1.

Era uma mulher e um homem, um homem e uma mulher, e vice-versa. Viviam em duas cidades separadas por mil seiscentos e onze quilómetros, e só se conheceram realmente no início da vida adulta. Essas cidades, de tamanho médio, estavam geminadas há meia dúzia de anos, talvez por terem mais ou menos o mesmo número de habitantes, talvez porque eram as próximas na fila ou lhes saiu aquela na rifa, talvez porque o maire e o presidente da câmara tivessem amigos comuns, talvez, talvez, e tudo tivesse ficado assente e combinado, depois de duas noites consecutivas de jantares bem regados, «até doer».

Guimarães, Compiègne. Uma no norte de Portugal e outra no nordeste da França, por esta ordem. 

«Portanto, atenção, não é no sudoeste da França nem no centro de Portugal, e por aí adiante e por aí fora, meu amigo Samuel», disse o maire francês no fim de mais um brinde com um Calvados. «Vamos geminar as nossas cidades.»

«Vamos germiná-las», disse o autarca português, vindo já de dois conhaques e achando-se com bastante piada. 

«Presidente da autarquia vela por todos os que o não são», afirmou um deles, erguendo o copo. Nunca se soube quem teve a palavra final, mas suspeita-se que tenha sido simultânea. Assinou-se então um protocolo de intercâmbios desportivos, culturais, recreativos (um grupo folclórico de Guimarães e arredores, cantando e dançando, tinha sido um grande sucesso na sua congénere, dois anos antes), e até encontros protocolares, com figuras políticas locais num cocktail às seis e meia da tarde, sob um ameno sol de Primavera, uma brisa ainda morna, e bastante gente a comparecer. Tanto numa cidade como noutra. Vimaranenses e compiegnards. Ia dar certo, pelo menos assim parecia. Só no balanço quinquenal se iria ver se sim.

Se não houvesse pessoas, tudo teria sido mais simples. Se não houvesse pessoas nem água a confluir nos rios, nem sangue a correr nas veias. Assim, enevoa-se a história, fende-se a história, conserta-se em vão a história, e os factos tendem a entortar-se como os galhos, a enrolar-se no tempo. Leva anos, a seiva segue o seu curso, não há pergunta nem solução.

Uma mulher e um homem, un homme et une femme, separados por mil e muitos quilómetros, Compiègne Guimarães, Guimarães Compiègne, até se encontrarem a meio dessa vida de labirintos sucessivos e descontínuos. É essa a pergunta – e a solução.

Ele chamava-se Cédric, em bom francês. E ela chamava-se Amália, em bom português.

2.

Ela chamava-se Amália porque a cantora favorita do pai era adivinhe-se quem. Por boa coincidência, também ele se chamava Rodrigues, coisa que começou a incomodar a mãe logo após a filha ter nascido. Não que ele se chamasse Rodrigues – era também o seu nome de casada, Otília Rodrigues –, mas que a filha se fosse chamar precisamente Amália Rodrigues, como a própria. Onde é que iria encontrar a sua identidade? Insistiu em baptizá-la também com o nome de Maria. 

Pedro Moura e Susa Monteiro juntam-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 21 de fevereiro, uma quarta-feira, pelas 21h00. Consigo trazem  "Mensagem", de Fernando Pessoa, numa edição da RTP/Levoir.

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«Então, Amália Maria», disse o pai.

«Nem pensar, é Maria Amália. A menina vai chamar-se Maria Amália.»

«Que não seja por isso. E Rodrigues. Maria Amália Rodrigues, também não soa mal. Continua a ser uma grande cantora.»

«Continua a ser a nossa filha, António, a Maria Amália.»

«Eu sei, eu sei. Não vai é cantar tão bem.»

«António. Ela não precisa de cantar tão bem. É outra pessoa. Pode fazer o que quiser, pode ser engenheira ou ter um quiosque de revistas, será na mesma a nossa filha.»

«Só mais faltava.»

A mãe ainda tentou, por um tempo, chamar-lhe Maria Amália, mas depois o Amália sobrepôs-se, até para ela própria, e passou a ser simplesmente Amália.

Rodrigues, claro está. Maria Amália dos Santos Rodrigues. Era de cara larga e franca como a fadista, cabelo espesso, desenvolta e generosa de corpo. Desde miúda que cantava mesmo bem, não como a original, é certo, mas o suficiente para animar ao jantar (com quinze anos acabados de fazer) o restaurante da Associação do Calçado de Guimarães, a que ela e os pais pertenciam, tendo o senhor Rodrigues merecido o papel de contabilista – coisa para a qual tinha jeito, mas que nunca lhe tinha calhado profissionalmente em sorte. Era simplesmente operário numa fábrica de calçado da cidade, apesar de tudo com a vantagem de ter trabalhado perto de Guimarães numa outra fábrica do mesmo ramo, a produzir os melhores sapatos do mundo, como ele diria mais tarde aos franceses. O orgulho de um operário qualificado.

~

Só emigrou porque tinha um cunhado em França que podia empregá-lo, além de a mulher ter perdido o posto na lavandaria por frequente falta de comparência. Pela manhã, já com o marido fora, Otília ganhara o hábito crescente de acompanhar o pão torrado e a manteiga com uma ou duas cervejas, e pouco depois outra. Ligava a televisão para o programa da manhã e atardava-se a lavar o corpo, escolher a roupa, ver que temperatura estava lá fora, vestir-se – e uma quarta cerveja, e decidir hoje não ir trabalhar. Hoje – a palavra a tomar conta de si. Podia continuar a beber e ir às compras, ou simplesmente deambular e parar num café e depois noutro, questão de estancar a sede. Tanta coisa onde entreter as horas.

Um padrão que não durou, foi até com oposição sindical que foi despedida, mas as suas omissões eram mais que gritantes. E o comportamento, errático.

«Ouve, António, ouve. O que é que eu vou fazer para França? O quê, dar aulas de Francês? E a miúda, vem atrás?»

Queria dizer «ter aulas de Francês», mas o dar e o ter eram basicamente a mesma coisa, entre uma cerveja e outra cerveja. 

«António, vou-te explicar. Dás, não tens. Tens, não dás. Ou então dás o que tens, e depois não tens nada para dar.»

«Estás a falar de quê?»

«De que é que eu estou a falar? É filosofia. Chega-me aí um copo, o outro partiu-se, se calhar apertei-o demais e puf.»

António, se não fosse por Amália, até acharia melhor que Otília ficasse para trás, ficava livre daquele carrossel, sobe e desce cabeça acima cabeça abaixo. 

~

Foi assim que se encontraram numa pequena cidade oitenta quilómetros a norte de Paris: Compiègne, mais ou menos do mesmo tamanho de Guimarães. Cidade média, de facto. Havia maior, muito maior, e havia mais pequena. Mas Guimarães era uma cidade com o tamanho das pessoas. Chegava-se facilmente a qualquer lado. É certo que também as más-línguas se propagavam mais facilmente – mas falava-se com pessoas. De Compiègne ainda não sabiam quase nada.

Tinham enchido o carro de tudo o que podia fazer falta numa primeira paragem, quase não dando espaço a Amália no banco de trás. Mas ela, então com dezasseis anos, olhava pela janela e achava que estava a ver o mundo, resumido a quase toda a Espanha, com uma noite curta e bem dormida pelo meio, mesmo antes de chegar a França. Dali em diante, tudo seria mais caro – o contabilista sabia fazer contas, optaram por refeições económicas pelo caminho, umas mais frugais que outras. Interessava era chegar. António tinha permitido a Otília uma caixa de cervejas no chão do seu assento – melhor isso do que ela ter de mendigar paragens sucessivas nas estações de serviço, onde cada lata custaria mais do dobro do que levá-la de casa. Além do sossego, naturalmente. Tendo Otília entorpecida, podia concentrar-se no trajecto e na condução. 

Livro: "Vida e Morte nas Cidades Geminadas""

Autor: Sérgio Godinho

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 8 de fevereiro de 2024

Preço: € 18,80

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Depressa António começou a trabalhar, como contabilista no escritório do cunhado. Passou a ganhar três vezes mais, embora a renda da casa fosse mais puxada, e tudo no comércio também. Mas, como bom português, serviu-se rapidamente do pouco que sabia do idioma do país, assim como a sua contrariada Maria Otília e a mais que conivente Amália.

Começava a conhecer pessoas de quem ficou a gostar, fosse por amizade recente, fosse porque, algum tempo depois, passou a assumir abertamente o cachê da sua Amaliazinha, que agora cantava duas vezes por semana num restaurante português, a Casa Portuguesa, com gerência lusitana do senhor Mendes, Jota Mendes.

«Ó Rodrigues, olha que eu e o meu sócio não semos ricos.»

 Gostava muito de dizer semos e hádem, achava-se muito culto quando sublinhava as palavras.

«Vamos lá a ver, ó Mendes: a rapariga canta bem ou não canta bem? Não merece uma segunda oportunidade?»

«Ela ainda mal teve a primeira, e já estás a querer a segunda?» 

Parecia uma piada barata.

«Ela é um rouxinol. Só não é conhecida porque está metida neste buraco.»

«Ela não é conhecida porque não é conhecida, un point c’est tout.»

«Ó Mendes!»

E assim continuavam, até Amália, esta Amália, ser aumentada uns míseros sete por cento.

«Não desço dos doze por cento. É o meu limite.»

O Mendes nem ouvia, ficava a afagar a unha. Quando afagava a unha, deixava de ouvir o que não queria.

«Pronto, dez por cento.»

«Ó Rodrigues, é sete por cento de aumento, e já estou a ser o Pai Natal.»

«Oito.»

«Não me canses.»

«Então nove.»

«Não é suposto subir, Rodrigues, é suposto baixar.»

«Pois, enganei-me. Fica nos sete por cento.»

«Fechado. É um bom aumento, acho eu.»

E afagou outra vez a unha. O Rodrigues resfolgou.

«É um bom aumento, mas a rapariga merecia mais.» E de mais perto, quase ao ouvido: «Não consegues mesmo chegar aos dez por cento?»

«Rodrigues!»

A unha.

«Sim, Mendes…»

«Não me canses.»

Assim se cala um homem.

E assim era o Rodrigues, conciliador e um pouco cobarde, ajeitando-se sempre às circunstâncias, como um cachecol se ajeita ao pescoço.

Quanto à mãe, Otília, essa era, no meio da disfunção etílica, uma dona de casa possível e naturalmente despachada na cozinha. E algumas vezes ainda melhor no quarto de dormir, como dizia o Rodrigues depois de «uma sessão de sexo muito satisfatória»: 

«Maria Otília, foi uma sessão de sexo muito satisfatória.»

«António! Não me canses.»

Toda a gente a dizer-lhe «Não me canses».

Ele não estava cansado. Se estivesse, teria aceitado seis ou cinco por cento. Mas, também, a oferta não era suposto baixar.

~

Maria Otília, entre lembranças e esquecimentos, guardava um segredo, um curto e penoso pecado no currículo, cometido bem antes de terem emigrado para França.

Nessa altura, tinha começado a pôr o pé no acelerador e a beber seriamente à tarde, e ainda mais à noite. Estava de baixa psiquiátrica há quase três meses, que provavelmente seria renovada. Ou era ela que fazia por isso? Fazer-se um pouco louca em momentos cirúrgicos não seria a melhor entrada para mais três meses de tranquilo confinamento, sozinha a beber em casa, longe dos pecados do mundo?

Porque tinha pecado, sim. Uma católica pouco praticante, que tinha, uma só vez, aceitado dinheiro em troca de sexo. Estava sozinha em casa. O marido tinha ido fazer uma formação de dois dias a Lisboa. Não sabia para o que lhe ia servir, mas sempre era em Lisboa, a muitos quilómetros de Guimarães. As noites de Lisboa são animadas. Gracejava com os colegas:

«E não é para as casas de fados, é para as casas de fodas.» 

E ria. E insistia no trocadilho, aquilo era chapa ganha, chapa gasta, com as putas e o espumante barato à disposição, enquanto murmurava, a cambalear para a pensão, esbarrando nos dois degraus da entrada: 

«Salve-se quem puder. Acho que vou ficar aqui mesmo.»

Entrou aos tropeções.

«Ó senhor Rodrigues!»

Salve-se quem puder. 

Amália, entretanto, tinha ido passar uns dias a casa de duas amigas recentes, colegas de escola e óbvias namoradas. Umas curtas férias de Páscoa, sempre bem-vindas. E Maria Otília sozinha em casa, com um copo numa mão e a garrafa de whisky na outra, «vertendo o conteúdo sabiamente sobre o gelo», como dizia a publicidade da marca. Havia mais de um mês que o António não tocava nela, nem no rosto, nem no corpo, nos pontos sensíveis do corpo. E tinha ido a Lisboa entretanto, o que andaria ele a fazer? Com as putas? E ela, não merecia ser puta?

Mais whisky, mais gelo, e a partir de então uma ideia fixa, uma ideia para a vida: iria ao Porto vender-se, só uma vez, só naquela noite. Para a vida. O seu corpo ainda era atraente, as maçãs do rosto também, davam-lhe um ar levemente oriental, especialmente quando sorria, e ela sorria muito em dias sim.

Vestiu uma blusa justa e decotada, pôs uma minissaia e um par de calcinhas «mais menos», tirou a aliança, carregou no perfume e apanhou um autocarro para o Porto. Postou-se perto do mercado do Bolhão, onde constava que se faziam engates de rua. Tinha já engolido dois finos e depois outro, num café da vizinhança próxima.

Foi o acaso e foi uma circunstância feliz – um sueco de calções e sandálias, apesar da noite fria, um cinquentão de cabelo desgrenhado.

«How much?»

«How much, what?»

Agora queria mas não queria. Olhou para as nuvens, um pouco acima do telhado do prédio em frente. Vertigens.

«Come on, I saw you ten minutes ago at the same place, and in the same position. How much?»

Percebia pouco de inglês, mas chegava para o que queria.

«Fifty dollars.»

Quarenta e muitos euros, sem factura. Ela até achava barato, mas não era pelo dinheiro que estava a fazer aquilo.

«Why are you talking in dollars?»

«American?»

«No, Swedish. Sueco», repetiu o loiro desgrenhado, agora em espanhol.

«Ah, és sueco.»

«Euros?»

«Fifty.»

«That’s not fair, fifty euros is not fifty dollars.»

Otília nem percebia.

«É fifty euros, ouviste? Fifty!»

E mostrava os dedos da mão. Estava bêbeda e disposta a tudo, até que ele lhe desse com os pés. Mas não deu.

«Ok, let’s go.»

Let’s go, sim, mas para onde? Para uma pensão ali perto, onde ela tinha acabado de passar, a perguntar quanto era, e se alugavam quartos à hora. A dona, uma idosa a quinze minutos do coma, não queria saber de mais nada.

«Sim, dois quartos, mas podem ser mais. E ao terceiro homem seguido tens um bónus.»

Ela não ia ter nem um terceiro, nem um segundo – aquilo era para se viver uma vez, e muito bêbeda, pagas antes e depois tchau, please. Regressaria ao remanso do seu lar, para o seu marido condescendente e um pouco cobarde, que estava de certeza com as putas naquele momento, e já também muito bêbedo. Nisso ela era sua cúmplice, tinha para a troca.

Mas o que tinha mesmo para a troca era a cena das putas, umas de um lado e ela de outro. Deste lado estava Maria Otília, puta de uma só queca. Estava agora a despir-se num quarto inóspito, com manchas de água que tinha escorrido pelas paredes – e uma luz filtrada pelos estores, apesar de tudo o pormenor mais acolhedor. Ele pagou-lhe os cinquenta euros e ela despiu-se, com ele já nu em cima do lençol, como se fosse Verão, o sexo meio erecto. Otília tirou do saco um preservativo, deitou-se, chupou-o e depois vestiu-o. A seguir cavalgou em cima dele, e ele felizmente não pediu para a enrabar, veio-se naturalmente, ao pôr-se por sua vez em cima dela. Ela não se veio, mas tinha gostado. Abraçou-o com vigor, ele um homem sueco, de um loiro quase grisalho. Bonito à sua maneira. Enfiou os dedos no cabelo dele, puxou-o para si e deram um beijo, daqueles que nunca mais se repetem. Ele um pouco surpreendido, ela sabia a álcool e a caramelo. Mas teve a resposta quando ela disse:

«I’m portuguese. Thank you.»

Ele compreendia a parte da portuguesa. Era latina, logo acesa e afectiva. Era o que sabia. Mas porquê o thank you? Tinha sido uma troca leal, sem mais nada. Ela sabia, porém, porque estava a agradecer-lhe.

Tinha agido em tudo como uma profissional calejada, quando era só uma amadora de toca-e-foge. Uma vez e depois zero vezes, vais esquecer tudo isso, Otília, Maria Otília. O que pensaria o teu pai? E a tua mãe? Tinha sido uma seta em cheio num alvo que nem sequer existia.

Regressada a casa, fez por esquecer aquela noite, pelo menos «por agora». «Por agora», dizia. Depois havia de se lembrar. Tinha-se desequilibrado já duas vezes, e os vapores do álcool estavam a transformar-se em verdadeiros vapores do mar, balançando nas ondas, afundando-se, se não nas águas gélidas do Atlântico Norte, pelo menos no seu confortável leito. Afunda. Vais esquecer esta noite, toda esta noite.

Acordou vestida e atravessada na sua cama, não se lembrou logo: o último sonho, antes de acordar, tinha sido de vultos mortos e cinzentos a fazerem fila e tirarem senha, junto ao pequeno vulcão do Purgatório, para um dia terem direito ao imenso Céu eterno. Procurou resgatar farrapos do sonho, mas nunca resultava, ficava sempre anedótico, nem sequer pitoresco, apenas pouco interessante. O sonho não era o seu sonho, era outro. E o Purgatório agora escondido atrás do sono.

Foi quando molhou o rosto com água fria que se lembrou de tudo. Olhou para o espelho, antes de pôr a toalha na cara. Era ela, sim, de braços fincados no lavatório e rosto a pingar. Lembrou-se de tudo, numa lucidez inesperada. Agora sim, tinha em si um pecado que não ia esquecer. Um qualquer rasto de diamante, os poucos euros que talvez até já fossem seus, uns brincos bonitos fora de proporção, uma vontade de pensar muito em tudo aquilo, e algumas vezes em nada disso. Tinha trocado sexo por dinheiro, nunca mais o iria fazer. Mas porque é que tinha sido? Para experimentar outra coisa, sair das paredes, conhecer estranhos? Por dinheiro não era, tinha-o gasto todo e mais algum no táxi de volta a Guimarães, cidade a cidade. Restava-lhe a curiosidade, com certeza, mas também talvez o enfado: dia após dia e nada muda. O sueco até tinha sido gentil, o que seria perigoso se ela quisesse continuar naquela senda. Não queria. Tinha sido uma só vez, e agora sabia um pouco mais da vida. Conhecer um estranho, um estrangeiro, dar-se ao seu corpo desconhecido, com um beijo na boca de amor real, abrir-lhe as pernas, receber o seu sexo e a sua paga, não fazia isso dela um pouquinho mais sábia? Achava ingenuamente que sim. Talvez tivesse razão. Aprende-se com tudo.

Agora estava de novo na sua cama acolhedora, mesmo sem a outra parte preenchida – António só chegaria no dia seguinte. Nunca lhe diria nada, era mais do que evidente. Acordou de vez já manhã alta, boca seca. Ainda se tentou excitar um pouco, à conta do sueco. Mas já não fazia sentido nenhum.

~

Rodrigues voltou na tarde do dia seguinte, ligeiro de esperma e preocupações. Encontrou-a em frente à televisão, a abrir uma cerveja com as costas de uma faca.

«Como é que está a minha mais-que-tudo?» Soprou-lhe um beijo e acrescentou: «Já venho, estou à rasca para mijar.»

Sempre as prioridades da pila. A tua mais-que-tudo está mesmo bem e começou a ficar bêbeda ao início da tarde, e tudo isto sem encontrar o abre-cápsulas. À parte isso, nem sabes o que lhe aconteceu. António, nem vais saber o que me aconteceu.

Ele voltou à sala, fechando a braguilha, dando-lhe um beijo molhado na boca.

«Que é que aconteceu, aconteceu alguma coisa?»

«Alguma coisa, o quê?»

«Estás com um ar muito sério.»

«Estou?» Bebeu dois goles de uma vez. «Estou cansada de não fazer porra nenhuma. Nada, porra nenhuma.»

«Querida, estou de volta, só para ti.»

Sim, António, para mim e para as tuas putas. Ocorreu-lhe que a culpa era dele. Se não tivesse havido todas aquelas putas, não teria havido esta puta. Essa puta, mesmo sabendo o que valia, achava que era injusto ser só ela a culpada. A embriaguez a chegar-se à frente. No fundo, queria provar outro sabor, achava ela – era tudo. Assim ele tivesse sabido.

~

Amália tinha regressado, sempre um fado corrido a entrar naquela casa. Tinha agora dezoito anos pujantes, desenvoltos e aparentemente vividos – aparentemente já não seria virgem. Era uma morena um pouco sardenta de cabelos ondulados, e continuava a estudar com gosto e afinco, a fazer o último ano antes da universidade. Queria ir para Hotelaria, era isso que queria, Hotelaria. Formava-se em França e depois ia arranjar emprego em Portugal, «um país em franca ascensão turística». 

A mãe continuava na bebida, pediu para Amália se sentar no sofá, pegou-lhe na mão enquanto olhava para a televisão sem som. 

«A minha filha agora tem de me contar tudo. Andas muito por fora e eu não sei nada de ti.»

Amália sentou-se com prazer, mas também com preocupação. Apertou a mão da mãe.

«Mãe, continuas a beber de mais.»

Ela esvaziou o copo.

«Estou cansada de não sair de casa. Por isso é que bebo, sempre é uma viagenzita.» Riu-se, sempre de olhos na televisão. «Uma viagem diária.»

«Mas ó mãe, isso está nas tuas mãos. Tu é que pediste a baixa. Se estás farta, podes voltar já amanhã. Tens esse direito. Basta quereres.»

Lavava a roupa numa máquina, secava-a noutra, passava a ferro, por vezes dobrava camisas e lençóis. O mesmo que fizera em Portugal. Ganhava a vida com isso, dinheiro vivo.

«Eu querer quero, mas não consigo.»

«Como, não consegues?»

«Ficar sem beber tantas horas.»

Era assim.

«Ouve, isso está tudo ao contrário. Tu trabalhas umas tantas horas, e durante essas horas não bebes. É assim. E quando chegares a casa até te podes embebedar, mas já tens um dia de trabalho em cima. Por favor, vai.»

A mãe fungou.

«Devia. Mas para já não consigo.»

«Mãe…»

«Deixa-me ficar sossegadinha. Podes?» E agora a olhar para ela, elevando a voz: «Pode-se?»

Amália retirou a mão.

«Claro que se pode. Basta tu quereres.»

Foi-se deitar com duas coisas opostas na cabeça. Apagou a luz e pensou: por um lado a satisfação do dever cumprido, por outro a insatisfação continuada com o estado da mãe. Estava a agravar-se e não havia um fim à vista. Esquecia-se do que tinha feito ou prometido, cortava os raciocínios à tesoura. Quanto a Rodrigues, só queria chegar a casa e ter a comida feita para o jantar, tarefa a que Otília se entregava diligentemente, sempre com um grau de sucesso razoável. «Feita e pronta, meu comandante», dizia ela, fazendo a continência, gesto que ele tomava por cómico, mas que era apenas efeito do álcool, a balouçar nas ondas, alto-mar.

Que a mulher mergulhasse na bebida ou que só trabalhasse às vezes, para ele já era igual. «Me da igual», dizia sempre o seu velho compadre espanhol, aliás galego e nacionalista dos antigos. Mas para ela nada era igual, tinha quarenta e alguns anos e, pouco a pouco, estava a perder a vida de vista. Num país estrangeiro, sem saber de que terra era.

~

Amália, essa, não parava. Andava «num virote», como dizia o pai. Agradava-lhe que a filha fosse assim. Sempre tinha dito que queria um rapaz, mas aquela rapariga era, afinal, tudo o que ele quisera. Viva e arguta, rápida a perguntar e a responder (de facto, um pouco respondona) e com uma capacidade de adaptação que, mesmo sendo própria da idade, acabava por surpreendê-lo. Tinha chegado a França com dezasseis anos acabados de fazer, tinha agora dezoito e falava francês melhor do que ele, sem sotaque, apenas possivelmente com alguma falta de vocabulário, mas com os tempos dos verbos e as expressões coloquiais no sítio certo. Parecia francesa desde sempre.

3.

Cédric, portanto. Um rapaz alto e loiro de larga melena, cara afilada e pálida, um pouco desengonçado no andar. Um charme real de que nunca abusava, por um instinto que só lhe caía bem. Tinha deixado de estudar dos dezoito para os dezanove anos. Apesar de esperto e naturalmente curioso, bom leitor, os estudos enfadavam-no, e de nada valia a insistência do pai, condutor de ambulâncias, para que definisse o seu rumo, frequentasse um curso – ele ajudava, se Cédric fosse até ao fim e saísse de lá com um diploma. Ainda se arrastou uns meses num sim, talvez, talvez não, até que anunciou ao pai e à madrasta que ia desistir.

«O quê, queres ser condutor de ambulâncias como eu? É isso que queres para a tua vida?»

Sorriu para si mesmo, porque lhe tinha sido proposto um emprego que acabava por ter alguma ligação, mesmo que ínvia, com o do pai. Para onde se leva alguém que acabou por morrer na ambulância, ou que está destinado a uma morte nas horas que se seguem? Para o hospital e, confirmado o óbito, para a morgue. Era numa morgue que se ia empregar, por sugestão de um tio, irmão da sua saudosa mãe. Como chefe experiente de uma equipa exígua, geralmente só ele e um ajudante, tinha ganho uma «louvável autonomia na possível contratação de pessoal». Gabava-se da formulação superior.

«Abriram uma vaga na minha morgue, porque morreu um rapaz pouco mais velho do que tu que lá trabalhava. Teve um acidente brutal numa auto-estrada, tiveram de o desencarcerar, e imagina: foi lá entregue todo esfacelado. Fez-me muita impressão, sabias? Via-o todos os dias da semana, simpatizava muito com ele, tinha uma filhinha de dois anos, e mostrava-me as fotos dela com a mãe. Foi muito triste.» 

E para o tio, não era esquisito estar assim a lidar com os mortos?

«Oh, é como tudo. É esquisito é para os que cá ficam.»

«Não sei, é um pouco estranho como emprego.»

«Vais ver que te habituas depressa. A pessoa já não está lá, aquilo acaba por ser só um corpo.»

Mas Cédric achava que um corpo, mesmo morto, trazia um pouco de memória da sua vida. A vida tinha ficado em rugas, cicatrizes, vestígios, unhas roídas, unhas vermelhas ou amarelas do tabaco, uma ou outra vez uma perna amputada que ainda pensa estar viva.

«Repara», dizia o tio, «eles nem costumam admitir rapazes tão novos, devem ter medo que abusem das raparigas mortas. Estupidez, os únicos casos que conheci foram de tipos muito mais velhos. Mas o Philipe deve ter vindo por uma cunha do director. E eu também posso pedir uma para ti, sou muito bem-visto no serviço, praticamente dirijo aquilo tudo. Não me vão dizer que não. Aliás, aquela coisa está a precisar de sangue fresco».

Não se apercebeu do humor negro da frase. 

~

Dia e meio depois, Cédric apareceu.

«Quando é que começo?»

«Tens a certeza? Não queres falar primeiro com o teu pai?»

«Vou falar. Quando é que começo?»

Tinha dormido sobre o assunto, como o tio recomendara. E agora queria começar.

«Dá-me três ou quatro dias para eu falar com o director. Vou dizer-lhe que tu és o rapaz mais sério do mundo.»

«Sou mesmo.»

«Eu sei. E podemos almoçar muitas vezes juntos no refeitório, ou então num bistrô ao lado. É lá que como, pelo menos duas vezes por semana, para mudar de ares.» Depois acrescentou, quase num murmúrio: «Tenho tantas saudades da tua mãe.» E tomando-lhe a face: «És tão parecido com ela.»

«Tu também, tio.»

«Eu sei, eu sei. E a tua prima ainda mais, é a cara chapada dela. Olha só o rasto que ela deixou no mundo.»

Apesar de tudo, Cédric esteve dois dias sem coragem para contar ao pai e à madrasta, até que, antes do jantar do terceiro dia, lhes disse:

«Tenho de falar convosco.»

«Então? Estás a falar connosco», disse o pai.

Nem tinha levantado os olhos do L’Équipe, que lia por hábito àquela hora.

«Arranjei um emprego.»

O pai levantou o olhar e tirou os óculos.

«Ai foi? Sempre vais trabalhar para a loja do senhor Hervé? Ele gosta de ti, e aquilo dos electrodomésticos é de caras. É liga e desliga.»

«Não, vou trabalhar na loja do tio Benoît.»

O pai olhou para a mulher, para Cédric, e deixou cair o jornal.

«Na loja do Benoît? Tu vais trabalhar na morgue? Com a tua idade? Estás maluco ou quê?»

«Não estou maluco nem vou dar em maluco. Tenho lá o meu tio, e o salário até é bom.»

Ele nem sabia ao certo qual seria o salário. Mas era razoável, enfim, era bom para começar.

A madrasta estava calada, só abanava a cabeça, via-se que desaprovava.

«Alphonse…»

O pai de Cédric chamava-se Alphonse.

«Deixa, Yvette.»

Ficou em silêncio mais tempo do que o costume, de olhos fechados, depois abriu-os e expirou fundo. Cédric não sabia o que vinha dali.

«És maior e podes trabalhar onde quiseres. Mas, enquanto viveres aqui, vais ter de contribuir para a renda e comprar a cerveja, que bebes mais do que eu.»

«Claro, pai. Claro.» Sorria. «Diz-me quanto é, e eu, já sabes…»

O pai fungou.

«Dá cá um abraço. És mesmo maluco.»

Yvette continuava a olhar, muito séria, mas já não dizia «Alphonse…» nem abanava a cabeça.

Foi assim que Cédric, um rapaz de dezanove anos acabados de fazer, ainda um pouco borbulhento (as borbulhas eram sinal de que se estava vivo e a amadurecer), foi trabalhar com os mortos, esticando-os e revirando-os, tapando-lhes os orifícios e puxando-lhes pelas mãos, sempre mais frias que as suas. Sabia disso antes de entrar, aprenderia mais nos primeiros meses. Mãos frias, já sem razões para aquecerem.