O apagão que deixou a Península Ibérica às escuras na passada segunda-feira, teve impactos diferentes nas empresas portuguesas. Por exemplo, as startups com infraestruturas assentes na “cloud demonstraram maior capacidade de resistência, enquanto as pequenas e médias empresas, particularmente no setor da restauração, enfrentaram prejuízos imediatos.

Enquanto se apuram as causas do “blackout”, considerado “inédito” pela Proteção Civil, já se vão fazendo as contas aos estragos. Jorge Pisco, presidente da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME), começa por dizer que os prejuízos económicos ainda estão a ser contabilizados. “Isso ainda é um levantamento que está a ser feito e que levará, certamente, algum tempo”, afirma.

Das lojas fechadas aos gelados derretidos

No entanto, o presidente da CPPME já identifica setores que sofreram perdas imediatas: “Aquilo que se pode dizer numa primeira abordagem refere-se, nomeadamente, à questão da restauração, principalmente no que diz respeito aos alimentos perecíveis, tendo em conta o período largo em que as arcas frigoríficas estiveram desligadas, o que resultou em alimentos que ficaram fora das condições de utilização”

Os estabelecimentos comerciais também foram afetados pela impossibilidade de funcionamento. “No setor do comércio o que houve foram perdas de clientes nesse dia”, refere o responsável. A situação estendeu-se aos setores industriais: “No setor metalomecânico ou têxtil, não havendo energia, não é possível trabalhar. As máquinas são todas elétricas e, a partir do momento em que não há energia, a maquinaria fica desligada e não há possibilidade de trabalhar.”

Jorge Pisco partilha ainda o caso de um dirigente da confederação que possui um restaurante e que “com a geleira onde tinha os gelados, teve um prejuízo de mais de mil euros”.

No mundo das startups, a “cloud” salvou o dia

Mas nem todos tiveram o mesmo azar. Conversámos com duas startups de base tecnológica que, ao contrário do que se possa pensar, demonstraram maior resiliência face ao apagão.

A Emitu, empresa fundada em 2017 que desenvolveu um sistema que permite monitorizar em tempo real os consumos energéticos, praticamente não sentiu impacto nas suas operações, embora a história seja diferente no que toca ao dia a dia nas instalações da empresa.

Nuno Gonçalves, CEO da Emitu, conta que “o apagão impediu-nos de trabalhar normalmente. Embora estivéssemos equipados com computadores portáteis, isso não permite um trabalho normal, até porque a nível das comunicações fixas o apagão afetou-nos seriamente.”

No entanto, a estrutura da empresa permitiu que os seus serviços continuassem operacionais: “A nossa plataforma está na ‘cloud’, os nossos serviços são na ‘cloud’ e não foram afetados pelo apagão, pois nem sequer estão alojados em Portugal, e mesmo que estivessem, iriam funcionar normalmente.”

Na Paynest, “o apagão não nos apagou

A Paynest, uma plataforma financeira integrada para as empresas e os seus colaboradores, também registou um impacto mínimo nas suas operações. Nuno Pereira, CEO da startup portuguesa, afirma que “a Paynest em si, em termos de funcionamento, não foi afetada. Quanto à nossa parte tecnológica, continuámos a funcionar e a fazer transferências durante o dia e a noite toda. Portanto, posso dizer que o apagão não nos apagou.”

Mas se as operações da empresa escaparam, o mesmo não se pode dizer sobre os seus utilizadores, já que a empresa registou uma redução na submissão de dados pelos seus clientes. “O que observámos foi que a nossa base de clientes, ou melhor, os colaboradores de clientes em Portugal e em Espanha, como estavam sem acesso à internet e sem acesso ao telefone, submeteram muito menos despesas e muito menos créditos do que o habitual”, conta o responsável.

Nuno Pereira sublinha que, apesar desta redução, a infraestrutura da empresa continuou plenamente funcional: “Os pagamentos continuaram a ser processados, porque a nossa infraestrutura está assente na AWS [Amazon Web Services], que não está cá [em Portugal]. Portanto, apenas registámos um pouco menos de volume do que o habitual.”

Um almoço prolongado e team building não planeado

Apesar de as operações da Paynest estarem a funcionar a todo o gás, os escritórios da startup estariam às escuras não tivesse o apagão acontecido durante o dia. Aliás, o corte na energia aconteceu mesmo antes da hora de almoço, o que acabou por servir de premissa para um almoço em equipa.

“Nos escritórios, de repente, ficámos sem luz. Ainda tínhamos internet com o nosso WhatsApp a funcionar, mas depois fomos todos almoçar. Fomos almoçar e esperar que a situação passasse, mas depois não passou. Acabámos por aproveitar para um almoço em equipa e falámos de assuntos que às vezes, no dia-a-dia, não conseguimos discutir porque estamos todos debaixo de água com os vários temas. À tarde, quase ninguém da equipa trabalhou”, acrescenta Nuno Pereira.

Clientes da Emitu com perdas de produção

Tal como a Paynest, também os clientes da Emitu tiveram as vidas complicadas pelo “blackout”. O CEO da empresa detalha que “os sistemas que implementamos dependem de energia para funcionar. Alguns estavam instalados em clientes que têm alimentação de emergência, ou seja, geradores, e nesses casos a operação foi normal. Mas diria que a maior parte dos clientes, principalmente na parte industrial, não têm qualquer tipo de alimentação de emergência e, nesse sentido, as empresas tiveram de parar.”

Para os clientes industriais, as perdas foram ainda mais pesadas: “O impacto foi na produção. Não havendo alimentação elétrica, há a perda do que não se conseguiu produzir naquele dia. Aí há claramente um grave prejuízo económico, especialmente em unidades com centenas de pessoas que ficaram paradas, sem energia elétrica para operar normalmente. A perda de produção de um dia representa prejuízos muito avultados.”

"Qualquer abanãozinho traz consequências complicadas"

Jorge Pisco não tem dúvidas de que o apagão na Península Ibérica pôs a céu aberto as vulnerabilidades no tecido empresarial português. O presidente da CPPME reforça que “é preciso ter em conta que o nosso tecido económico assenta essencialmente em microempresas. Qualquer abanãozinho, agora não é o apagão, é qualquer abanão, qualquer fragilidade que exista nesta linha traz consequências complicadas.”

“No caso concreto das microempresas, elas vivem do fundo de tesouraria diário, daquilo que são as receitas diárias. E num caso como este, num dia com custos de contexto tão elevados e nenhuma receita, há sempre problemas”, remata o dirigente.

"Há muito trabalho a fazer para que a infraestrutura seja resiliente"

O CEO da Emitu conclui que as empresas não estão a investir o suficiente em resiliência energética: “Eu acho que não. Ainda estamos habituados a ter sempre a disponibilidade da energia elétrica. Está sempre disponível, não se pensa nisso.”

Assim, para Nuno Gonçalves há duas áreas onde a intervenção é necessária: “As empresas precisam de investir na infraestrutura dos seus edifícios, em cuidar dos sistemas de energia dentro dos edifícios, que não compete ao operador da distribuição. Eu acho que há muito trabalho a fazer para que essa infraestrutura seja resiliente.”