Urbano me confesso, amante da cultura, da vida boa e sem complexos. Do trabalho quando é de trabalho que se trata, da fruição da praça pública, até nos seus exageros, quando é isso que mais interessa. Rio-me. Cavaco não entende a piada.

Cavaco dá aos portugueses aquela sensação de sofrimento 'necessário' que tanto mal faz à nossa existência e realização pessoal e colectiva. Por outro lado, desculpa os videirinhos e os chicos-espertos, que se locupletam com o erário público, a troco de obra marrana e sem critério. E finalmente alcandora à mó-de-cima os brutos. Cavaco é 'bullying' para os nossos afectos.

O homem, como a todos os que temos memória dos nevoeiros e chuvas dos mais recentes 35 anos, passou por mim. Nunca votei nele, nem sozinho nem acompanhado. Onde aparecia, afastava-me o 'x' no boletim. Fala aqui, também, um social-democrata convicto, coisa que ele nunca foi na vida.

Não vou falar do Citroën, nem da Figueira da Foz. Nem das aulas com Glória de Matos para aprender a conjugar as sílabas e a soletrar as lábio-dentais, essa equação linguística que resiste a qualquer Excel. Nem tão pouco das más companhias, das privatizações macacas, do bolo-rei e das cagarras.

A primeira vez que vi Cavaco Silva ao vivo ia eu a subir a Avenida de Roma e ele descia-a. Em carro aberto, ele mais sua Maria, agradecia os aplausos da multidão de classe média, que abanava bandeiras na rua e nas janelas, muitas delas do CDS que ele ajudou a matar. Pagaram caro as 'tias' e os tonsurados com a visão do homem 'providencial'.

Lembro-me que andava às compras de umas botas ou sapatos. A multidão quase me engolia, naqueles idos de 87. Por sorte, passou de carro, pelo lado livre da avenida, o meu ex-comandante de pelotão da tropa. Como bom camarada e comandante militar, disse-me: 'Anda, dou-te boleia, ainda és engolido por isto'. E lá me escapei da laranjada perfumada a incenso e birras.

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É o mesmo homem que, passados uns anos, na campanha presidencial que o opôs a Sampaio, se meteu no carro à pressa em Espinho – a minha terra – sem cumprir a agenda que o devia levar ao bairro piscatório, por razões de 'segurança', disseram-me. Teve medo, claro, de que uma peixeira lhe assestasse com um chicharro no frontespício. Para um político é inglório.

Três dias depois, Jorge Sampaio cumpria a pé o quilómetro e meio que está de permeio entre o largo da câmara e o bairro, não sem que antes o mandatário distrital do futuro presidente rosnasse umas palavras de reprovação, pegasse ao volante do seu SAAB 900 e rumasse, de carro, ao mesmo lugar que o candidato. Chamava-se Carlos Candal, e era mais ás da caneta do que andarilho. Adiante.

Sofri, como qualquer jornalista, os anos de chumbo impostos por um homem que não prezava – e não preza – a liberdade. Encontrei Cavaco já estava eu em Lisboa, de microfone em punho, a ouvi-lo já não me lembro a que propósito, ia sua excelência a entrar no mal amanhado de madeiras e alumínios Centro Cultural de Belém. O segurança empurrou-me. Bateu-me no microfone dos 'erres'. Era um armário bem maior que este homem maneirinho.

Desequilibrado mas ainda armado de microfone, retirei os olhos do protagonista e fixei-me no bacamarte. Tanto ou tão pouco, que o próprio Cavaco teve de intervir, com aquele sorriso esquálido que sempre o acompanha, dizendo-me 'mas vamos entrando, que lá dentro falo consigo'. Não falou nada, e o segurança desviou os olhos. Confesso que sempre fui maior de alma que de braços e punhos, mas estive quase a pegar-me com o armário. O gajo riu do meu corajoso topete.

Passado uns tempos, chegou Guterres. Para os jornalistas, foi como se de repente passasse a chuva e chegasse o sol. Desanuviou a relação com os media, e bem me lembro de ter a mim próprio imposto cuidado, para não começar a gostar demasiado do nosso novo Primeiro. Porque primeiro está a isenção informativa.

Um dia, dou de caras com o tal segurança. Bom profissional, tinha passado de Cavaco para Guterres. Mas já não estava ao lado do chefe do Governo. Estava nas escadas do CCB, sentado, cabisbaixo, a fumar um cigarro. Quase tive pena dele.

Enfrentei-o. 'Então, já não tem nada que fazer? Lembra-se de mim?' Ele aquiesceu com um gesto afirmativo e um sorriso. Não se mexeu da posição de sentado. Mas foi dizendo: 'Este não quer que andemos ao pé dele'. Não sei se suspirou de alívio ou de piedade por si próprio.

Isto foi logo depois do dia 10 de Junho de 1995, quando Cavaco foi entrevistado na Rádio Renascença, com a qual andava de candeias às avessas, ao tempo. A culpa primordial não era minha, que não tinha estatuto para tanto. Mas lá que ajudei à festa, ajudei, tendo como principais comentadores de economia – o meu pelouro na RR – Alfredo de Sousa e João Salgueiro, que não se ensaiavam nada de lhe dar porrada política com critério...

Foi nesse dia que o José Luís Ramos Pinheiro, então director da estação, se saiu com a pergunta que cito quase de cor – porque eu estava lá, no estúdio. 'Neste dia de Camões, de Portugal e das Comunidades, o senhor primeiro-ministro ainda se lembra de quantos cantos têm 'Os Lusíadas''?

Cavaco Silva mudou de cor, coçou-se um pouco na cadeira e atirou as 'culpas' da sua falta de ensino para a senhora que lhe faz companhia: 'Sabe, lá em casa essas coisas de português é com a minha mulher', respondeu. Mas não sabia.

Foi este o homem que representou Portugal.

Este texto faz parte dum conjunto de seis testemunhos pessoais de jornalistas que escolheram um momento definidor do que foi, para eles, o político Cavaco Silva. Leia também:

#1: As lições de uma ponte, por Pedro Rolo Duarte

#3: A 'trisneta' do Cavaco, por Diana Ralha

#4: A primeira noite de Cavaco SIlva no ecrã, por Francisco Sena Santos

#5: Cavaco Silva em cinco actos, por Pedro Fonseca

#6: Um caso muito interessante, por José Couto Nogueira