Não há notícia sobre vigilância que não acabe ou mencione o "Big Brother" de George Orwell. Porque embora tenha sido publicado em 1949 e o título faça referência a 1984, a verdade é que a sua narrativa parece ser cada vez mais contemporânea. O Grande Irmão está de olhos (câmaras) postos nos cidadãos que titubeiam pelas grandes cidades do mundo. Todavia, qual será a sua real extensão? Qual será a mais vigiada das cidades? Um artigo do The Guardian ajuda a responder a esta questão, analisando um documento de uma empresa tecnológica do Reino Unido, a Comparitech.

Para ajudar a perceber o que está em causa, o jornal britânico dá o exemplo dum caso passado na China. Qiu Rui, um policia da metrópole de Chongqing, estava de serviço durante o verão quando se deparou com um alerta do sistema de reconhecimento facial — cujo foco se tinha centrado numa pessoa que se encontrava numa das praças da cidade. Que tipo de alerta? De que existia uma grande probabilidade de um homem, captado pelas câmaras, ser suspeito num caso de homicídio em 2002. 

De acordo com o jornal britânico, o sistema de vigilância verifica os traços faciais das pessoas que deambulam nas ruas a partir de frames em vídeo em tempo real, conseguindo criar um mapa virtual do rosto. Criado o mapa, a tecnologia consegue combinar essa informação com as caras digitalizadas dos suspeitos da base de dados da polícia. Depois, caso exista correspondência nalgum caso que ultrapasse um limite predefinido, por norma igual ou superior a 60%, o sistema vai notificar, no imediato, as autoridades. Neste caso em particular, não demorou muito até que a sinalização do sistema resultasse numa detenção: três dias depois, a polícia capturou o indivíduo — que acabou por admitir que era, efetivamente, o suspeito. 

Este é apenas um exemplo de várias situações que acontecem no sudoeste chinês, onde o sistema de reconhecimento facial é utilizado para ajudar as autoridades a investigar casos criminais. Tanto assim é que o estudo da Comparitech, sugere que as 2,58 milhões de câmaras vigiam os mais de 15 milhões de habitantes de Chongqing — um rácio de uma câmara para cada seis residentes — fazem da cidade chinesa a mais vigiada do mundo. (Mais do que, por exemplo, Pequim, Xangai ou Shenzhen.) 

De resto, oito das dez cidades mais vigiadas do mundo são chinesas. Londres aparece na sexta posição da lista (627.707 câmaras para os seus 9 milhões de residentes) e Atlanta, nos Estados Unidos, aparecem no último lugar, com 7.800 câmaras para mais de 500 mil habitantes. 

1 - Chongqing, China (168 por 1000 habitantes)

2 - Shenzhen, China (159 por 1000 habitantes)

3 - Shanghai, China (113 por 1000 habitantes)

4 - Tianjin, China (94 por 1000 habitantes)

5 - Jinan, China (74 por 1000 habitantes)

6 - Londres, Reino Unido (68 por 1000 habitantes)

7 - Wuhan, China (60 por 1000 habitantes)

8 - Guangzhou, China (53 por 1000 habitantes)

9 - Pequim, China (40 por 1000 habitantes)

10 - Atlanta, Estados Unidos (16 por 1000 habitantes)

Fonte: Comparitech | The Guardian 

Xue Liang — Olhos de Lince 

Talvez não seja a cidade chinesa cujo nome salte no imediato ao nosso reconhecimento, mas Chongqing, a cidade mais densamente povoada do território, faz parte do projeto-piloto Xue Liang ("Olhos de Lince", em tradução livre do inglês Sharp Eyes) para combater o crime, que classifica a confiabilidade dos seus habitantes através dum sistema de ranking que tem em conta o seu comportamento. 

Porém, escreve o The Guardian, os críticos deixam o alerta sobre a generalização deste tipo de vigilância — que, alegam, viola os direitos internacionais à privacidade. Para ir ao encontro dos padrões internacionais de privacidade consagrados no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e políticos, quer a recolha quer a utilização de dados biométricos devem ser limitadas às pessoas envolvidas nalgum tipo de crime e não à população em geral. Assim como cada pessoa deve ter o direito para saber qual é a informação (dados) biométrica que o Estado tem sobre si. Ora, segundo as vozes que se opõem a este modelo, os sistemas automatizados de reconhecimento facial da China violam estas condições. 

A situação, contudo, não se passa apenas em território chinês. Durante o verão, o organismo gestor dos transportes de Londres (Transport for London ou TfL), recorreu a mais de 260 pontos de Wi-Fi, localizados em várias estações, para recolher o endereço do identificador único MAC (Media Acess Control) dos smartphones dos utilizadores — um pedido enviado quando o aparelho está à procura de uma rede Wi-Fi — de modo a que seja possível uma monitorização precisa da viagem. No entanto, esta situação só foi explicada aos passageiros após ter sido exposta pelos órgãos de comunicação social britânicos.

O desconforto com esta medida saltou o atlântico. Nos Estados Unidos, São Francisco tornou-se em maio na primeira grande cidade norte-americana a impor uma proibição deste tipo de mecanismo de vigilância com recurso a reconhecimento facial. "Isto é dizer: 'conseguimos ter segurança sem ser um Estado securitário; nós conseguimos ter bom policiamento sem ser um Estado policial'. E parte disso consiste em ganhar a confiança da comunidade tendo por base uma boa comunicação e não uma tecnologia à Big Brother", defendeu Aaron Peskin, um dos responsáveis pela legislação.

Por cá, no Centro de Gestão Integrada (CGI) do Porto, presta-se atenção às mais de 130 câmaras que vigiam as ruas da Invicta. É uma situação diferente, pois as câmaras de gestão de tráfego do CGI fazem muitas coisas. Contam carros; controlam a entrada nas vias de acesso condicionado; verificam se há problemas de trânsito. No entanto, não há recolha de dados ou reconhecimento facial; as imagens são um direto constante, sem gravação, sem possibilidade de voltar para trás ou fazer pausa. No entanto, Rui Moreira já disponibilizou a rede de câmaras de gestão de trânsito para que as forças de segurança possam vigiar os bairros com problemas de consumo e tráfico de droga. A lei permite o uso para o combate ao crime (coisa que o consumo não é), mas a oposição acusa o executivo camarário de estar a olhar para as prioridades erradas.
Apesar da contestação, há quem apoie o reconhecimento facial com base na premissa de que o avanço tecnológico promoveu sempre a mudança. E se utilizada de forma correta e responsável por parte do Governo e das empresas, pode ser efetivamente um grande alicerce para reduzir o crime e ser uma força positiva para o "bem". Inclusivamente, para um responsável da Facewatch, a principal empresa de reconhecimento facial do Reino Unido, "o génio da tecnologia do reconhecimento facial já está fora da lâmpada".

No entanto, muitos outros demonstram preocupação com o crescente número de câmaras de vigilância e sistemas de recolhas de dados que vêm com as "cidades inteligentes". Edin Omanovic, diretor do departamento legal da Privacy International, é da opinião que não só as "autoridades", mas também as "pessoas a quem servem", necessitam de uma abordagem muito mais cética quanto à ideia de que mais informação é uma "panaceia" de soluções.

"O risco óbvio é que [esta medida] só beneficie realmente as autoridades das cidades e as grandes empresas de tecnologia que vendem as soluções, em vez das pessoas que pretendem ajudar".