“Está na altura de definirmos lotação máxima para os serviços, para as instituições, para os equipamentos”, defendeu Adalberto Campos Fernandes em entrevista à agência Lusa.

“Não faz sentido nenhum que na Loja do Cidadão estejam 300 pessoas em 100 metros quadrados, não faz sentido nenhum que não haja agendamento prévio, que se avance mais no chamado Simplex”, sugeriu.

O ex-ministro da Saúde (entre 2015 e 2018) no primeiro governo chefiado por António Costa e especialista em saúde pública comentava o possível levantamento do estado de emergência a partir do dia 02 de maio e a retoma faseada da atividade económica.

No seu entender, é preciso o país reabrir a “pouco e pouco” a vida social e económica, mas com “um enorme sentido de responsabilidade”, cumprindo regras como a do distanciamento social.

Caso contrário, “a nossa vida fica muito complicada em termos de sustentabilidade do emprego e da economia”.

Para Adalberto Campos Fernandes há situações que não devem voltar a acontecer como salas de espera de centros de saúde e de hospitais cheias de doentes.

“Até contra mim falo, porque ao longo da minha vida dirigi vários hospitais, grandes, pequenos, médios, e procurei melhorar as condições dos locais por onde fui passando. Lembro-me do Santa Maria [em Lisboa] que era um caso extremo, mas nunca compreendi muito bem a necessidade de termos pessoas doentes ou tendencialmente doentes em espaços de saúde às dezenas e às centenas”, contou.

Esta situação é inaceitável e “tem de acabar” porque é “completamente contra o princípio de uma unidade de saúde que protege a qualidade”, defendeu.

Disse ainda acreditar que as mudanças ocorridas nas unidades de saúde devido ao novo coronavírus SARS-CoV-2, como o recurso às teleconsultas para evitar a presença dos doentes e a mudança de comportamentos e atitudes possam vir a melhorar os indicadores relacionados com a infeção hospitalar.

Para o ex-governante, os hospitais têm que ter horários diferidos ao longo do dia, apostar na telesaúde, na hospitalização domiciliária e na televigilância.

A telesaúde ganhou “um espaço enorme” através do contacto entre o profissional e o doente, mas também através das novas tecnologias que permitem monitorizar à distância os doentes.

Exemplificou, a este propósito, os milhares de doentes com covid-19 que estão a ser monitorizados em casa, através da plataforma Trace Covid, por médicos e enfermeiros, considerando que “é uma lição viva do potencial” que existe nesta área.

“Claro que o ato médico, por definição e por excelência é um ato pessoal, e não podemos fazer telecirurgia nem teletécnicas, mas podemos fazer com que as pessoas estejam nas unidades de saúde o menor tempo possível e que venham só apenas à hora marcada para fazer aquilo que precisam de fazer”, defendeu.

Adalberto Campos Fernandes salientou ainda a importância em tempos de pandemia da receita eletrónica, sem papel, e que hoje atinge 95% da população. “Imaginemos o que seria nesta altura se não tivéssemos feito esse processo de transformação digital”, salientou.

Mais meios e união em torno do SNS

O ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes pediu hoje uma maior união em torno do SNS nesta fase de pandemia, defendendo mais investimento e menos restrições orçamentais, porque as necessidades em saúde não vão parar de aumentar.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem que “ter não só reconhecimento, mas tem que ter mais meios, mais investimento e tem que estar preparado para novas situações [que surjam] no futuro”, afirmou o ex-ministro em entrevista à agência Lusa.

Questionado se o SNS ficará mais reforçado depois da pandemia, afirmou que, neste momento, tem havido “uma preocupação legítima e que faz sentido com a questão dos ventiladores”, mas considerou que as necessidades vão muito para além destes dispositivos.

“Temos uma população muito envelhecida, muito pobre, uma população doente e as necessidades em saúde não vão parar de aumentar”, alertou.

Por outro lado, o peso das doenças crónicas também “não vai parar de aumentar e, portanto, não vale a pena continuar a insistir nesta ideia de que a saúde é uma espécie de benefício extra ou de que a saúde deve ser exposta à restrição orçamental como acontece noutros setores”, disse o ex-governante que foi ministro da Saúde entre 2015 e 2018 no primeiro governo chefiado por António Costa.

“É preciso que a Europa perceba que não pode estrangular os Estados”, disse, lembrando o “dilema muito grande” vivido no pós-troika em que o país precisava de equilibrar as contas públicas, libertar-se de juros que “eram muito pesados para conseguir reanimar a economia”.

“Mas a saúde não pode, do meu ponto de vista, ser tratada como uma despesa que é tão evitável como são outro tipo de despesa, principalmente, em países como Portugal, Espanha e Itália, que estão a ser fortemente condicionados pela transição demográfica e pelo envelhecimento”, defendeu.

E, sublinhou, foi “pelas piores razões” que se chegou a esta conclusão: “estamos perante um quadro sanitário muito grave, mas eu só espero que de facto as lições fiquem na Europa, na Comissão Europeia, no Eurogrupo, no Banco Central Europeu, enfim, que em todo o lado se perceba que não há países sem pessoas e não há economia sem pessoas saudáveis”.

Relativamente a um possível levantamento do estado de emergência em Portugal em 02 de maio e o retomar aos poucos da atividade económica, o ex-governante disse que “é preciso voltar” por causa da sustentabilidade do emprego e da economia.

Mas advertiu que “é muito pouco prudente um discurso excessivamente otimista”: “nós não ganhámos nada, a única coisa que ganhamos foi tempo e protegemos transitoriamente o sistema de saúde de uma disfunção grave, mas não temos vacina, não temos medicamento, não temos imunidade de grupo”, salientou.

“Evitámos a rutura dos hospitais porque os portugueses disciplinadamente assumiram uma atitude responsável, de auto confinamento, de reserva e distanciamento e isso evitou a situação italiana que foi desde o primeiro minuto a nossa grande preocupação e espanhola com os hospitais em rutura”, frisou.

No entanto, é preciso que os portugueses compreendam que ainda não estão protegidos e que se não forem cautelosos quando voltarem ao trabalho, às universidades, às escolas pode haver “uma segunda vaga que pode ter consequências muito negativas".

No seu entender, "a máscara é dos poucos instrumentos que no ‘kit’ de proteção individual pode evitar que uma segunda vaga venha destruir o clima de confiança" gerado na primeira vaga, em que se conseguiu proteger o sistema de saúde.

Enalteceu ainda o facto de os portugueses sempre terem valorizado o SNS, considerando-o um “pilar estratégico”.

Um sistema de saúde “não é apenas ter hospitais, ter centros de saúde, ter equipamentos, é preciso ter um edifício de capital humano”, que demora décadas a construir.

“Temos equipamentos, temos edifícios, embora envelhecidos, carentes de modernização e investimento, mas o ativo principal do SNS em Portugal são os profissionais”.

“Este é um aspeto que eu creio que no futuro ninguém mais vai pôr em causa”, disse Adalberto Campos Fernandes, manifestando o seu “reconhecimento e orgulho de ter exercido funções governativas de um país que tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo”.

O antigo ministro quis também deixar o apelo “a todos os portugueses para que se unam ainda mais nesta fase, independentemente da orientação política, ideológica, do posicionamento que possam ter em torno da defesa do melhor serviço público que a democracia criou”.

Pandemia mostrou aos países que devem ter sistemas de saúde públicos

“As lições que se tiram deste período ultrapassam em muito a dimensão nacional, são lições globais porque em grande medida, na maior parte do países, fica claro o apelo que a Organização Mundial de Saúde [OMS] tem vindo a fazer há muitos anos de se implementarem sistemas de cobertura geral e de acesso universal”, afirmou em entrevista à agência Lusa Adalberto Campos Fernandes.

O médico e antigo ministro da Saúde afirmou que na Europa os países que têm respondido melhor à pandemia são os que “tinham uma reserva funcional positiva dos seus sistemas de saúde”.

“Quando eu falo de sistemas de saúde não falo apenas da componente de prestação de cuidados, porque nesta matéria é também muito importante a dimensão da saúde pública como componente do sistema que aborda as questões a montante no controlo da transmissão das doenças e da sua monitorização”, explicou.

Mas, salientou, “não há dúvida nenhuma de que, olhando para o mundo, para os Estados Unidos, Reino Unido, para França, Itália para Espanha, rapidamente todos os governos perceberam a importância de ter sistemas de saúde de raiz pública com uma forte componente pública que respondam por situações destas, que são situações inesperadas e de pandemia, mas também pelas respostas às necessidades de saúde dos cidadãos”.

Para o ex-governante, todos os Estados têm de considerar que “a saúde não é de facto uma despesa inútil, que é um fortíssimo investimento até na economia”.

“Nós temos a economia parada, temos um risco de uma recessão económica brutal temos perspetivas de desemprego, de quebra de rendimentos e tudo isto por razões sanitárias”, salientou.

Adalberto Campos Fernandes disse acreditar que vai haver uma mudança de paradigma que vai correr o mundo, desde a Europa e que mais tarde ou mais cedo chegará também aos Estados Unidos.

Os Estados Unidos são hoje “o exemplo concreto” do que é um país que não tem um sistema de saúde estruturado, bem organizado, capaz de responder às necessidades das pessoas.

“Vemos pessoas a morrerem por falta de assistência médica, por falta de cobertura financeira, o que é absolutamente inadmissível”, lamentou.

Especialista em saúde pública, referiu ainda que após esta pandemia vai haver muitas mudanças desde logo “a relação social, o funcionamento das instituições e a prestação de cuidados de saúde irão ser diferentes”.