O Reino Suevo

No século V, concluída a invasão do noroeste peninsular, o norte de Portugal e a Galiza formam durante quase 200 anos o Reino germânico Suevo com capital em Braga. Muitos costumes romanos persistem como a celebração das calendas, onde, por exemplo, as pessoas se presenteiam com ramos de árvores para dar boa sorte no novo ano. E é fundamentalmente destas festas que deriva a decoração das casas dos suevos deste período com loureiro e outros verdes.

Martinho Bracarense, o primeiro bispo de Braga, e depois santo, também conhecido por S. Martinho de Dume, funda um mosteiro em Dume e inicia a conversão dos suevos ao catolicismo. É ele o autor deste decreto que faz parte da “Colecção de cânones”, coligida por si, que proíbe explicitamente no cânone LXXIII: “Que não seja lícito observar as festas das calendas. Não seja permitido observar as ímpias festas das calendas, e guardar as férias gentílicas; nem guarnecer as casas com louro, e ramagem de árvores. Todas estas práticas são do paganismo!”

Num texto do mesmo período, também da autoria deste mesmo bispo - “texto sobre crendices, ontem”, a colocação do louro é equiparada a uma obra do diabo, tal como outros costumes então populares, e pergunta “(...) observar adivinhação, agouros e os dias dos ídolos que outra coisa é senão culto diabólico? Observar as Vulcanais e as Calendas, guarnecer as mesas, pôr louro, entrar com o pé direito, derramar na lareira sobre a lenha a arder, alimento e vinho e deitar pão nas fontes, que é isto senão culto do diabo?”

O objetivo era óbvio: evangelizar, combatendo as práticas de magia e as superstições herdadas do paganismo que persistiam ainda neste período pós-romano.

As origens da censura

Quando Júlio César introduz o Calendário Juliano na República Romana no ano de 45 a.C. uma variedade de costumes passaram automaticamente a fazer parte do quotidiano de um grupo alargado de povos romanos: as procissões pelas ruas acompanhadas de cânticos, a iluminação de velas e de lanternas, a ornamentação das casas com loureiro e outros verdes, a troca de presentes (na qual os bolos e frutas são os presentes favoritos), os homens vestidos com adornos femininos, as mascaradas com personagens vestidos com peles de animais e a decoração de uma mesa chamada de ‘’mesa da fortuna’’ para antecipar um novo ano repleto de boa sorte. As calendas de janeiro, celebradas no dia 1 de janeiro, acrescentam também o hábito de presentear as pessoas com ramos de árvores para dar boa sorte no novo ano. Como vimos, é do Reino Suevo no século VI que parte, pela primeira vez, e de São Martinho Bracarense, a censura e proibição explícita aos homens de fé de observarem os costumes perigosos destas calendas, tais como manter os hábitos pagãos desses momentos de lazer e de adornarem as casas com loureiro e árvores verdes.

Dois séculos depois, em 742, aquele que ficou conhecido como o apostolo dos germanos - Vinfrido, mais tarde São Bonifácio de Mogúncia, queixa-se, numa carta escrita ao Papa Zacarias, de que nas vésperas das calendas de janeiro, e após práticas pagãs, o povo fazia procissões onde cantava canções pouco cristãs, usava expressões pagãs, emergiam as mesas da fortuna, o chamado “fogo das calendas” era alimentado e as mulheres usavam amuletos nos braços e nas pernas e vendiam também estes amuletos a outros. O fogo das calendas de janeiro era visto como sagrado e o costume ditava que nada poderia ser retirado desse fogo. Este fogo era mantido na privacidade da casa, longe do espaço público ao contrário de outras festividades em que o fogo é mantido ao ar livre.

Após a leitura da carta, o Papa não nega que estes costumes também aconteciam em Roma, mas declara na sua resposta a Bonifácio que repudia essas práticas e que todos os cristãos também deveriam repudiar. No ano seguinte apresentou o assunto perante o Sínodo de Roma, que de imediato interditou estes usos e costumes, sobretudo nas calendas de janeiro. Esta interdição foi repetida vezes sem conta ao longo dos séculos seguintes tendo a igreja incorporado, cada vez mais, penitências mais pesadas.

Um dos autores que nos fala sobre isso é Alexandre Tille, alemão, professor de língua e literatura alemã na Universidade de Glasgow em 1899 e que acrescenta num dos seus muitos textos, que a observância eclesiástica das calendas, reforça-se em meados do século IX e que é nos concelhos de Oxford (1222), e Lyon (1244) – sec. XIII, que as calendas de janeiro são proclamadas como uma festividade que deveria obrigatoriamente ser mantida exclusivamente na esfera estrita da igreja.

É por isso notável que não seja senão 800 anos depois da proibição decretada por S. Martinho Bracarense, já no século XIV, que se encontrem evidências das casas serem enfeitadas com verdes e árvores no novo ano e no Natal. O azevinho aparece também em cantigas inglesas a partir do século XV. É também a partir do século XIV /XV que em Portugal se encontram evidências dos monges de Cister decorarem no interior do Mosteiro de Alcobaça, durante o Natal, um ramo de Loureiro com laranjas e velas, objetos com significado religioso.

A primeira referência

No início do século XVI, aparece no centro da Europa a primeira referencia explicita a uma árvore de Natal que aparentemente nasce da fusão dos hábitos decorativos das casas (de raízes romanas) com uma lenda cristã popular a partir do século X, de acordo com a qual, na noite em que o salvador nasceu, todas as árvores das florestas floresceram e deram frutos. Esta lenda era bastante popular, e particularmente junto dos germânicos entre os séculos XV e XVI.

Esta primeira árvore é descrita na cidade de Estrasburgo, cidade situada numa região disputada historicamente pela França e Alemanha.

Esta referência, da autoria de um anónimo, está explicitada numa crónica de Estrasburgo, datada de 1604, onde se lê que os artesãos protestantes levavam abetos para dentro de suas casas durante o período das férias para serem decorados com rosas feitas a partir de papéis coloridos, maças, bolachas, biscoitos, ouropéis, doces, entre outros elementos. De acordo com o cronista, após recitarem versos memorizados da bíblia, as crianças recebiam “um, dois, três, ou quatro ‘centavos’, e por vezes um pequeno livro”.

Ainda em Estrasburgo, em 1657, essa prática era também condenável por aparentemente excluir a figura de Cristo do centro das celebrações de Natal. O clérigo de Estrasburgo, e teólogo protestante, Johann Konrad Dannhauer condena veementemente esta prática no seu livro, que se poderá traduzir livremente como “O leite do catecismo”. O autor escreve que “entre as diversas frivolidades com as quais se celebra o período do Natal, e com as quais se ignora a palavra de Deus ou as obrigações sagradas da quadra, é a utilização de uma Árvore de Natal ou abeto”. Dannhauer, acrescenta, destacando também que “seria mais adequado direcionar as crianças para o cedro espiritual de Jesus Cristo”. Ele próprio é uma das vozes que afirmam Martinho Lutero como inventor da Árvore de Natal, após uma caminhada na véspera de Natal, acompanhado de seus filhos, numa floresta nevada. No entanto, esta história não passa de uma ideia apócrifa. Apesar de amplamente reproduzida é absolutamente falsa. Uma gravura também muito reproduzida a partir de 1856 que representa Martinho Lutero e sua família a cantar em torno de uma árvore decorada é também uma fantasia histórica e é também já consensual entre os investigadores, e tal como reforça o investigador Joe Perry, no seu volume sobre o Natal alemão, estas duas lendas não contribuíram sequer para a popularização da armação de uma Árvore de Natal no interior das casas das famílias protestantes.

A armação da árvore – uma prática de classe

O modo como se populariza o ritual da Árvore de Natal pelas diversas camadas da população é do topo da hierarquia social para as bases. Espalhou-se das casas das elites do centro Europa para os escalões mais baixos da sociedade, das zonas urbanas para as zonas rurais, das regiões do norte protestante para o sul católico, e da Prússia para outros estados da germanidade e daí para toda a Europa. No final do século XVIII, a árvore era já comum nas casas da aristocracia do centro da Europa. No inicio de oitocentos, tornara-se obrigatória nos salões da alta burguesia. Porém, uma maior difusão da Árvore de Natal demorou décadas, e nas zonas mais rurais e católicas o processo foi particularmente demorado.

A Árvore de Natal germânica no século XVIII, Josef Kellner (1759-1814). (c) créditos: Colecção SCA | Natal Zeitgeist, Porto.

No século XIX, o costume de ornamentar uma árvore com objetos, no espaço doméstico, inicia-se segundo Perry em Berlim, em 1815, com Caroline von Humboldt, esposa do educador iluminista prussiano Wilhelm von Humboldt ao armar uma Árvore de Natal no seu salão da moradia do Unter den Linden. Nesta altura, Berlim era capital do reino da Prússia. Caroline escreve a Wilhelm: “em ambas as extremidades de uma longa mesa, duas pequenas árvores brilham com velas acesas (...) A Condessa Dübin rodeou uma com todos os tipos de presentes para os seus pequeninos, eu usei a outra para Hermann (...) dos seus presentes principais constavam um teatro, um interessante conjunto de construção, um esquadrão de Cossacos, e por aí fora.” Esta árvore terá sido a primeira Árvore de Natal num espaço doméstico de Berlim, naquela que seria a primeira de uma série de tradições que rapidamente se generalizariam a todo o continente europeu.

Perry acrescenta que na primeira metade do século XIX os católicos ainda lutaram para preservar a sua versão do Natal da infiltração protestante. Em 1823 o Arquiduque João da Áustria protestava que uma árvore decorada “com velas e uma divisão inteira cheia de brinquedos de todo o tipo” ameaçavam o caráter santo da tradicional cena do Presépio e perturbaria o momento de prece da noite de Natal exigida pela tradição católica. Ainda no final do século XIX as observações ‘modernas’ do Natal geravam um coro de desaprovação entre os católicos conservadores.

A industrialização e o mercado de consumo acabaram por generalizar o costume e na década de 1870 na imprensa periódica ilustrada reproduzem-se profusamente artigos que sugerem aos leitores como armar uma árvore cumprindo as mais estritas regras do bom gosto e que habitualmente juntam ornamentos feitos em casa com ornamentos adquiridos no comércio tradicional.

O escritor inglês Charles Dickens, nos seus “Contos de Natal”, também se refere à potencial paternidade da Árvore de Natal quando se refere a ela como o “belo brinquedo alemão”, repleto de presentes capazes de satisfazer o coração de qualquer criança.

São as aristocracias germânicas que difundem este costume da ornamentação de um abeto de Natal, às aristocracias europeias, designadamente às aristocracias inglesa e portuguesa. No Reino Unido, é o Príncipe consorte Alberto de Sachsen-Coburg, marido da Rainha Vitória, que leva em 1840 a tradição e que rapidamente se generaliza ao resto da população inglesa, sobretudo após a publicação na imprensa de uma gravura que mostra a família real, no palácio, junto à sua Árvore de Natal.

A Árvore de Natal no Palácio de Windsor, J. L. Williams (c. 1815-1877), 1848. (c) créditos: Colecção SCA | Natal Zeitgeist, Porto.

Em Portugal a introdução é feita por um elemento também proveniente da família Sachsen-Coburg: o príncipe consorte D. Fernando II que casa com D. Maria II em 1836. São muito conhecidos os desenhos que o rei D. Fernando II fez do Natal celebrado no Palácio das Necessidades nos quais se observa um pai vestido de Pai Natal rodeado dos seus filhos, manifestamente empolgados ao verem a figura presenteadora, com um ramo de vergas na mão direita (para alegadamente, senão para punir, pelo menos para assustar os filhos mal-comportados) e com frutas na mão direita e brinquedos num saco a tiracolo e noutro às costas. Toda a cena em torno de um abeto armado em cima de uma mesa decorado com bolas de vidro e iluminado por velas. Mas ao contrário do que acontecera em Inglaterra estes desenhos nunca foram publicados na imprensa portuguesa da época atrasando em Portugal a popularização da adopção da Árvore de Natal como elemento fundamental das festividades natalícias.

Em França, Tille conta que é em 1830, a partir de Paris, que a Árvore de Natal é introduzida através da Duquesa de Orleães, princesa de Mecklemburgo, que a importa da Alemanha. A partir das Tulherias o costume difunde-se por toda a capital parisiense. Trinta anos depois todos os mercados de Paris comercializam abetos no período de Natal e na igreja de Billettes uma Árvore de Natal era oferecida às crianças pobres de uma escola alemã. Em 1890 estima-se que só em Paris o mercado comercializasse já 40 000 abetos para consumo doméstico.

O Loureiro continua a ser utilizado em algumas regiões. Rebecka Mendelssohn, irmã do compositor Felix Mendelssohn, que se encontra em Itália, conta, numa carta dirigida à irmã Fanny em Dezembro de 1843, o modo como decorriam as celebrações do Natal naquele país. Lamenta a falta de um abeto, e refere que em Itália o lugar da árvore tradicional é ocupado por um Loureiro “que toca o tecto”, maravilhosamente adornado com rosas, grandes cachos de uvas, laranjas e um elemento tipicamente romano: frutos cristalizados. Acrescenta que na base da árvore há uma coroa de loureiro, maçãs, nozes, e os incontornáveis presentes.

Palácio de Cristal, Porto, Natal de 1865

É na cidade do Porto, em 1865, que se dá a introdução da Árvore de Natal no espaço público em Portugal, e que na opinião do historiador Hélder Pacheco “não será com certeza estranha à presença de uma bem instalada colónia inglesa cuja vida social influenciaria inúmeros aspetos do próprio modo de ser portuense”, destacando a proximidade desta comunidade com as velhas famílias burguesas do Porto. É por isso também possível que a generalização da armação de árvores no espaço doméstico burguês se tenha dado primeiramente nas casas portuenses. Sobre esta árvore chegam-nos registos que a descrevem como tendo proporções gigantescas e armada no salão principal do emblemático Palácio de Cristal. É ornada com variadíssimos brinquedos, bolas e velas multicolores, balões, algodão em rama, fitas douradas e prateadas não se distanciando muito no seu aspecto, das Árvores de Natal públicas de outras cidades congéneres europeias onde habitualmente são secundadas por enormes mesas apinhadas de brinquedos que são rifados e de seguida distribuídos pelas crianças.

Simultaneamente, no espaço doméstico portuense, arma-se o Presépio e o Pinheiro de Natal, na cozinha o bacalhau triunfa, a véspera de Natal é adocicada com o pão de ló em forma de coração e com bonecos de massa duros cobertos de açúcar e dourados em algumas partes onde também se inclui a nogada parecida com o torrão de alicante. Bebe-se vinho quente fervido com mel, passas e canela e procede-se à tradicional queima de um tronco de pinho. Trocam-se presentes, oferecem-se brinquedos às crianças, e o serão de Natal não se distancia muito dos de outras noites do Norte e da cidade do Porto onde, por exemplo, se contam histórias de fadas e da carochinha, lendas misteriosas de lobisomens... De seguida, toda a família se dirige à Igreja para assistir à tradicional missa do galo.

A Árvore de Cristo, Theodor Deschwanden (1826-1861), c. 1860. (c) créditos: Colecção SCA | Natal Zeitgeist, Porto.

Celebremos

Actualmente, a armação de uma Árvore de Natal está totalmente generalizada e a sua presença em qualquer casa continua a ter um caráter encantatório para todas as gerações. Uma das possíveis explicações para esta prática milenar chega-nos através de Carl Jung, um dos nomes maiores da história da Psicologia. Pouco antes do Natal de 1957, Jung é entrevistado por Geog Gerster para o “Die Weltwoche” de Zurique. O entrevistador pergunta: “(...) antecipo que o senhor concordaria que as Árvores de Natal são saudáveis – como medida de higiene psicológica?” Jung responde: “(...) o homem interior tem de ser alimentado – um facto que os modernos, com a sua confiança frívola na razão, esquecem frequentemente para o seu próprio mal. A Árvore de Natal é um daqueles costumes que constituem alimento para a alma, nutriente para o homem interior. E quanto mais primordial for o material que eles usam, mais promissores serão esses costumes para o futuro.

Celebremos, portanto, sem tentativas de proibição, esta tradição primordial.
Feliz Natal.


Este ensaio de Sérgio Costa Araújo, investigador e docente no ensino superior público na cidade do Porto, decorre fundamentalmente de dois acontecimentos felizes que o autor e natalista foi protagonista. A comunicação que fez no Natal de 2016 nos Paços do Concelho do Porto na sessão “um objecto e seus discursos por semana”, dedicada à Árvore de Natal dos Aliados. A leitura recente dos textos originais de S. Martinho Bracarense que confirmaram e documentaram as afirmações que aqui se apresentam. E claro está, esta descoberta, ao jeito de uma revelação, constituiu uma verdadeira epifania pessoal para o natalista.

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