunca deixou de apoiar e de estimular para o acto de criação.
Foi o primeiro a escrever sobre o meu livro Mágoas Territoriais (Assírio & Alvim), que elogiou com palavras que acentuaram a confiança que tinha em mim como poeta.
Vi-o sempre apoiar os mais jovens e aqueles com que partilhava ideais cívicos e sonhos de mudança. Era um homem bom, generoso e combativo e um grande escritor que deixou uma obra de referência que é preciso reler sempre com entusiasmo e gosto.
O Urbano que reencontramos neste livro é o grande criador literário e o amigo de sempre que foi cooperador destacado da Sociedade Portuguesa de Autores e defensor dos valores da lealdade e da coragem cívica.
José Jorge Letria
Junho de 2023
O ALENTEJO, A INFÂNCIA, AS PRIMEIRAS RECORDAÇÕES
José Jorge Letria – Vamos começar esta conversa pela tua infância no Alentejo, tempo e lugar que irão ser determinantes na tua vida e na construção da tua obra. Como foi a tua relação com o Alentejo e com a tua família mais chegada nesses anos já longínquos? Como era o quadro familiar em que nasceste e cresceste? A tua memória guarda ainda o melhor desse tempo?
Urbano Tavares Rodrigues – Nasci em Lisboa, num palacete do meu pai em Santa Catarina, mas estive lá muito pouco tempo. Já fui baptizado em Moura, na Igreja de São João Baptista – a minha mãe era católica e o meu pai ateu. A infância passou-se num monte a cerca de quatro quilómetros de Moura, à beira do rio Ardila, junto de uma torre de menagem que evocava as lutas do século xvii contra os castelhanos e à qual eu gostava muito de subir. Eu e o meu irmão Miguel atirávamo-nos lá de cima para a terra, terra lavrada. Eram actos de loucura. Foi uma infância feliz em que tive um grande contacto com a Natureza, e isso tinha uma grande, grande carga poética. Só comecei a tomar consciência da realidade social aí pelos meus oito ou nove anos. Então, comecei a dar-me conta das desigualdades horríveis, da miséria, da violência da Guarda Republicana na repressão de coisas tão incríveis como o roubo de um molho de lenha. Eu tentava evitar que eles levassem um homem preso por causa disso, mas eles levavam-no à mesma e, então, comecei a tomar consciência de uma certa realidade muito dura e injusta e a sentir um grande desejo, sendo eu ainda católico, de fraternidade e igual- dade social.
JJL – Nessa época, o teu pai estava convosco em Moura ou estava em Lisboa, a trabalhar como escritor e jornalista, actividade em que conquistou grande prestígio?
UTR – O meu pai viveu connosco em Moura durante algum tempo. Depois, surgiram dificuldades económicas e ele teve de ir trabalhar para Lisboa. As distâncias eram grandes, as estradas eram más e os carros muito diferentes do que são hoje. Por isso, só nos ia visitar aos fins-de-semana. Lembro-me de ele ir a Marrocos e de me trazer de lá soldados de chumbo, marroquinos, que me encantaram, e eu passei dessa relação com a Natureza para uma relação com os seres humanos. E aí tive amigos, como um pastorinho que tinha uma úlcera de estômago e que nós ajudámos a ir a Beja para fazer uma operação; dava-me com o filho do feitor e criei amizades. Eu tive uma professora primária que me dava aulas lá mesmo no monte, o que era um luxo. Ela era muito católica, beata mesmo, e deu-me uns rudimentos de catequese, além da instrução primária.
Eu ia de vez em quando a Moura e guardo sempre uma recordação deslumbrada da sua beleza, das ruas brancas, da casa da minha tia Catarina, que era casada com um dentista que era fidalgo e que tinha uma casa lindíssima com limoeiros num pátio. Aquilo era tudo muito, muito bonito e encantava-me essa casa; era grande a beleza dessa casa, que era talvez do século XV.
JJL – Sempre tiveste uma relação muito próxima com tua mãe, que foi uma figura central na tua infância e juventude e também na tua formação afectiva. Fala-me dessa relação.
UTR – Foi uma relação muito forte. De grande ternura. Tinha um grande afecto pela minha mãe e uma maior distância em relação ao meu pai. A minha mãe tinha uma cultura média. Tinha feito o 5.º ano do liceu dessa época, no Colégio da Bafureira, e tinha uma cultura rudimentar e mau gosto. Gostava do estilo romanticista e era extremamente afectuosa comigo. Nessa altura, ela era muito conservadora. Depois, a minha mãe, com as minhas prisões e com o exílio do meu irmão Miguel, evoluiu e acabou por se tornar numa católica progressista e, a determinada altura, a atitude dela perante a vida mudou muito. O Miguel já a conheceu pouco nessa fase, que foi a final, quando ela teve uma leucemia e eu a acompanhei carinhosamente nesse período difícil.
Dois contactos muito importantes para mim na adolescência foram com os meus dois primos que viviam em Macau, o Fernando Medina e a Maria do Carmo Medina, e que, depois, quando foram viver para Lisboa, passavam largas temporadas no Alentejo. O Fernando Medina foi quem me deu a ler os primeiros textos de Marx, policopiados, e do Henri Lefebvre. Lembro-me muito bem disso, pois foram textos que me impressionaram muito e que foram marcantes na minha adolescência e não só.
JJL – Isso aconteceu já em Lisboa ou ainda no Alentejo?
UTR – No Alentejo.
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