“Era bailarina!”, recorda Sara Soares. “Era animadora em cruzeiros e nos hotéis”. Era. Já não é. “Aos 28 anos tive um acidente de carro”. Passou para uma vida numa cadeira de rodas. Passaram-se 14 anos.

“Continuo a dançar. Mas demorei muito tempo até conseguir fazê-lo”, assume.

“Quando passamos a esta parte de mobilidade condicionada, deixamos de fazer aquilo que gostamos para conseguir fazer aquilo em que nos encaixa. Ou que a mobilidade nos permite ... é muito desafiante”, desabafa.

Continua. “Sou do mundo das artes e de repente tenho de ir para o mundo administrativo, posso encontrar ali logo uma dificuldade muito grande a nível pessoal”, confessa em conversa com o SAPO24 à margem da Acessibility Talks, evento organizado pela Associação Salvador e que serviu de antecipação do Dia Nacional da Acessibilidade, celebrado este domingo.

Recua ao primeiro emprego, numa agência de viagens. “Os Recursos Humanos contrataram-me com muita vontade, mas quando cheguei à loja, as pessoas não estavam recetivas. Achas que vais conseguir chegar ali? Achas que vais fechar à porta?”, escutava. “É a história da infantilização, a falsa crença de que nós não conseguimos”, sublinha Sara Soares.

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Sara créditos: Miguel Morgado | MadreMedia

Retirou ensinamentos às primeiras barreiras. “Algumas coisas foram importantes para perceber quais as minhas dificuldades e limitações. No primeiro trabalho percebi que não posso ficar sozinha numa loja porque para ir à casa de banho, não posso fechar a porta e demoro mais tempo que os outros”, anota.

“Fiquei com falta de autoconfiança e a pensar que a culpa é minha. Será que não sou boa o suficiente? Será que fiquei menos inteligente após o traumatismo craniano e o coma”, questionou-se.

Seguiu-se nova etapa laboral. “Na Decathlon foi tudo diferente. Já estava tudo adaptado”, relembra a passagem pela empresa de material desportivo. “Refiz projetos, ajudei-os a perceber as minhas limitações, sempre que não conseguia passar num sítio, explicava, e alteravam, nos jantares de Natal, eram inclusos comigo, fizeram um passeio de barco incluso comigo”, recorda.

 Como ajudar numa cadeira de rodas? Com o cérebro

Passou do desporto ao Retalho (Worten) e relembra um mau exemplo. “Perguntei a uma senhora se a podia ajudar. Respondeu como a podia ajudar se estava em cadeira de rodas”. Ao banho de humilhação, respondeu fria e secamente. “Com o cérebro. Sei que nem toda a gente tem cérebro, mas tenho um”. No fim da troca de palavras, “ajudei a senhora e vendi-lhe fritadeiras elétricas”, sorriu.

Reconhece que nem tudo é um caminho fácil. “No processo de emergência, de evacuação, achamos que somos sempre o elo mais fraco”, constata Sara Soares.

“Para ir buscar algumas coisas, continuo a ter de pedir aos meus colegas. Mas nunca senti que isso fosse um problema da parte deles”, sublinha.

Prossegue em discurso fácil e direcionado para a parte de mobilidade. Do trajeto de casa para o trabalho, para um jantar com amigos ou uma ida a um evento lúdico. “Sem carro é impossível”, avisa esta moradora na margem Sul de Lisboa.

“Sou completamente refém do meu carro. Porque se me der vontade de ir à casa de banho e se não tenho uma casa de banho adaptada”, questiona. “As pessoas dizem que ajudam, que me pegam ao colo, mas eu tenho de me despir, não é fácil passar por esse processo”, narra.

Já sentiu essa limitação quando ficou privada três meses do carro. “Fiquei muito limitada. Apanhar um Uber, não sei o tamanho, se for um táxi especializado para cadeira de rodas, estamos a falar de uma viagem de 50 a 70 euros”, detalha.

Os obstáculos são muitos. E as críticas têm dono. “Os municípios gastam imenso dinheiro em obras, rampas com mais de 2% de inclinação. O trabalho das autarquias não é, por vezes, pensado em conjunto. Os próprios engenheiros parecem não se informarem, fazem trabalhos mal feitos”, critica Sara Soares.

“Criei a minha própria bolha”

Embaixadora da Associação Salvador, sempre pronta a dar o seu testemunho a quem se vê nas mesmas contingências, fala da vida normal que procura ter.

Praticou andebol antes e depois do acidente. “Joguei andebol de cadeira de rodas, agora vou só ao ginásio porque ocupava muito tempo e, por discernimento pessoal e pela idade da minha filha (8 anos), tive que abrir mão de algumas dessas situações e abdicar desse tempo para dar à minha filha”, admite.

“Concertos? Sozinha não consigo. Muitas das salas (em Lisboa) são em zonas muito antigas e o acesso é muito difícil”, adverte. “Não podemos arrancar a calçada...”, diz. “Restaurantes também é difícil”, confessa. Basta pensar na “passagem entre mesas” ou no simples “chegar à mesa”, descreve.

À complexidade de dificuldades responde de forma simplista. “Não vou a sítios que não estão preparados para mim”, salienta.

“Se for a um sítio que não é acessível com amigos, vou-me sentir um peso, diferente. Se eu for um sítio acessível, já não me sinto”, compara.

Recorre a um exemplo. “Ao viajar com amigos, gosto de fazer-lhes uma surpresa, sair de manhã, comprar pão, fazer um brunch, ou seja, ajudam-me com a cadeira e retribuo com o pequeno-almoço. Consegui fazer isto em Barcelona, mas em Portugal é difícil”, aponta.

“Criei a minha própria bolha. A minha e da minha filhota que está cansada de ouvir: a mãe não pode ir, mas tu vais”, confidencia. “Não vou permitir que perca qualquer coisa por causa de mim. Digo-lhe para ir, filmar e mostrar-me, ou então digo que já fiz no passado quando estava em pé e quero muito que o faça”, relata.

Socorre-se da palavra “autonomia” para descrever as letras que compõe acessibilidade. “É a autonomia”, repete. “É a liberdade. É ser igual aos outros. Porque sou muito proativa e quero ser muito autónoma”, assevera.

“Sempre que saio de casa, tenho que me preparar mentalmente para o fazer”

Catarina Oliveira não nasceu com incapacidade e limitações. Aconteceu em idade adulta, há oito anos, quando tinha 27. “Não cresci, não fui à escola com uma deficiência, mas faço este exercício. Se todos pensarmos no nosso percurso de vida, ida para a escola, a um restaurante, a um teatro, garanto-vos que há sempre barreiras para as pessoas com deficiência”, afirma.

“Pessoas com deficiência ainda não têm transportes públicos acessíveis. Há crianças com deficiência que têm muitas barreiras nas escolas. Ir ao recreio, que damos por garantido enquanto pessoas sem deficiência, são ainda uma barreira muito grande. E é inibidora para uma criança”, assevera.

“Onde moro, no Porto, embora haja muitas zonas acessíveis, se quiser dar um passeio à volta do meu prédio, em muitos sítios não consigo passar para o outro lado da rua”, refere ao SAPO24 à margem das Accessibility Talks, evento organizado pela Associação Salvador e que antecipou o Dia Nacional das Acessibilidades, celebrado hoje, 20 de outubro, pelo sexto ano consecutivo.

A mudança de perspetiva surgiu quando começou a ver a vida de outro prisma. “Só quando me tornei uma pessoa com deficiência é que comecei a ter um bocadinho esta ideia e nós podemos ter noção mesmo não sendo pessoas com deficiência”, adverte Catarina Oliveira, embaixadora da Fundação Salvador.

Reconhece usufruir de uma dádiva. “Tenho o privilégio de ter carro próprio, porque se não tivesse, sei que ia encontrar, provavelmente, um autocarro com a rampa avariada ou sem rampa, ou um carro em segunda fila a impedir que chegue ao passeio para descer a rampa para a pessoa entrar, que não parar por estar cheio”, descreve um cenário tão normal quanto negro.

Catarina
Catarina créditos: Miguel Morgado | MadreMedia

A experiência antecipa-lhe o encontro com uma multiplicidade de barreiras na mente antes de dar o primeiro passo fora de portas. “Sempre que saio de casa, tenho que me preparar mentalmente para o fazer, já saio com a cabeça preparada para o que vou encontrar, porque sei o que vou encontrar”, reitera.

Cantinas, balcões e Língua Gestual Portuguesa

“A acessibilidade não é só uma rampa”, exclama esta nutricionista de profissão e responsável pela academia da Access Labstartup que trabalha para a inclusão de pessoa com deficiência e surdas.

Das rampas, salta para algo menos visível. “Falamos muito da acessibilidade física e é muito importante, desloco-me em cadeira de rodas, portanto, sem acessibilidade física não consigo fazer o meu dia-a-dia”, assume.

“Mas há outras dimensões da acessibilidade que temos de falar e que condicionam a física, como, por exemplo, a forma como criamos espaços para que possa estar em equidade com a pessoa sem deficiência ou a acessibilidade nas atitudes e como olhamos para a pessoa com deficiência”, realça.

Catarina Oliveira entra na legislação laboral adentro. “Temos a lei das quotas, que as empresas têm de cumprir”, reconhece. Mas, pede e quer mais. “Não podemos ficar só debaixo deste guarda-chuva, porque chegam-nos casos de pessoas com deficiência, empregadas, mas sem um ambiente de trabalho inclusivo”, reporta.

Ilustra e recorre a dois exemplos. “A cantina será que é acessível para um colaborador em cadeira de rodas, nas casas de banho, se o balde do lixo abre com o pé ... ora, eu não mexo os pés...”, personaliza Catarina Oliveira.

“Um colaborador surdo, se comunica em Língua Gestual Portuguesa, numa reunião temos que ter intérpretes, pessoas autistas, muitas vezes precisam de osculadores por causa do ruído”, adianta.

Mas não só são esses os problemas. “Não têm a hipótese de progredir na carreira como outros, não recebem feedback equitativo das chefias, por pena e há quem diga não saberem como contratar porque ficam com medo de despedir e não sabem como abordar essa situação”, lembra, recordando que as pessoas com deficiência “estão em maior risco de pobreza e exclusão social”, realça.

Defende, assim, que “as quotas existem para que um dia deixem de existir, mas não podemos ficar só pela contratação. Temos de garantir que existe equidade na acessibilidade no ambiente de trabalho”, frisa.

O mesmo é solicitado do lado fora da empresa. “Os balcões num hotel, café, receção de uma empresa são altíssimos. Não é necessitam de destruir o balcão. Basta fazer uma parte rebaixada. Quem está numa cadeira de rodas, idosos e pessoas de baixa estatura merecem ser atendidos em equidade”, informa.

“Tornei-me uma pessoa com deficiência em adulta. Sei do que é que sou capaz”

Para além da acessibilidade física, Catarina Oliveira vira o foco para a “comunicacional”. Por isso, considera que urge “trabalhar na forma como interagimos com as pessoas com deficiência”, chama a atenção.

“Foi das coisas que mais me incomodou. A pena, a infantilização, o ver quase sempre a incapacidade antes da potencialidade, assumir que não pode”, lamenta a responsável pela academia da Acess Lab.

“Tornei-me uma pessoa com deficiência em adulta. Sei do que é que sou capaz”, dispara. “Agora, imaginem uma criança que cresce acreditando que é uma vítima, que não pode ser mais. Vive com esse peso às costas”, anota.

Recua às rampas. “Olhem para as rampas e para as atitudes. Não tratem todos por igual, porque não somos todos iguais, mas não tratem as pessoas de forma inferior, e isso acontece com pessoas com deficiência”, lamenta.

“As pessoas com deficiência podem navegar por diferentes profissões. Agora, quando nos limitam à partida e dizem, não penses nisso que isso não é para ti, coitado, é cego, não lhe dês tanto trabalho. Há logo estigma à partida”, reitera.

Não lhe restam dúvidas nas margens da dissertação. “Se tiver condições para trabalhar, tem tantas como outra pessoa”, garante. “Há a ideia errada de que a pessoa com deficiência é menos válida e capaz do que a pessoa sem deficiência. Sou menos capaz de correr do leão, porque não consigo correr. Agora, trabalhar ou de mostrar o meu valor, não”, assegura a Catarina Oliveira.

A “equidade” diz ser a melhor palavra para definir a acessibilidade. “Para mim, ambientes acessíveis são ambientes equitativos, onde percebemos a diferença uns dos outros, mas garantimos que as pessoas diferentes têm oportunidades iguais. Igualdade de oportunidades, equidade no acesso”, finaliza.