O livro é mais filosófico do que técnico. Embora seja muito pormenorizado em termos de pesquisa das informações, acaba por inquirir sobre o valor intangível da evolução da espécie humana. O que nos fez passar de seres primitivos a homens complexos.

Ao procurar a origem das coisas, estamos em busca da nossa própria essência. É essa a última conclusão dum livro original, “As origens de tudo”, de Jürgen Kaube.

Pelo título, esperávamos ficar a saber como se inventou a roda ou quem descobriu o fogo; mas, não tendo provas de nenhum destes progressos, fica a pergunta do que nos fez passar da animalidade para a humanidade.

A primeira coisa que me surpreende no seu ensaio é que, embora trate minuciosamente da história das técnicas, as suas considerações são mais filosóficas.

Eu não separaria as duas vertentes. Diria que em todas as pesquisas há um pouco de filosofia, especialmente se a pesquisa tem a ver com problemas e com períodos da História que não foram concluídos, estão, por assim dizer, no escuro. Pode-se sobretudo especular. É um pouco como fazia o Sherlock Holmes...

Mas isso é porque você pesquisa períodos que são praticamente impossíveis de investigar. Vai buscar trabalhos das pessoas que investigaram e especula a partir daí.

O sistema é construir um modelo, ver as teorias, a evolução dessas teorias.

Uma vez que você é jornalista, procura naturalmente não dizer o que pensa e cingir-se aos factos. Mas o que eu gostaria era de saber a sua opinião. Por exemplo, a polémica sobre se o Homem começou por ser vegetariano ou carnívoro; é uma discussão interminável e inconclusiva. Contudo, você apresenta um argumento que eu nunca tinha pensado; só encontramos restos de ossos (da alimentação pré-histórica) porque os ossos duram milhares de anos, enquanto os restos de vegetais se decompõem rapidamente. Portanto, o argumento a favor do carnívoro não é tão conclusivo como pode parecer. Outra coisa interessante que menciona é que para cozinhar não basta ter fogo, é preciso também um recipiente resistente ao fogo.

Eu acho que éramos carnívoros, mas também tínhamos de ser vegetarianos, porque não se consegue sobreviver com uma dieta exclusiva de carne. Se se come só proteína animal, morre-se numa semana.

Então os nossos antepassados pré-históricos comiam vegetais crus?

Comiam vegetais crus, sim. Segundo a escola de Harvard, que tem investigado o assunto, há muitas raízes tuberculosas... Batatas, diríamos hoje.

Mas as batatas vieram da América, já no nosso período histórico.

Não batatas, mas vegetais semelhantes, raízes. Seria um desperdício não os aproveitarem. Podiam queimá-los para os tornar mais macios.

"Temos uma longa história em que a única coisa que interessava era a sobrevivência. A comida era tudo. Tudo era sobre comer. Comida e sexo."

Acha que o fogo veio muito mais tarde na evolução do Homem?

Sim, o fogo veio muito mais tarde. O primeiro instrumento de preparação dos alimentos é os dentes. Harvard estudou a redução do tamanho dos dentes de forma muito detalhada. Os mais antigos eram maiores e foram-se reduzindo com as melhorias na preparação dos alimentos. Se fizermos uma sequência temporal através das várias épocas, temos um período de, digamos, cem mil anos, em que os dentes vão ficando cada vez menores. Qual será a razão? Deve ser por mudanças na preparação dos alimentos. Deixou de haver necessidade de dentes muito fortes para mastigar coisas duras.

Os veganos dizem que começamos por ser exclusivamente herbívoros.

Os veganos, sim. É muito interessante esse argumento deles. Mas no livro não tento decidir quem é que tem razão. Limito-me a mostrar quais são os argumentos, que tipo de investigação se faz.

Mas qual é a sua opinião pessoal? Acha que comíamos carne e vegetais – raízes, folhas – ao mesmo tempo?

Sim, acho que comíamos vegetais e animais. Talvez animais pequenos, ou mesmo restos de animais mortos por outros animais. Se um leão matava uma gazela, deixava alguns restos...

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

E comíamo-nos uns aos outros?

Sim, por vezes. Alguns restos humanos têm marcas de dentes humanos... Penso que a comida era escassa e não havia nenhum constrangimento moral.

Outra coisa que me surpreendeu é que você diz que o cérebro consome a maior parte da energia que utilizamos. Julguei que era o estômago, no processo de digestão.

Pois, é verdade. O estômago usa muita energia, mas o cérebro usa mais.

Uma outra questão; você acha que a diferenciação entre o papel da mulher e do homem tem a ver com o tipo de alimentação que consumiam?

A diferença entre os homens e as mulheres teve muitas influências. Uma delas era a procriação. A mulher é que carregava o feto e tomava conta do bebé.

As mulheres são mais resistentes à dor. Não são tão fortes, fisicamente, mas muito mais resistentes.

É verdade. E ainda é assim! Mas penso que as diferenças de funções não seriam assim tão grandes. Não temos provas da pré-História, mas temos provas nas sociedades mais primitivas, que perduram até hoje. Há tribos em que as mulheres também caçam. Temos sociedades em que só os homens caçam, mas não temos sociedades em que só as mulheres o fazem.

As Amazonas...

Isso é um mito. A questão é como é que elas se reproduziam!

Uma outra questão: acha que o vinho precede a cerveja?

Parece que sim. A própria natureza faz vinho.

Li não sei onde que o vinho de antigamente seria intragável para nós.

Sim, era amargo e avinagrado. Punham-lhe mel. Sabemos que na Idade Média o vinho era o único líquido que se conseguia digerir, porque a água era insalubre. Os copos de vinho eram pesados, objetos muito caros. Bebia-se não só pelo conteúdo alcoólico, pela alegria que dava, mas também porque era muito mais higiénico.

No Antigo Testamento menciona-se vinho e não cerveja, não é?

A cerveja é uma invenção que vem com a sedentarização. É um culto, uma festa. Parece que a cerveja original vem da região que agora é a Turquia. O primeiro nome da cerveja é turco.

Isso leva-nos à questão da linguagem. A mim parece-me que o desenvolvimento da fala é o resultado do desenvolvimento do cérebro, e não o contrário. Você descreve, com grande pormenor, o desenvolvimento da mecânica da fala, da língua humana, por exemplo, que os animais não têm os mesmos movimentos... Mas não acha que nós começamos a falar porque começamos a pensar de uma maneira mais complexa?

Com certeza. A expressão usada é a co-evolução. Não se considera que um veio antes do outro, mas antes que há um desenvolvimento paralelo. Acho que os gestos chegaram primeiro. Mas há outra escola que diz que esse tipo de comunicação gestual não tinha conteúdo, era uma forma ganhar confiança entre as pessoas, sendo simpáticas umas com as outras. Uma espécie de estágio primitivo de comunicação.

Uma coisa que não se sabe realmente foi quando surgiu a ironia na comunicação. O cinismo. A insinuação, digamos assim. Porque isso também corresponde a um desenvolvimento do cérebro. Você diz que a intriga, os mexericos, é que levaram aos progressos na linguagem. O que deve ser verdade, porque os mexericos são fundamentais. E depois há o sentido de humor, que exige um cérebro ainda mais desenvolvido. Quando se diz uma coisa, mas quer dizer-se outra.

Pois é, a linguagem é uma tecnologia tão boa para comunicar! A possibilidade de mentir, por exemplo. Ter um conceito abstracto. Na Idade do Gelo havia sinais para indicar um leão ou uma águia, ou uma cobra. Mas são apenas sinais de que o animal está lá. Não conseguem falar dum leão que não está presente. Porque se se consegue falar dum leão que não está lá, também se consegue enganar.

Acha que eles conseguiam fazer isso?

Talvez fizessem, como um expediente. Dou-lhe um exemplo. Uma mulher muito bonita está presente nesta sala. E eu digo-lhe: há um leão lá fora! Vamos embora daqui. E você sai da sala. Assim, eu fico sozinho com a mulher muito bonita!

Estou a ver. E acha que essa possibilidade apareceu muito cedo?

Acho que sim. Aconteceu connosco e com os Neandertal. Muitos costumes vieram deles. É uma coisa que digo no livro; temos uma longa história em que a única coisa que interessava era a sobrevivência. A comida era tudo. Tudo era sobre comer. Comida e sexo. Mas depois aparecem inovações, o que é difícil ligar à sobrevivência. Arte, por exemplo. E consciência; porque me devo importar?

Penso que o nosso drama como seres humanos é termos dois conceitos que conseguimos compreender, mas não podemos atingir: eternidade e infinito. O que nos dá uma angústia. Anda tudo à volta disso. Queremos reproduzir-nos e queremos construir coisas que durem para sempre porque são formas substitutas de chegar à eternidade.

Eu diria que é uma espécie de irritação. Vejamos as coisas assim: nós caçamos juntos, lutamos juntos, somos amigos; e por qualquer razão você morre. Agora já não posso comunicar consigo. O que se passa? Sinto frustração, irritação. Fico sozinho com as minhas recordações. Então penso que devemos fazer qualquer coisa em relação ao que morreu. Não o podemos abandonar. Temos de o deixar (enterrado) com a sua faca. O que representa um grande sacrifício. São precisas centenas de horas para produzir uma faca. E agora colocamos a faca no túmulo.

"Individualmente, podemos não ter religião, eu diria. Mas não existe nenhuma sociedade sem religião. Na História, não se encontra nenhuma."

Às vezes penso que eles não davam aos funerais a importância que nós achamos que lhes atribuíam. Isto porque é o que encontramos sobre a sua presença. Esses homens construíram cidades, às vezes grandes cidades, mas porque as construções estavam à superfície, desapareceram, enquanto os túmulos, porque estavam enterrados, permaneceram. Talvez haja um exagero da nossa parte, porque são os únicos vestígios que encontramos. Claro que há o caso das pirâmides, mas os egípcios também tinham casas e outras construções menos resistentes, que para eles certamente eram muito mais importantes para o seu dia-a-dia do que os monumentos funerários. A vida não andava à volta das pirâmides, não se falaria muito delas, não se ficava a olhar para elas permanentemente.

É verdade, mas não conseguimos saber qual era a importância relativa que davam à morte. Podemos apenas especular. Sabemos que enterravam as pessoas. Quando se sedentarizaram, passaram a ter cemitérios. Os cemitérios implicaram templos. Temos então os templos, e a certa altura os templos sem cemitérios. Portanto eles faziam uma diferença entre a morte e o culto. Na Turquia temos templos sem cemitérios e que nem sequer estão próximos duma cidade. É um templo que vale por si próprio.

Bem, na religião cristã as pessoas pensavam que se não fossem enterradas na igreja não iam para o céu. Não sei como foi na Alemanha, mas em Portugal houve revoltas quando se fizeram cemitérios fora das igrejas.

Sim, mas uma coisa é dizer que não se pode ser enterrado fora do edifício, outra é ter o edifício sem o cemitério. Há uma socialização da religião; ir à missa é um evento, algo que liga a comunidade.

Acha que é preciso haver uma religião? Quero dizer, do ponto de vista social.

Individualmente, podemos não ter religião, eu diria. Mas não existe nenhuma sociedade sem religião. Na História, não se encontra nenhuma.

Mas repare que na Rússia, entre 1917 e 1991, a religião foi praticamente suprimida. Primeiro mataram os padres e fecharam as igrejas. A opressão foi total. Gerações inteiras foram criadas sem religião – não considerando o comunismo como uma forma de religião, o que é outra história. No entanto, depois do fim da URSS, a religião ressurgiu com uma enorme força. O facto é que as pessoas são capazes de matar outras por causa das suas convicções religiosas.

E de se matar a si próprias, o que é ainda mais estranho.

Pois é. Então, acha que a religião existiu sempre?

Não desde sempre. Não sabemos o que é que os Neandertal pensavam. Não sabemos se as suas histórias eram sobre caçadas ou sobre deuses.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Se considerarmos que uma religião serve para explicar tudo o que não se pode compreender, deve ter havido sempre alguma forma de religião.

Não tenho a certeza se é assim. Por exemplo, um caçador na África Oriental não tenta explicar coisas apenas porque não sabe como acontecem. Estas pessoas não têm problemas de conhecimento. Não são inquiridoras, digamos assim. Conhecem os animais melhor do que nós. Sabem dos sítios e do estado do tempo. Nós temos uma previsão do tempo tecnológica, mas a deles é melhor. Sabem muito sobre uma pequena área, e não sabem nada sobre o resto do mundo, porque não lhes interessa.

Gostaria de lhe colocar a questão da Arte. A Arte é completamente inútil, em termos de sobrevivência básica. Mas a Arte preenche a pessoa, como a religião, de certo modo. Isto porque nos permite ter experiências que não teríamos sem ela. Então, como é que a Arte aparece? Aquelas pinturas nas grutas, acha que eram Arte, ou tinham outra utilidade além da satisfação de as fazer e observar?

Sim, eu diria que não tinham utilidade. Talvez fossem documentais; a representação das criaturas que eles caçavam. Mas se fosse apenas um catálogo do que eles comiam, então porque não há representação de vegetais? Porque só cavalos e gazelas? Há um simbolismo sexual. Acho que a interpretação de Georges Bataille (antropólogo e filósofo francês) muito interessante: eles tentavam exprimir uma situação em que eles são como os animais, a caçar, a comer, a morrer, a reproduzirem-se, mas ao mesmo tempo são diferentes desses animais. Então talvez fosse a expressão do sentimento de que estavam próximos deles, mas não eram eles.

Bem, é interessante pensar que a nossa Arte (ocidental) até ao Renascimento tinha uma função didática, de mostrar acontecimentos religiosos, ou de retratar pessoas importantes. Não era uma Arte “livre”, digamos assim.

No caso da Arte pré-histórica, acho que era realmente livre. Tinha liberdade estética, com certeza. Até faziam humor. Em Lascaux há um homem com uma ereção. Está morto ao lado de um animal, mas com uma ereção. Isto só podia ser uma piada obscena. Isto há quarenta mil anos. Falámos de ironia... acho que é possivelmente uma ironia. Não sabemos, é claro, mas podemos pensar que é.

"Acho que vamos sobreviver. (...) Somos uma espécie muito resistente e muito inventiva"

Depois de falar do passado, falemos do futuro. Agora que temos tudo, o que nos vai acontecer? Quer dizer, temos até mais do que precisamos. Acha que nos vamos extinguir?

Não. Acho que vamos sobreviver.

Somos mais de sete mil milhões. Os recursos estão a tornar-se escassos.

Mas vamos sobreviver. Acontecerá algum tipo de mudança. Uma parte será tecnológica. Já produzimos imensa comida a partir de quase nada. Temos a hipótese da engenharia genética. Essas são partes da solução. Mas eu diria que a redução da mobilidade também é importante. Não creio que haja uma única solução para o planeta. Temos de reduzir certas coisas.

Uma delas seria a mobilidade?

Seria. Repare: é interessante que tenhamos a urbanização como uma tendência global. Mega-cidades. Também temos a Internet, que deveria diminuir a necessidade de viver numa grande cidade. Não precisamos de nos deslocar como o fazemos atualmente.

Na época das pinturas de Lascaux viviam na Europa cerca de duas mil pessoas. E viviam em seis grupos separados, o que era bom, porque se um grupo adoecia não transmitia a doença para os outros. O facto é que sobreviveram. Alguns viviam no que é agora o País Basco, outros no Sul de França, outros ainda na Áustria, na Checoslováquia e na Bélgica. Até onde sabemos, eram só esses. O resto eram florestas e pântanos. Somos uma espécie muito resistente e muito inventiva. Sim, vamos conseguir!

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