Uma investigação publicada no jornal Observador deu conta de que o atual cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, “teve conhecimento de uma denúncia de abusos sexuais de menores relativa a um sacerdote do Patriarcado e chegou mesmo a encontrar-se pessoalmente com a vítima, mas optou por não comunicar o caso às autoridades civis e por manter o padre no ativo com funções de capelania”.
“Além disso, o sacerdote continuou a gerir uma associação privada onde acolhe famílias, jovens e crianças, com o conhecimento de D. Manuel Clemente. Tudo, porque, justifica o próprio Patriarcado ao Observador, a vítima, que alega ter sofrido os abusos na década de 1990, não quis que o seu caso fosse público e queria apenas que os abusos não se repetissem”, noticia o jornal.
De acordo com a investigação do Observador, a atuação do patriarca “contraria (…) as atuais normas internas da Igreja Católica para este tipo de situações, que determinam a comunicação às autoridades civis de todos os casos”, adiantando que “os dados sobre este caso em concreto contam-se entre as mais de 300 denúncias já recebidas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa — e o nome deste sacerdote é também um dos sete que já se encontram nas mãos da Polícia Judiciária para serem investigados”.
A situação foi levada ao conhecimento do Patriarcado, pela primeira vez, ainda com o anterior patriarca, José Policarpo, pela mãe da vítima, mas segundo o Observador, “esta primeira reunião foi infrutífera”, com a família a sair do encontro “com a ideia de que a hierarquia da Igreja Católica não acreditava na denúncia”.
“Seguiram-se vários contactos entre a família e a hierarquia do Patriarcado de Lisboa, que incluíram conselhos para que a mãe da criança tivesse acompanhamento clínico”, adianta o jornal.
Segundo a nota enviada pelo Patriarcado à agência Lusa, “o sacerdote está atualmente hospitalizado” e à Comissão Diocesana de Proteção de Menores não chegou “qualquer denúncia ou comunicação sobre o caso”.
Na mesma, o Patriarcado confirmou hoje ter recebido, “no final da década de 1990”, queixa contra um padre por alegados abusos sexuais, assegurando que “duas décadas depois” o atual patriarca encontrou-se com a vítima, “que não quis divulgar o caso”.
O Patriarcado informa que, “na altura, foram tomadas decisões tendo em conta as recomendações civis e canónicas vigentes” e que, “até este momento, (…) desconhece qualquer outra queixa ou observação de desapreço sobre o sacerdote”, que chegou a ser responsável por duas paróquias da zona norte do distrito de Lisboa.
A nota adianta que o Patriarcado de Lisboa “está totalmente disponível para colaborar com as autoridades competentes, tendo sempre como prioridade o apuramento da verdade e o acompanhamento das vítimas”.
A reação de Marcelo Rebelo de Sousa
“Aquilo que eu posso dizer – e nem é como Presidente da República, é como pessoa – é que o juízo que formulo sobre as pessoas e não os elementos da hierarquia católica, as pessoas D. José Policarpo e D. Manuel Clemente, é o de que não vejo em nenhum deles nenhuma razão para considerar que pudessem ter querido ocultar da justiça a prática de um crime. É a opinião que eu tenho, pessoal”, respondeu Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas quando questionado sobre este caso na conferência de imprensa conjunta no âmbito da primeira visita de Estado a Portugal do Presidente de Cabo Verde.
Marcelo Rebelo de Sousa referiu que foi suscitada a questão quanto a um caso que “teria envolvido duas figuras da igreja portuguesa, dois cardeais patriarcas em momentos distintos”.
“O cardeal patriarca D. José Policarpo há 20 anos que teria considerado não existir situação que justificasse uma participação ao Ministério Público e portanto às autoridades judiciais e teria tomado uma iniciativa em termos hierárquicos internos quanto ao alegado envolvido nesse caso e depois, 20 anos volvidos, o atual cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, que teria ponderado o facto dos crimes estarem prescritos e a alegadamente a vontade da vítima de não querer publicitar ou não querer desencadear procedimento sobre essa matéria”, elencou.
Para lá da sua opinião pessoal, o Presidente da República afirmou que “há a comissão [independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja] e há órgãos competentes para apreciar ou reapreciar estas matérias”.
“E, se for caso disso, compete à comissão e a esses órgãos competentes, ponderarem as várias situações para não estar a entrar em juízos específicos que nem como pessoa nem como Presidente da República portuguesa devo fazer. Cabe-lhes a eles exercer os poderes”, remeteu.
Marcelo Rebelo de Sousa tinha começado por enfatizar o “consenso quase unânime” quanto “à condenação da violação não apenas da ética, da moral, mas do direito, porque se trata de atividades criminosas, como aquelas que justificaram a constituição” da referida comissão.
“O Presidente da República tem acompanhado o trabalho e apoiado o trabalho da comissão”, disse.
O trabalho da Comissão Independente
O Ministério Público abriu 10 inquéritos a partir das 17 denúncias anónimas reportadas pela Comissão Independente (CI) para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica em Portugal, divulgou hoje a Procuradoria-Geral da República (PGR).
"Foram instaurados 10 inquéritos, sendo que um deles concentra seis das participações e outros dois (inquéritos), duas (participações) cada um", respondeu a PGR à agência Lusa, referindo que estão a ser tratados pelo Gabinete da Família, da Criança e do Jovem, da PGR. Entre os dois inquéritos que concentram duas denúncias cada, um deles foi arquivado e outro continua em investigação.
Dos inquéritos instaurados, sete encontram-se em investigação e três (na sequência de quatro situações denunciadas) foram arquivados: um por prescrição, outro porque se apurou que os factos já tinham sido julgados e alvo de condenação num outro processo e um terceiro por falta de provas.
Na véspera, a CI divulgou, em comunicado, que o MP arquivou quatro das 17 queixas reportadas.
“Sobre depoimentos recebidos pela CI e que configurem possíveis situações não prescritas pela lei portuguesa, as mesmas serão sempre enviadas diretamente para o MP e Polícia Judiciária, quando exista já nesta instância queixa anteriormente reportada”, explicou a comissão.
A CI sublinhou ainda que se mantém atenta aos testemunhos recebidos, referindo que o último balanço foi feito a 10 de julho, indicando terem sido validados 352 inquéritos e encaminhado 17 casos para o MP.
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