Quando chegar a altura do ano em que se fazem exercícios de memória e se rebobinam os últimos 12 meses de modo a escrutinar o que mais de importante se passou, o dia 9 de junho ficará certamente marcado no filme português de 2020. Não só porque data o momento em que Portugal soube que Mário Centeno iria sair do Governo, mas também por ter sido o dia em que o Governo apresentou o seu sucessor (João Leão) e o Orçamento Suplementar (as medidas com as quais Portugal vai responder à crise provocada pela pandemia).
Acontece que dias depois, no seu espaço de comentário na SIC, Marques Mendes, além de mandar umas alfinetadas a Centeno por "abandonar o barco" a meio de uma grave crise, deu conta que o Governo tinha entregado a proposta de Orçamento Suplementar no parlamento na última sexta-feira. Porém, salientou que a proposta não terá sido entregue "sozinha": foi juntamente com um anexo que trazia um parecer que informava os partidos de que os seus deputados não podem sugerir medidas que possam agravar as despesas do dito orçamento.
E, assim, o termo "lei-travão" iria saltar para vários títulos noticiosos no dia seguinte.
A resposta não se fez tardar e surgiu logo de manhã pelo chefe do executivo. "Desta vez o doutor Marques Mendes estava mal informado, porque o Governo não anexou nada à sua proposta de Orçamento Suplementar. O Governo entregou a sua proposta de lei sem qualquer parecer", contrapôs o primeiro-ministro, citado pela agência Lusa. E explicou que, aquilo que existiu foi uma partilha de um "parecer que, basicamente, segue um acórdão muito conhecido do Tribunal Constitucional".
O parecer, segundo a agência Lusa, que teve acesso ao documento, são 11 páginas — onde se conclui que a "Assembleia da República não tem competência para proceder a modificações na Lei do Orçamento do Estado que não se inscrevam no âmbito da proposta do Governo, sob pena de violação do equilíbrio constitucional de poderes" prevista no artigo 161.º da Constituição Portuguesa.
E o que diz a oposição sobre aquela que é conhecida como a lei-travão?
António Costa diz que "há muitos anos que Portugal não tinha orçamentos suplementares ou retificativos" e que "muitos dos deputados são novos". Por isso, "talvez houvesse menos memória sobre qual é o quadro próprio inerente à elaboração de orçamentos retificativos". Por essas razões, segundo o primeiro-ministro, o Governo "recordou que, mesmo no quadro de um Orçamento Retificativo, a lei travão continua a prevalecer".
Os partidos de oposição não se reveem nestas insinuações. O PCP já avisou que a Assembleia da República "não pode ficar" limitada na sua intervenção e garantiu que vai fazer propostas de alteração. Com travão ou sem travão.
Já o CDS-PP rejeita "uma regra" que dite que "o Governo tem todos os poderes e o parlamento não tem nenhum poder". A líder parlamentar centrista, Cecília Meireles, recordou ainda em declarações à agência Lusa que o PS que "já votou favoravelmente" iniciativas que "aumentavam a despesa do Estado".
Por seu turno, o PSD considera ser uma atitude estranha por parte dos socialistas. "Há aqui algo de muito estranho, ao longo dos anos sempre foi possível apresentar propostas de alteração, o próprio PS apresentou inúmeras propostas no período dos governos PSD/CDS", vincou o vice-presidente da bancada do partido, Afonso Oliveira.
Quanto ao Bloco de Esquerda, a deputada Mariana Mortágua começou por considerar que um Orçamento Suplementar não tem "a amplitude de um Orçamento do Estado regular", compreendendo "perfeitamente que o âmbito de alteração e a amplitude do orçamento é diferente de um processo orçamental que se inicia". Porém, salienta que "não podemos desistir ou abdicar da responsabilidade que o parlamento tem de fazer propostas de alteração".
Por fim, o PAN fala mesmo de que se trata "de uma intromissão nas competências do parlamento" e uma "forma de condicionar" o debate. André Silva considera que, "com esta tentativa de condicionamento das competências do parlamento, o Governo demonstra um desejo de conflitualidade política".
A proposta do Governo de revisão do Orçamento do Estado de 2020 é debatida na Assembleia da República na próxima quarta-feira, dia 17. Por isso, o tema não se deve esgotar até lá.
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