"Os 230" pode definir-se em poucas palavras: é um projeto de literacia política, apartidário, sem fins lucrativos e que mostra a pessoa por detrás do político. Quem teve a ideia de o iniciar foi Francisco Cordeiro de Araújo, um jovem de 23 anos que depressa juntou uma equipa de cerca de 20 jovens voluntários, de todo o país.
Até à data, a equipa do projeto já partilhou dez entrevistas das 230 do objetivo final. Francisco explica ao SAPO24 que já têm mais algumas entrevistas gravadas na algibeira. Já entrevistaram 25 deputados e o foco não são apenas aspetos da vida política de quem nos representa, mas também da vida pessoal dos deputados e deputadas.
"Essencialmente, queremos mostrar que são pessoas e que têm um percurso, que não caíram no Parlamento do nada. Os deputados têm a sua vida, a sua maneira de pensar, foram-se envolvendo e agora pensam desta maneira e têm determinada visão sobre este ou outro tema", conta o mentor do projeto.
Francisco explica ainda que os deputados não têm acesso às perguntas que lhes vão ser feitas e que isso faz com que tenham um raciocínio "muito genuíno" nas entrevistas. "Isso permite desmistificar a própria figura de deputado e quebrar alguns preconceitos", diz, acrescentando que sente que as pessoas se identificam mais com o convidado da entrevista porque "sentem que não estão só a ver um discurso político, que pode ter sido trabalhado e baseado em algo escrito, mas que é sim a opinião de uma pessoa - porque é que desenvolveu certa maneira de pensar, porque é que tem certos interesses (a nível literário, ao nível do cinema, gosto de viajar...)". São gostos que os cidadãos também têm, acrescenta Francisco, e isso leva a perceber que se tem à frente "uma pessoa que está a desempenhar uma função e não um político de natureza. Só agora tem esse cargo".
Numa escadaria, num gabinete, num jardim, num salão. Todas as entrevistas foram conduzidas algures na Assembleia, ainda que com movimentos restringidos como medida contra a Covid-19 - mas a ideia é alargar horizontes.
"A nossa ideia, quando for possível, é sair da Assembleia e ir às escolas, universidades, coletividades. E especialmente sair de Lisboa e ir pelo país fora", conta este aluno finalista de mestrado em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Algumas hipóteses são entrevistar os deputados na terra natal deles, ter público durante as entrevistas e, claro, ir às regiões autónomas.
Desta forma, o projeto pode ir ao encontro dos jovens (um dos públicos-alvo do projeto de literacia política) - mas não só: "Uma coisa que gostávamos de fazer no futuro era ir às coletividades de reformados, pensionistas, e de recriação cultural, para incluir os mais idosos porque queremos que seja um projeto transversal, em termos de idade, e abrangente, em termos de território". Francisco salienta que quando preparam os conteúdos do projeto, que estão disponíveis nas redes sociais e em breve num site, pensam não só nos portugueses que vivem em Portugal, como também nos que vivem no estrangeiro "porque essas pessoas também votam e muitas vezes são esquecidas", explica.
A pandemia de Covid-19 afetou, de facto, o projeto porque levou à sua criação. "A pandemia despertou em mim a vontade que já tinha de fazer isto", diz Francisco Cordeiro de Araújo. "Já sentia que enquanto sociedade vivíamos muito polarizados, caminhávamos muito para um extremar de posições e por vezes ignorávamos a informação. Com a pandemia, numa altura em que as decisões da Assembleia da República, do governo e do Presidente da República parecem ter um impacto ainda maior nas nossas vidas, é preciso haver uma maior proximidade". Este ano foi o clique. "Fez-me pensar que era a altura para avançar porque no futuro podemos enfrentar maiores perigos no futuro se não criarmos um projeto destes em Portugal".
João Cotrim de Figueiredo na estreia
Começou a ouvir-se falar d'Os 230 em setembro. A primeira entrevista "foi para o ar", na internet, no dia 4 de outubro e contou com o deputado da Iniciativa Liberal João Cotrim de Figueiredo, mas a ideia é mais antiga: "O projeto nasce de duas coisas, essencialmente", começa a enumerar Francisco. "Primeiro, vi isto como um dever de serviço cívico, que tem que ver com a maneira como os meus pais me ensinaram a ver a vida e como aprendi no Colégio Militar, onde o lema era 'Servir', dar o nosso contributo à comunidade".
A segunda razão, conta, vem do seu inconformismo. "Sentia há muito tempo uma preocupação enorme em haver um projeto independente, que pudesse promover a literacia democrática, aproximar os cidadãos ao mundo político e das pessoas que nos representam", confessa Francisco ao SAPO24. A partir de agosto, pôs as mãos à obra. "Sentei-me, comecei a desenhar o projeto e os passos a dar, contactei deputados para ver se isto tinha pernas para andar". As respostas foram muito rápidas e Francisco começou a construir uma equipa feita de pessoas que não conhecia, pessoas de diversas áreas "para que não fosse um projeto de um grupo fechado de amigos, mas sim algo abrangente, que envolvesse pessoas com diferentes formações e origens". Tudo para o "Os 230" pudesse ganhar uma grande dimensão. "Alcançar uma grande parte dos portugueses ainda vai levar tempo", reconhece.
Francisco admite que é um "novato", que se tem habituado a estar à frente das câmaras e confidencia que até alguns deputados aparentam ter a mesma dificuldade. Isto faz sentido quando pensamos que alguns deputados — dos 230 — têm mais visibilidade que outros no mundo mediático . O que também motivou o projeto. A ideia é que os vejamos mais vezes por semana. Está prevista a publicação de duas a três entrevistas por semana, tentando variar os partidos a que os deputados pertencem.
O agora entrevistador tenta fazer uma entrevista profunda para que "cada palavra que diga seja bem pensada". É uma tarefa exigente e que pede uma certa sobriedade. Apesar disso, uma coisa que surpreendeu Francisco foi o facto de todos os entrevistados terem sorrido ou mesmo soltado um riso. “Às vezes temos a ideia de que são pessoas sérias a todo o tempo, mas vemos que são pessoas normais, que se riem, que sabem estar descontraídas numa conversa com um jovem", conta.
Outro detalhe que tem marcado Francisco é facto de o projeto ajudar os próprios deputados a conhecerem-se. "Como são 230, confessam que não se conhecem uns aos outros e às vezes comentam aquilo que disseram nas entrevistas".
Com as eleições presidenciais à porta e várias decisões quotidianas a serem tomadas com o objetivo de mitigar a pandemia, o projeto "Os 230" tornou-se mais urgente: "O facto de as pessoas passarem mais tempo em casa, com uma necessidade de se manterem informadas, contribuiu para a pertinência do projeto. Nas entrevistas, quando falamos desses temas, bem como da restrição dos direitos, liberdades e garantias, sentimos que as pessoas ouvem com mais atenção", diz Francisco.
Tentam então pensar a médio e longo prazo - até porque 230 entrevistas assim o exigem e a equipa decidiu não se ficar apenas por essa empreitada. Nas redes sociais, vão nascer o "Democracia 101" (pequenos vídeos informativos sobre temas base da democracia, como as funções do Presidente da República); o Sociedade 2-30 (em que personalidades da sociedade civil falam da importância da cidadania ativa, por exemplo); um Especial sobre as instituições europeias (com o objetivo de falar com os 21 deputados europeus) e um Especial Presidenciais (em que entrevistam os candidatos à presidência).
E de que urgência nasce esta vontade de falar com os candidatos ao cargo de Presidente da República portuguesa? Segundo dados da Pordata, a taxa de abstenção nas eleições para a presidência da República, que contabiliza residentes em Portugal e residentes no estrangeiro, foi de 51,3% em 2016 (últimas presidenciais no país).
Para Francisco, além de reduzir o número de pessoas que não votam, é também importante "compreender que as que votaram estavam mais certas das escolhas que fizeram", conclui.
A gravação das entrevistas aos candidatos presidenciais vão começar já para a semana, já que se vai a votos no dia 24 de janeiro de 2021. "Não vou descansar enquanto não sentir que é um projeto de que as pessoas podem gostar ou não, mas que pelo menos sabem que lhes foi dada essa opção e mais uma ferramenta para decidirem o seu voto e para as alertar que têm de ser ativas na sociedade".
Queria ser o Zorro, estuda Direito e esgrime com os deputados
Quando era pequeno, Francisco Cordeiro de Araújo queria ser o Zorro, "com a máscara e a espada". Agora ri-se disso e admite que era ingénuo. Mesmo se o caminho que está a traçar mantenha qualquer coisa do vigilante mascarado, que defende quem precisa, a começar por uma licenciatura em Direito, e por ser atleta de esgrima.
Diz que sempre sentiu que o Direito era uma arma para nos defendermos na sociedade, "não só a nós próprios, mas também quem precisa e para corrigir injustiças". O Direito surge-lhe assim como "um mecanismo para compreendermos um sistema e se necessário tentarmos mudá-lo". A vertente Internacional do Direito vem dos contactos que teve no estrangeiro e da sua convicção de que a cooperação entre Estados é um ponto-chave.
Francisco estudou na República Checa e Alemanha, foi presidente da ELSA Portugal (The European Law Students' Association), uma organização internacional de estudantes, e confessa ser apaixonado por animais (tem oito cães).
Um momento que o marcou foi também uma das primeiras memórias que tem: tinha seis anos quando a Cimeira das Lajes se deu à sua porta. Nessa altura vivia na Base das Lajes, na ilha Terceira, nos Açores. Ao lado da sua casa, no meio do Atlântico, George W. Bush (então Presidente dos EUA), Tony Blair (então primeiro-ministro do Reino Unido), José Maria Aznar (então primeiro-ministro espanhol) foram recebidos pelo primeiro-ministro português de então, Durão Barroso, e daí saiu a decisão de dar início a um intervenção militar no Iraque. "Como era jovem não percebi o que estava a acontecer. Tinha eu o tamanho da roda do Air Force One [o avião do chefe de estado dos Estados Unidos], mas marcou-me porque naquele momento líderes mundiais tomaram uma decisão com um grande impacto no mundo". Ficou a conhecer o resultado que as escolhas políticas podem ter.
Nos marcos da sua vida, está uma aula que deu ao lado do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, num curso de verão que organizou sobre organizações internacionais, curso esse que recebeu a bênção de Marcelo, depois de lhe escrever uma carta em 2019 sobre o assunto.
À pergunta "o que falta aos jovens para se interessarem pela política e, se quiserem, envolverem-se na vida política", Francisco responde que sente que há muitos jovens interessados em saber mais, pois "sentem que a política decide o futuro deles porque querem ser cidadãos informados e ativos".
"Com as redes sociais, recebemos muita informação e o que acho que falta é um filtro. O grande desafio para haver um interesse consciente é termos armas e informação fidedigna e isenta, que nos proteja da quantidade de informação com que somos bombardeados nas redes sociais", ou seja há que ser "cético em relação à informação e filtrá-la bem", explica Francisco.
"Os jovens têm de perceber que não são o futuro, mas também o presente", afirma. "É um problema transversal. Temos de começar a perceber que a política não é um hobbie de alguns, mas é a realidade de todos", reitera.
Por agora fica a pergunta: Conhece esta deputada? Será a próxima entrevistada do projeto "Os 230", que pode acompanhar no Facebook, Instagram, e nas redes sociais da Comunidade Cultura e Arte, de quem são parceiros.
Comentários