“Há ali qualquer coisa no túnel”. Estávamos nos vinte minutos de entrevista, no gabinete de crise do Centro de Gestão Integrada (CGI) do Porto. Num dos ecrãs das mais de 130 câmaras que vigiam as ruas da Invicta, brilham os pirilampos de um reboque, no Túnel de Ceuta.
É segunda-feira. Lá fora vai chovendo e é nesse misto de chuva miúda de outubro que o trânsito do Porto se vai movimentando pela malha da cidade. Todos os dias, são perto de meio milhão as viagens neste território. Só na VCI, que está a funcionar acima da sua capacidade, passam 113 a 146 mil veículos por dia.
Apesar disso, tudo vai andando nos conformes esta tarde. Aliás, está no sítio certo para isso — "pode ver ali”, diz o responsável pelos olhos da cidade. Manuel Paulo Teixeira é o diretor municipal de Mobilidade e Transportes. Hoje, veio ao CGI mostrar para que servem as câmaras de gestão de trânsito.
Atualmente, são 136, mas os planos preveem uma expansão a dois tempos: primeiro quarenta, depois mais quarenta. Todavia, no meio destas oitenta, há dez que se vão plantar no meio de dois bairros municipais: Pasteleira Nova e Pinheiro Torres.
Pinheiro Torres e Pasteleira Nova são dois dos bairros mais problemáticos do Porto. Encaixados nos morros da zona oeste da cidade, entre as mansões e condomínios da Foz e as vistas que desaguam no Douro, são dois conhecidos pólos de tráfico e consumo de drogas, que se estende das torres ao Fluvial, já a caminho do rio.
A droga saiu do Aleixo, mas foi-se meter, mais escondida ou não, noutros pontos da cidade, em jardins e átrios, em terrenos abandonados e edifícios decrépitos.
É quinta-feira. Passa pouco da meia-noite. Chove. Numa esquina à beira de Pinheiro Torres, um homem veste um poncho de plástico, daqueles de levar a festivais de música ou para os turistas andarem a ver museus debaixo de chuviscos estivais. Mas nesta noite de outubro, na esquina daquele prédio, o solipsista não assiste nem a concertos, nem passeia em monumentos.
Adiante, parado à beira da estrada, um carro branco. Do lado de fora, falando pela janela, outro homem. Este não veste plásticos, molha-se só com a chuva.
O cenário não é estranho. Basta ir aos fundos do parque de Serralves para dar de caras com ele, do outro lado dos muros. Basta caminhar debaixo das árvores junto ao Fluvial para o pisar, nas pratas e plásticos que sobram do consumo.
O Porto tem um problema com drogas à beira da Foz. Já o tinha, mas o desmantelamento do bairro do Aleixo fê-lo salpicar toda a zona, pô-lo a descoberto. Agora, Rui Moreira, o presidente da autarquia, quer pô-lo também debaixo de olho.
Olhos que veem
No alto dos seus postes, as câmaras de gestão de tráfego do CGI fazem muitas coisas. Contam carros; controlam a entrada nas vias de acesso condicionado; verificam se há problemas de trânsito. As imagens são um direto constante, sem gravação, sem possibilidade de voltar para trás ou fazer pausa. Aquilo que passa por estes ecrãs "nunca é gravado, é visto só no momento", explica Manuel Paulo.
Apontadas ao Porto, as câmaras permitem ao CGI detetar as anomalias na rede "e intervir no momento", diz Manuel Paulo. Ao mesmo tempo, o centro pode controlar "os subsistemas que estão na via pública — os semáforos, a iluminação pública — conseguimos detetar problemas ao estarmos a olhar para a cidade e promover a sua rápida resolução”.
Para melhorar essa visão, algumas das novas câmaras que vão ser instaladas dispõem de coisas como visão noturna ou imagens térmicas (para furar o nevoeiro da Invicta, grande inimigo do CGI).
A maioria das câmaras concentra-se nas zonas de maior tráfego de pessoas e automóveis: grandes vias, a baixa e o Centro Histórico. É lá que estão os grandes interesses de mobilidade e concentração de pessoas.
Assim, o que há para ver nos bairros? Carros — e apenas carros. “Há aqui uma coincidência em termos de localização face aos outros assuntos que têm vindo a ser discutidos, mas efetivamente é” esse o interesse, afirma Manuel Paulo Teixeira.
“Isso é visível porque estão neste momento a decorrer obras para abrir novos arruamentos nesse local [zona da Pasteleira Nova e Pinheiro Torres até ao Fluvial]. Estamos a estudar a alteração de algumas posturas de trânsito, para permitir também uma ligação pela rua de Grijó direta ao nó de Bessa Leite”, exemplifica.
Rui Moreira, contudo, quer ver mais — quer ver pessoas. Não como principal objetivo do sistema, mas como consequência de ele já existir.
“Existem na cidade cerca de 150 câmaras de controlo de trânsito” que não são nem podem “ser usadas para questões de segurança”, contudo, “querendo, pode a PSP e qualquer outra instituição de segurança ou investigação requerer esse meio”. “Estamos prontos a ceder”, afirmou o autarca numa reunião do executivo a 7 de outubro.
Manuel Paulo Teixeira diz que não vê problemas técnicos ou operacionais na disponibilização das imagens ao ministério da Administração Interna, "até porque é mesmo um fornecimento de imagem e de dados, nem sequer vemos grande interesse em que essas temáticas sejam tratadas aqui no Centro de Gestão Integrada, não queremos distração”.
"Agora, se podemos fornecer? Podemos, claro que sim; e não tem qualquer impacto na nossa atividade.” Manuel Paulo afirma que atualmente estão a ser usadas "apenas uma parte das capacidades" do sistema, "se se quiser usar a plenitude das suas capacidades, ou até melhorá-lo, não temos nada contra", garante.
O diretor de Mobilidade do Porto nega quaisquer pressões para a escolha dos lugares prioritários à implementação das novas câmaras. "Não há pressão absolutamente nenhuma, e mesmo que houvesse, ela não ia ter grande efeito. Temos de perceber qual o investimento que temos a fazer e, havendo uma decisão nesse sentido, também o faríamos, mas as nossas prioridades vão para aquilo que é a gestão de tráfego".
Olhos que não são para ver
Aquilo que se faz no CGI “nada tem a ver com funções de investigação e combate criminal”, sublinha a autarquia, numa resposta por escrito, já após a visita do SAPO24 ao CGI. “No caso das novas câmaras, estas visam dar resposta a questões de mobilidade e gestão de tráfego, como explicado na reunião de executivo onde as mesmas e as suas novas funcionalidades foram apresentadas”, insiste o município. “Podem é, caso o Estado entenda, vir a ser usadas para outros fins”.
Esses outros fins são a prevenção, detenção, investigação e repressão de infrações penais — coisa que o tráfico é, mas que o consumo deixou de ser em 2000.
Apesar da sugestão do presidente da autarquia, a câmara afasta que haja intenções de tornar o sistema de gestão da cidade numa rede de vídeovigilância. As alterações previstas são um alargamento daquilo que já existe, nos moldes em que já existe. Porque é difícil separar aquilo que são questões de trânsito e aquilo que são questões de segurança e gestão da cidade — mas não há intenção de montar um sistema securitário.
"Até porque nós próprios vivemos na cidade e não queremos entrar nessa linha de desconforto", afirma Manuel Paulo. "Embora estejamos a cumprir integralmente aquela que é a nova normativa europeia para a proteção de dados, temos o nosso plano de impactos realizado e levamos aquilo escrupulosamente — mas ainda que não houvesse plano nenhum, é matéria que não nos interessa para o dia a dia”.
"Não há aqui interesse nenhum em vigiar as pessoas", afirma o diretor de mobilidade da autarquia portuense.
Olhos que podem ver
Do ponto de vista legal, é possível usar câmaras instaladas com fins de gestão de trânsito para o combate ao crime. Isso mesmo explica Inês Camarinha Lopes, assistente convidada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto: “se se tratar de fins de proteção de pessoas e investigação e repressão penais, a lei diz, claramente, que é possível. Se a primeira finalidade for lícita, se o tratamento de dados for lícito, pode haver tratamento, pelo mesmo ou por outro responsável, se a segunda finalidade se tratar de investigação, repressão e detenção de infrações penais”.
O consumo de droga não é crime desde 2000. Isto não quer dizer que seja um comportamento lícito: é uma contra-ordenação e pode haver a aplicação de uma coima ou de outra sanção não pecuniária. Assim, não se pode instalar uma câmara de vigilância meramente em sítios onde haja consumo de estupefacientes — por não estarmos perante um crime.
O tráfico de droga, contudo, é crime. Se for identificado esse risco objetivo, o presidente da câmara pode pedir autorização do membro do governo que tutela a força ou serviço de segurança para a instalação de câmaras de vigilância nas zonas em que haja perigo de ocorrência desse crime.
Estando este e todos os pressupostos de proteção de dados assegurados, pode ser autorizado o uso dos meios de que a câmara já dispõe para os fins referidos por Rui Moreira.
Olhos que estão a olhar para as prioridades erradas
O presidente da concelhia social-democrata do Porto, Hugo Neto, diz que é favorável ao uso das câmaras de trânsito para a investigação e o combate à criminalidade, mas apenas se forem salvaguardados pressupostos prévios. O líder local do PSD explica ao SAPO24 que é preciso garantir primeiro que o sistema cumpre todas as regras de proteção de dados.
Todavia, a “questão estrutural” é outra: a falta de recursos adequados, sejam policiais ou mesmo sociais. Nestes últimos, Hugo Neto pega no exemplo do programa Porto Feliz, durante os executivos de Rui Rio, para dizer que “hoje não há nada de semelhante” para o combate ao consumo de droga.
Por telefone, Hugo Neto considera que a demolição do bairro do Aleixo, na zona ocidental da cidade, não foi acompanhada de planos capazes de fazer o acompanhamento dos problemas que já lá existiam.
Sobre as forças de segurança, o social-democrata defende um “reforço urgente de meios humanos”, necessário para que seja dado um uso efetivo ao sistema de vigilância que está a ser montado — isto depois de se perceber se a PSP está interessada na solução sugerida pela autarquia.
Por outro lado, Susana Constante Pereira, deputada municipal do Bloco de Esquerda, defende que “esta opção é uma forma de desviar” a atenção da prioridade que deve ser tida em conta na gestão do problema. Para a deputada bloquista, com o desmantelamento do Aleixo, não foram antecipados os problemas, previsíveis, e para os quais é necessária uma “abordagem integrada”.
Constante Pereira critica que se esteja a “misturar o consumo com o tráfico” de droga, temendo um “retrocesso em relação a uma estratégia que é um modelo” na abordagem ao consumo de estupefacientes.
“Estamos a voltar aos anos 1990, à estigmatização, ao medo”, afirma a deputada municipal. Não descurando que há zonas do Porto onde a situação é sensível, Susana Constante Pereira acusa Rui Moreira de “lançar o medo na cidade”, com uma medida que “vai pôr consumidores e equipas de rua em risco”.
“Quando as medidas políticas são securitárias, cria-se uma postura defensiva que complica a capacidade de resposta e intervenção”, explica, por telefone, ao SAPO24.
Ilda Figueiredo lembra que a resposta tem de ser mais nacional do que local. A vereadora da CDU diz que o tema “é uma competência do Estado central” e mostra-se contra o eventual uso das câmaras de trânsito para outros fins que não os da gestão de tráfego.
“Não estamos de acordo”, explica ao SAPO24, lembrando as posições defendidas em reuniões de câmara. “Essa não é a solução”, afirma, defendendo programas de intervenção que articulem respostas e colaborações entre o Estado e a autarquia. Ilda Figueiredo defende ainda que se ponha novamente a funcionar o IDT, o Instituto da Droga e da Toxicodependência, extinto pelo último governo PSD/CDS-PP.
Ao telefone, a vereadora mostra-se também contra o eventual regresso da criminalização do consumo de drogas, defendendo a legislação nacional em vigor.
Já numa reação por escrito, o Partido Socialista “considera que, tomadas as devidas precauções para a proteção da privacidade dos cidadãos, a videovigilância constitui um instrumento útil para a prevenção e para o combate à criminalidade. Isso inclui naturalmente o tráfico de droga.”
Todavia, Manuel Pizarro, vereador dos socialistas na câmara do Porto, defende num artigo no ‘Expresso’ que “não podemos regressar a um passado de criminalização pela criminalização, no Porto ou em qualquer outra parte do país”.
“No Porto, o Aleixo era a zona mais problemática e o seu desmantelamento sem adequado acompanhamento sanitário e social contribuiu muito para a crise de segurança que estamos a viver”, escreve o também eurodeputado.
Apesar das tentativas, não foi possível ouvir os restantes partidos representados na assembleia municipal do Porto.
Na semana passada, a Harm Reduction International, organização que se dedica a reduzir os impactos negativos do uso de drogas e a respetiva regulamentação, condenou as declarações de Rui Moreira, que defende a criminalização do consumo no espaço público, dizendo que se trata de “um passo atrás na política portuguesa de drogas”.
“Desde que a descriminalização entrou em vigor [em 2000], as mortes por overdose e as infeções de VIH entre pessoas que usam drogas em Portugal diminuíram significativamente, tal como as prisões por ofensas relacionadas com drogas. Reintroduzindo as penalizações criminais pelo uso de drogas, arrisca-se a reversão destas tendências positivas”, defende a organização não governamental.
Naomi Burke-Shyne, diretora executiva da organização, considera “extremamente desapontante” que as autoridades do Porto estejam a considerar reintrodução da criminalização do consumo de drogas. “Os indícios mostram claramente que a criminalização é ineficaz na redução do uso e drogas, servindo apenas para colocar pessoas e comunidades em maior risco de perigos sociais e de saúde”.
Burk-Shyne sublinha a incoerência da posição de Moreira com a vontade mostrada no início do ano quando, na conferência da organização, precisamente no Porto, o autarca anunciou a abertura da primeira sala de consumo assistido na cidade.
“Que esta afirmação tenha sido feita por um presidente de câmara que no passado demonstrou apoio para uma abordagem às drogas centrada na saúde é particularmente preocupante. O expediente político não deve pesar mais que a saúde e a segurança das pessoas que usam drogas no Porto.”
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