É dificil saber exatamente quantas crianças são abandonadas, espancadas ou mortas devido às crenças no feiticismo, profundamente enraizadas em Angola, sobretudo em algumas regiões mais tradicionalistas como a província do Zaire, na zona de fronteira com a República Democrática do Congo, outro país africano onde estas práticas subsistem.
“Acreditam muito na feitiçaria e tudo aquilo que não conseguem explicar atribuem ao feiticismo. As crianças que nós temos, que foram acusadas, passaram mal no seio das suas famílias, apanharam, foram alvo de violências verbais, físicas. E houve até um caso em que tentaram tirar a vida da menina metendo fogo num pneu”, relata Filipe Songo, educador social do centro, localizado em Mbanza Congo.
Ali se juntam crianças acusadas de feitiçaria, casos de abandono e fuga à paternidade, vítimas de violência familiar e há até quem tenha escapado a redes de tráfico de seres humanos, facilitadas pela proximidade da fronteira.
Para ser acusado de feiticeiro não é preciso provas, basta um acontecimento fatídico fortuito. A morte de um familiar — até a própria mãe, durante o parto — pode ser suficiente para acusar a criança, levando-a a ser ostracizada e afastada da família e da comunidade.
“Aqui acreditam muito que, se alguém morre, há uma explicação. Alguém matou esta pessoa. Então tentam sempre encontrar alguém que fez com que o outro perdesse a vida. Temos até casos de crianças pequenas em que a mãe perdeu a vida no parto e atribuem a culpa ao menino porque ele é que comeu a mãe. Dizem comeu. Nunca dizem matou”, explica o responsável interino do centro.
Mas há também quem seja acusado por perturbar os sonhos, por se transformar em animal ou voar em vassouras, por características físicas especiais, por doenças mentais, por ser inteligente, por ter capacidades extraordinárias ou comportamentos diferentes.
Muitos familiares são induzidos a reforçar estas crenças por pastores de igrejas ou ‘kimbandeiros’ (alguém que faz feitiços) da aldeia que os convencem da malignidade das crianças que chegam elas próprias a acreditar que são bruxas.
“São Igrejas que às vezes esquecem daquilo que é o foco delas, que é a paz social (…). Muitas Igrejas ao invés de pregar Jesus Cristo pregam mesmo feiticismo e os fiéis creem naquilo que o pastor diz e atacam as crianças que não conseguem se defender”, nota Filipe Songo.
As curas podem passar por rituais de purificação que envolvem castigos corporais e podem chegar à morte.
“Eu não sabia que era feiticeiro até ele me queimar cabeça”, conta Mbapé (nome fictício), olhos cabisbaixos e corpo franzino que não condiz com os seus 13 anos, no centro desde 2022.
“Ele” é alguém que tomou conta de Mbapé quando este foi abandonado pela mãe, pouco depois de ter chegado a Luanda.
“Depois de três dias começaram a me acusar de feiticeiro. O [meu] padrasto começou a dizer que o filho dele já não andava mais a dormir bem e que todo o dia ficava doente”, contou à Lusa.
O rapaz diz que a mãe começou por defendê-lo, mas a pressão da vizinhança foi maior e acabou por se decidir a abandoná-lo no Luvo, localidade próxima da fronteira com a RDCongo.
É aí que Mbapé conhece um jovem que o iria “passar para o outro lado” e com quem vive até 2021, até enfrentar novas acusações.
“Os vizinhos dele começaram a me acusar porque tinham ouvido que a minha mãe me abandonou. Depois disso ele já não me gostava mais”, lamenta.
Um dia, Mbapé é acordado repentinamente com papéis a arder na cabeça “para falar a verdade se era feiticeiro ou não”. Novamente abandonado, acaba na rua “a viver com uns meninos” até ser encontrado pelas autoridades que o encaminham para o centro onde atualmente se encontra.
A história de Jane é quase igual. Tem 17 e um rosto formoso e juvenil, a despontar para a maioridade.
Chegou há um ano, depois de “algumas complicações familiares”.
Morava com a “mãe grande” (tia) em Luanda e foi enviada para o tio, em Mbanza Congo, que a recebeu já “mentalizado” das acusações de feitiçaria “que espalhou pelo bairro”.
Sob a pressão social Jane acaba expulsa pelo tio: “ele disse que não queria mais me ver, para me esquecer que não sou mais da família dele, que não me conhecia. Fiquei triste, chorei muito, não sabia onde ir”.
Jane, com 200 kwanzas (20 cêntimos) no bolso, procura um motoqueiro e vai sozinha à procura de uma “tia”, que não chega a encontrar. Com o cair da noite, acaba por ser o próprio motoqueiro que a entrega no comando da polícia, onde ficará um mês, sem denunciar o tio.
Na origem das acusações estavam “coisas más que aconteceram” quando esteve em Luanda e que não gosta de lembrar, preferindo sonhar com um futuro melhor quando terminar os estudos.
”Gostava de fazer muitas coisas, gostava de ajudar crianças que precisam de ajuda, ou construir um lar ou uma escola ou uma farmácia, ou adotar alguém para eu criar”, adianta à Lusa, esboçando já um sorriso.
O Centro de Acolhimento Frei Giorgio Zulianello promove a reinserção nas famílias e trabalha na sensibilização das comunidades, com apoio dos seus parceiros da World Vision.
“Fazemos questão de partilhar a mensagem de que as pessoas são diferentes, que as crianças têm curiosidades e apresentam características diferenciadas umas das outras. Que nem tudo se explica com o feiticismo”, explica Filipe Songo, salientando que se tenta mostrar aos progenitores que os comportamentos associados ao feiticismo podem ser algo especial ou “um caso de talento”.
Mas nem todos os casos são de sucesso e é preciso garantir que a criança não fica em risco de vida ou não sofrerá novos maus tratos ou abandono, caso regresse à família.
“Talvez o que chamamos de feitiço é talento para fazer coisas especiais, coisas que se calhar muita gente não é capaz de fazer. Então, se a criança tem a habilidade de fazer alguma coisa, esse talento é uma coisa que Deus lhe deu”, comenta o educador.
Fundado em 2007, por membros da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, entre os quais Giorgio Luzianelo, que deu o nome à instituição, o centro é gerido em conjunto com o governo provincial do Zaire e funciona atualmente em instalações precárias, claramente insuficientes para acolher as 100 crianças entre os 3 e os 17 anos que ali encontraram uma nova família que lhes dá o carinho e cuidados que não encontraram na de sangue.
Um dia no tribunal de Mbzanza Congo faz-se de mandioca, um leitão e uma falsa acusação de feitiçaria
Em Angola, as autoridades tradicionais continuam a ter peso e funcionam paralelamente ao Estado, incluindo em matéria de justiça, com julgamentos em tribunais consuetudinários, decididos segundo os usos e costumes, como é prática em Mbanza Congo.
Formalmente é um tribunal como os outros: tem réus, testemunhas e juízes, escrivães, há queixas e sentenças que são lavradas em ata e de cumprimento obrigatório.
Mas os casos são substancialmente diferentes dos que ocorrem em Portugal.
Entre os casos mais frequentes estão as acusações de feitiçaria muitas vezes motivadas por conflitos entre clãs causados por assuntos corriqueiros como um namoro reprovado pela família.
No julgamento a que a Lusa assistiu, a paixão contrariada entre um “Romeu” e uma “Julieta” de Mbanza Congo estiveram no centro de uma acusação de feitiçaria.
A mãe de “Julieta”, desgostosa com a escolha amorosa da filha, tentou inicialmente dissuadi-la, sem sucesso, e acabou a ameaçar “Romeu” que “ia ver como era”.
Tal como a tragédia shakesperiana, passada no século XVI em Itália, também esta ocorrida em Angola nos dias de hoje teve um final trágico.
Este ano, “Romeu” adoeceu e morreu e a família acusou a mãe de Julieta de o ter “comido” (matado).
A mãe, Graça Adelini, — que conseguiu provar a sua inocência após os adivinhadores a que recorreu declararem que o seu coração “estava limpo” — voltou a tribunal para receber uma indemnização, mas lamenta, chorando, o sofrimento causado pela falsa acusação, que a fez perder as amizades no bairro e ver os próprios filhos insultados como “filhos da bruxa”.
A sentença é dada por Afonso Mendes, figura máxima da autoridade tradicional e representante do rei do Congo, e os 24 elementos da corte real que formam o lumbu, tribunal consuetudinário que julga questões comunitárias.
A sessão que decorre em kikongo (língua falada pelos bakongo do norte de Angola) inicia-se por volta das 09:30 e alguns populares tomam a palavra para apresentar os seus assuntos.
Um homem queixa-se de estar a ser acusado de feitiçaria e apresenta uma carta que vai dar inicio ao seu processo.
Um outro questiona o tribunal sobre o andamento do seu caso, aberto há três anos, e que tem a ver com uma disputa de terrenos, esperando ainda por uma solução definitiva.
Um outro, vindo do Noqui, a 150 quilómetros de distância, pede a intervenção das autoridades porque tem medo de ser morte, depois de ter sido expulso e ameaçado de morte por vizinhos que querem ficar com o seu terreno e lhe destruíram a casa.
São problemas que envolvem clãs e que Afonso Mendes encaminha para as autoridade angolanas.
“Isso é crime, vai ter de apresentar queixa na polícia”, responde ao apreensivo queixoso do Noqui.
“Disseram-lhe: tu não és daqui, os teus antepassados eram escravos, tens de sair. Ele diz que estão a vir com as catanas para o matar”, traduz Angelina, uma das integrantes da corte.
Os clãs determinam normalmente a titularidade das terras e cada um deve respeitar os limites impostos para prevenir conflitos, explica Afonso Mendes.
Já nos casos de feitiçaria, são consultados especialistas “adivinhadores” que ajudam a deliberar sobre a inocência ou culpabilidade da pessoa acusada que, se for inocentada, poderá receber uma indemnização, enquanto os acusadores “vão receber aconselhamento para se deixarem dessas práticas”.
O julgamento decorre com os conselhos a dirigirem palavras sábias e recomendações sob a forma de parábolas, cânticos e danças que servem também de ensinamentos.
Existem igualmente regras a seguir: a mulher não deve entrar de calças, o homem não entra de calções, é proibido cruzar as pernas, não se fala alto e antes pede-se permissão. O incumprimento é passível de multa e os mais velhos vão sublinhando a importância do respeito.
No lumbu cada um tem o seu papel. Há juízes, conselheiros, inspetores, pessoas ligadas ao protocolo, um secretário, um porta-voz, animadores, e um escrivão, na mesa do qual se encontram dois dossiês cheios, atestando que não há mãos a medir com os processos, que vão a tribunal às quartas-feiras e sextas-feiras.
É chegada a altura da sentença e Graça Adelini, a acusada de feitiçaria, terá de dizer se aceita a indemnização que lhe colocam à frente: um porquinho, um alguidar de mandioca, duas grades de cerveja e 5.000 kwanzas (cerca de cinco euros).
Após sair para conversar com os familiares, Graça rejeita a indemnização, por considerar que o leitão demasiado pequeno não compensa a humilhação e vergonha que sente no bairro.
Segue-se um processo negocial em que ambas as partes saem para conferenciar sobre as indemnização que Graça continua sem aceitar, enquanto os familiares da acusada protestam de forma mais acalorada e ameaçam que vão “dar porrada” a quem continuar a chamá-la de bruxa.
Os juízes acabam por determinar que a indemnização deve ser aumentada e entregue na próxima semana, concluindo-se a sessão sem agradar em pleno a nenhuma das partes.
Graça Deliani diz à Lusa que não está contente porque as coisas que lhe trouxeram “não estão completas” e emociona-se ao falar da briga que a levou a sair do bairro.
“O moço veio a falecer e acusaram-me a mim, que eu ‘comi’ o moço (…), qualquer sítio onde eu estou, estão sempre a apontar o dedo, que esta aqui é bruxa, é feiticeira, estão a isolar-me, não posso falar com ninguém”, chora.
A mãe do jovem, Fineza dos Santos, recorda que Graça disse ao filho “vou-te mostrar” antes deste adoecer, mas, como reza, “não gosta dessas coisas do feiticismo” e diz que está ultrapassado.
Agora quer resolver a situação, mas lamenta: “vou gastar mais quanto?”.
Rituais, uma árvore sagrada e a igreja mais antiga a sul do Equador no Mbanza Congo
Mbanza Congo, cidade onde se cruzam vestígios da colonização portuguesa e do antigo reino do Congo, onde existe o único património angolano inscrito na lista da UNESCO, mantém vivos rituais e tradições através das autoridades tradicionais.
Afonso Mendes, 82 anos, representante dos reis do Congo, é o atual guardião máximo desta tradições, liderando os “mais-velhos idóneos” que tratam dos assuntos da cultura e das comunidades nesta região da província do Zaire, no norte de Angola.
Mbanza Congo, cidade que já teve cinco nomes e que foi São Salvador do Congo no tempo colonial, é também a capital onde se instalaram os antigos reis do Congo, que ali fixaram residência no século passado num palácio atualmente transformado em museu.
“Tem grande importância a nível de África, foi onde nasceu a primeira civilização, na cidade fundada por Nimi Alukeni, antes da chegada de Diogo Cão em 1482 à foz do Rio Zaire”, salientou o “mais-velho” numa visita guiada pelo centro histórico da cidade.
No exterior do Museu Regional do Reino do Kongo, encontra-se um dos pontos mais emblemáticos: a “milenar” árvore Yala Nkuu, que, segundo Afonso Mendes, não se encontra em nenhum outro sítio: “se levar a semente, não vai germinar”, garante.
A árvore servia de local de reunião para o rei que ali juntava os seus conselheiros e desejava boas-vindas aos visitantes, fazia julgamentos e promulgava leis, mas está também ligada a aspetos espirituais, adivinhando-se tragédias quando um galho verde cai.
“É uma árvore mística, tem poderes. Os portugueses quando chegaram encontraram já esta árvore, não se pode cortar, nem ferir, nem tirar folha verde”, disse, alertando para os maus prenúncios dos galhos verdes caídos, sobretudo tratando-se de altas individualidades, situação que exige “de imediato um ritual tradicional”, sob pena de acontecer uma desgraça.
Recomendações que são até hoje cumpridas à risca pelas entidades angolanas que não hesitam em chamar as autoridades tradicionais para fazerem o ritual – que incluía sacrifícios nos tempos antigos – caso se verifiquem incidentes.
Afonso Mendes conta que quando começou a guerra, os portugueses quiseram abrir uma estrada e cortaram um dos troncos desta árvore sagrada que verteu “muita seiva da cor do sangue”, causando comoção entre os populares.
Uns metros à frente, vê-se o que resta da catedral de São Salvador do Congo, conhecida como Kulumbimbi, construída entre maio e junho de 1491, “graças ao trabalho de mil congueses”.
Segundo as lendas locais, foi erguida numa noite e já era um local de culto antes da chegada dos missionários que ali batizaram o primeiro rei – Nzinga-a-Nkuwuk, que adotou o nome de D. João — e no mesmo dia deram início à construção do templo.
Com 33 metros de comprimento e 15 de largura, é talvez o monumento mais conhecido de Mbanza Congo, mas a envolvente desmerece a sua dignidade histórica.
As paredes quinhentistas de tom ocre, tal como a omnipresente poeira que cobre a cidade, “pintando” habitantes, árvores e edifícios com a mesma coloração amarelada, surgem desfiadas por um contrastante altar pintado de branco, ali pousado como um corpo estranho.
No exterior, surge também de forma extemporânea a campa recente de um bispo católico como uma excrescência saída das paredes.
No cemitério dos reis do Congo encontram-se os reis batizados e que morreram no poder, incluindo o último, D. António III Gama, falecido em 1957. Pedro IX, que lhe sucedeu foi o último manicongo (título de governante) a reinar de setembro a outubro de 1962, já em plena guerra colonial, seguindo-se a regência de Isabel Maria da Gama até a realeza titular do Congo ser abolida, após a independência de Angola, em 1975.
A entrada no cemitério exige um ritual em que se homenageiam os ancestrais com ofertas de maruvo (vinho de palma) e cola, o que foi cumprido pela equipa da Lusa que ali foi acompanhada por Afonso Mendes e sua corte de conselheiros.
Praticamente cego, o representantes dos reis segue apoiado no seu Nkau, bastão que simboliza o poder, até à campa que se encontra no meio do cemitério, onde a corte se dispõe em semicírculo e Afonso Mendes faz as suas evocações, dando de beber aos antepassados e pedindo a bênção para os visitantes.
Um curioso edifício cilíndrico desperta a atenção. Trata-se da campa de um desafortunado rei que não deixou descendência e foi castigado com esta forma de sepultamento pouco habitual.
Afonso Mendes, repositório de saberes e da cultura do Congo tem também responsabilidades na gestão de conflitos de terras, acusações de feitiçaria e outras questões de justiça que são julgadas no lumbu, um tribunal consuetudinário, onde têm assento 24 conselheiros, incluindo dez mulheres.
Luvo, a fervilhante fronteira entre Angola e a República Democrática do Congo
Já não tem a dinâmica de outros tempos, quando angolanos e congoleses se juntavam numa grande praça comercial a céu aberto, mas o Luvo continua a ser uma fronteira agitada com o atravessamento diário de centenas de pessoas, motas e camiões.
Entre Angola e a República Democrática do Congo (RDCongo), o posto fronteiriço localiza-se a 45 quilómetros da capital da província do Zaire, Mbanza Congo, mas é necessária quase uma hora para lá chegar devido ao mau estado da via com troços esburacados e de terra batida.
Por ali seguem, vergados sob o peso da mercadoria mal acondicionada, camiões cansados e em mau estado, alguns sem matrícula, que transportam bens e pessoas, tal como os kumpapatas (motociclo) de três rodas que seguem em direção à fronteira, na esperança de fazer algum negócio.
O vírus mpox impôs vigilância redobrada e um funcionário da saúde angolano pulveriza os veículos que cruzam a ponte sobre o rio Luvo, na esperança de travar o avanço do surto.
Soba Sebastião, secretário da Cruz Vermelha na comuna do Luvo, faz a higienização dos camiões com uma máquina portátil e uma mistura de detergentes “para travar a transmissão da doença”, mas não dispõe de estatísticas sobre o número de veículos que por ali atravessam.
Entram e saem muitos carros do Congo para Angola, diz, garantindo que a província do Zaire tem reforçado as medidas de prevenção para evitar a propagação da doença.
Mas, além do comércio visível, passam também ilegalmente na zona fronteiriça milhares de litros de combustível e outros bens que o governo provincial tem dificuldade em controlar e considerou “uma grande desgraça”.
Seguem por caminhos fiotes que lhes permitem driblar as autoridades angolanas, sem efetivos suficientes para vigiar a enorme fronteira de 310 quilómetros (terrestres e fluviais) que separam a província do Zaire da RDCongo, como explicou à Lusa um representante das autoridades que preferiu não ser identificado.
“Se houver rio usam cordas ou então abrem novas passagens”, disse, apontando os cães das brigadas cinotécnicas que ajudam a polícia a identificar na fronteira produtos transportados ilicitamente, conseguindo farejar droga, dinheiro e até medicamentos.
Do lado angolano, o mercado é agora um descampado poeirento onde será erguido o futuro posto aduaneiro, até que se escolha um local para construir a nova praça.
Encostadas à ponte que atravessa o rio Luvo, fronteira natural entre os dois países, meia dúzia de zungueiras (vendedoras de rua) aguardam passagem para irem vender as suas mercadorias no lado congolês, agastadas com a perda do seu sustento que as obriga agora a percorrer uma distância muito maior, com gastos adicionais associados à compra do passe de travessia.
Isabel Olinda, que carrega um alguidar com gasosas e pão doce, vendia na praça até “que a estragaram devido ao coronavírus” e vê-se obrigada agora a ir vender na RDCongo.
“No Congo”, confirmam as colegas queixando-se de ter de “pagar dinheiro” pelo “jeton” (passe) e esperar a autorização para fazer os seus negócios.
O descontentamento é partilhado por Gertridi, vendedora de kikuanga, especialidade de mandioca muito apreciada por angolanos e congoleses, que diz que a praça faz falta.
“Falta mesmo a nossa praça para vender aqui do nosso lado, na nossa praça estava a vender mesmo bem. Agora no Congo, bué de gastos mesmo para chegar na praça, é distante, estamos a sofrer mesmo”, salienta a vendedora contando que demora uma hora a pé para chegar ao local “com a carga na cabeça”.
“Não sabemos se vamos passar”, desabafa Isabel Olinda, explicando que o “negócio” (a mercadoria”) já seguiu para o mercado congolês transportado numa espécie de moto-táxi.
É também num veículo deste género que seguem Jean-Claude e os seus cinco filhos, de regresso a Kinshasa para o início do ano letivo, depois de virem passar as férias com familiares em Luanda.
Cada um pagou 30 dólares e seguem amontoados, por um caminho que lhes vai demorar seis ou sete horas, o que não parece incomodar o jovem e sorridente Nicolas, de 13 anos, que expressa a suas satisfação pelas férias no estrangeiro.
Por ali vão-se cruzando, como um formigueiro, camiões e as tais moto-táxis que saem de Angola carregados de produtos agrícolas e não só, e regressam vazios para adquirir mais mercadoria.
Há também quem venha a pé, como Teresa Domingos, que precisou de voltar a Angola para renovar o passe de travessia, válido por 72 horas, que a habilita a chegar até ao mercado congolês, onde vende cortinas.
Vinda de Luanda em busca de melhores condições de vida, diz que o mercado do outro lado “é precário” e prepara-se para esperar pacientemente junto do serviço de migrações onde o documento é emitido.
Junto da primeira cancela da fronteira — que funciona entre as 08:00 e as 17:30 — concentram-se armazéns grossistas e retalhistas que vendem todo o tipo de produtos, mas também igrejas, sendo a língua francesa e o lingala, a par do kikongo angolano, comummente usadas.
È também nessa zona que se encontra o edifício da administração, onde Manuel Milton recebe a Lusa e destaca a “mais valia” do comércio naquela região.
A comuna conta com 25 bairros onde vivem 13.700 habitantes de forma permanente, além da população flutuante, já que as famílias e os comerciantes se dividem pelos dois lados da fronteira, sendo a agricultura e o comércio as principais atividades económicas.
“O mercado está a fazer-nos falta”, admite o administrador, explicando que é necessário proceder a operações de desminagem no local previsto para a instalação da nova praça.
É o mercado que permite também dinamizar a atividade agrícola, já que a maior parte dos produtos sai de Angola em direção à RDCongo, sublinha o mesmo responsável, considerando que esta é uma oportunidade para a diversificação da economia angolana.
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