A Mesquita Central de Lisboa está em festa: são os 50 anos da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL). É sexta-feira, 16 de março, e à entrada, uma passadeira vermelha — que contrasta com o tom azul dos azulejos — conduz até ao pátio onde habitualmente se encontram aqueles que se preparam para ir rezar. Alguns ainda o fazem, outros estão ansiosos à espera dos convidados que hão-de chegar.
Um grupo de mulheres começa a indicar o caminho do salão nobre a quem se junta na entrada. Lá dentro, as cadeiras estão quase todas ocupadas e os ecrãs mostram imagens exteriores da entrada da Mesquita em Lisboa, da Purificação do corpo, da Oração e do pátio interior da Mesquita. Divulgam também a série filatélica composta por quatro selos que comemoram o aniversário com imagens alusivas à Mesquita Central de Lisboa, a Palhavã, e à sua sala de oração com design a cargo do AF Atelier.
Para celebrar o Cinquentenário da Comunidade Islâmica de Lisboa — a primeira a reaparecer na Península Ibérica desde a saída dos muçulmanos —, foram vários os convidados ilustres presentes: António Guterres, Secretário Geral das Nações Unidas; Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República; Eduardo Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República; D. Rino Passigato, Núncio Apostólico, D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa; Sheik Ahmad Mohammad El Tayyeb, Grande Imã da Universidade Al Azhar, entre outros.
E na sala foram recitados versículos do Alcorão, porque é assim que tudo deve começar
A iniciar a sessão esteve o Sheik David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa. “Vou recitar alguns versículos sagrados do Alcorão, em árabe, a língua litúrgica do Islão, e também com a respetiva tradução”. A voz encheu a sala, que respondeu quando o devia fazer. “Deus é o Senhor dos mundos, é o Misericordioso, é o Soberano do Juízo Final. Só a Ti adoramos, só a Ti suplicamos ajuda. Guia-nos para o caminho correto, daqueles que mereceram a tua graça; não daqueles que mereceram a tua zanga”.
Depois dos vários versículos houve tempo para ouvir os agradecimentos de Abdool Magid Vakil, presidente da CIL, e o Sheik Ahmad Mohammad El Tayyeb. Depois, Abdool Karim Vakil recordou estes 50 anos de história, de trabalho e de empenho na construção da Comunidade.
“Quero começar lembrando que isto é uma comemoração e, portanto, uma celebração. E o que estamos a comemorar? Não é exatamente o ato fundador de há 50 anos, embora seja a ação de uma geração pioneira. É uma ação pioneira de uma geração que continua a desenvolver a CIL ao longo dos tempos, como comunidade organizada e reconhecida em Portugal”, começou por dizer Abdool.
“São 50 anos de vida muçulmana em Portugal que são também 50 anos de profunda mudança na sociedade portuguesa. A própria questão dos muçulmanos em Portugal e dos muçulmanos portugueses sofreu uma transformação [nestes anos]”.
Olha então para o país e para a comunidade e as suas palavras recaem sobre os jovens muçulmanos que se destacam. “Supostamente [os jovens] encontram-se entre culturas, entre gerações, tentando encontrar novos meios de ser muçulmanos pela Europa. Mas são os próprios jovens que já estão a desenvolver investigação académica, que estão a abrir outros caminhos fora e dentro da universidade. O que eles estão a fazer é a mesma ação pioneira das primeiras gerações de muçulmanos: são os que se interessam por aqueles que criaram a possibilidade de se viver e se estruturar uma sociedade muçulmana”, apontou.
É este interesse que leva a querer conhecer-se as “gerações mais velhas”. Gerações que têm histórias e memórias que não podem ser perdidas. Afinal, 50 anos têm muito e ensinar. Mas há muito trabalho a ser feito. “Aqui em Portugal ainda está tudo por fazer, ou quase tudo. Não fizemos ainda a recolha da documentação, da história oral nem dos sítios e dos legados de memória”.
A presença muçulmana no país deixou o seu legado e isso tem de ser mostrado. É a história de um país com gentes que vieram de longe. Gentes estas que começaram a mudança na cidade há 50 anos. A Comunidade Islâmica de Lisboa foi constituída em 1968 por um grupo de universitários muçulmanos que, na altura, se encontravam a estudar na capital portuguesa, oriundos das ex-províncias ultramarinas portuguesas. A primeira solicitação de um terreno, feita à Câmara Municipal de Lisboa para a construção de uma Mesquita, foi em 1966, por uma comissão composta por cinco muçulmanos e cinco católicos, no entanto, só em setembro de 1977 foi cedido um terreno na avenida José Malhoa. O lançamento da primeira pedra aconteceu em janeiro de 1979 e a inauguração da primeira fase de construção realizou-se em 29 de março de 1985.
“A CIL teve o fim de assegurar o culto do islamismo” na cidade, lembrou Abdool Karim Vakil. E se ao início eram “meia dúzia”, com os anos a situação mudou: agora vivem em Portugal cerca de 50 mil muçulmanos. E têm um local — que é mais do que isso — onde se sentem em casa, mesmo que por vezes a muitos quilómetros da sua terra natal.
"Fernando Pessoa referia que a alma árabe é o fundo da alma portuguesa”
"O Islão está na alma de Portugal", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, à entrada para a cerimónia, na Mesquita Central de Lisboa. Na sua intervenção inicial, o Presidente da República frisou que a história do país se cruza com a história muçulmana. ”Podemos, de quando em vez, não ter a consciência da profunda herança deixada pelos árabes na sociedade e na cultura portuguesa, mas ela foi e continua a ser muito importante”. Prova disso também foi a presença não só de Marcelo Rebelo de Sousa mas de vários outros Presidentes da República, nomeadamente António Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Cavaco Silva.
"Fernando Pessoa referia que a alma árabe é o fundo da alma portuguesa, o que vai muito além de um conjunto de palavras de raiz árabe existente no nosso léxico", prosseguiu o chefe de Estado, recebendo palmas."Com efeito, a presença árabe e a herança islâmica permitiram que se desenvolvesse um espírito ecuménico e de abertura entre os portugueses, que resulta de uma convergência de diferentes culturas e credos”.
Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que o princípio da liberdade religiosa consagrado na Constituição está "irreversivelmente enraizado" na sociedade portuguesa. "Negá-lo é negar a nossa natureza", considerou. Não terminaria sem elogiar a Comunidade Islâmica de Lisboa, "a primeira comunidade islâmica na Península Ibérica após a retirada dos árabes deste canto da Europa”, que apontou como "um exemplo importante" num mundo "onde grassam exemplos de incompreensão pelo próximo, que levam a extremismo e violência". Importante também por colocar "a tónica numa mensagem de paz, de abertura, de diálogo e de ecumenismo" e atuar "de forma concreta e empenhada na resolução de problemas sociais" - uma atuação que espera que assim se mantenha.
"Saibamos todos nós transmitir às futuras gerações estes valores humanistas que são, por natureza, os valores do Islão. Saiba a Comunidade Islâmica de Lisboa continuar a promover estes mesmos valores e consigam as futuras lideranças da comunidade respeitar e prosseguir o legado dos seus fundadores", acrescentou.
O Presidente da República manifestou o desejo de que, em 50 anos, o centenário desta comunidade seja festejado "com o mesmo entusiasmo pela mensagem de diálogo, ecumenismo, dádiva e paz, no fundo, de liberdade religiosa, de liberdade como um todo, que caracteriza o Islão em Portugal, e que bem legitima a condecoração desta instituição com a Ordem da Liberdade”, que se destina a distinguir "serviços relevantes prestados em defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e à causa da liberdade”.
E a terminar o discurso, ouviu-se Marcelo Rebelo de Sousa em árabe: ”Que a paz e a bênção de Deus estejam convosco”.
António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, frisou a questão da diversidade. “A diversidade é uma fonte de riqueza, não é uma ameaça (…). [Mas] só por si não garante a harmonia de uma sociedade”, referiu, acrescentando que, “para que haja efetivo pluralismo e uma coesão”, tem de haver “um grande investimento”, envolvendo governos, autarquias, líderes religiosos e sociedade civil.
Apesar de realçar o investimento feito em Portugal em prol da diversidade, o secretário-geral das Nações Unidas lembrou que ainda há no país manifestações de xenofobia, racismo e ódio contra muçulmanos. Oinvestimento realizado, sublinhou, “tem de ser continuado, e com grande persistência”.
Na sua intervenção, que antecedeu a sessão de encerramento, ao contrário do que previa o programa, o secretário-geral das Nações Unidas assinalou que o radicalismo “é uma perversão do pensamento religioso, que não é monopólio do Islão”, dando como exemplos os fundamentalismos budista e cristão.
Ao longo da tarde aconteceram diversas sessões, contemplando os temas “Sociedade Portuguesa hoje: Religiosidade, Imigrações, Religiões” e “Segurança e Cidadania”. As conferências continuam no sábado, com destaque para “A Mulher na Religião e na Sociedade”, a “Vivência Religiosa na Sociedade Portuguesa”, o “Sistema Financeiro Islâmico” e o “Contributo do Islão para a Civilização”.
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