Em declarações aos jornalistas, à porta do Tribunal de Sintra, após a leitura do acórdão, Jorge Gomes da Silva reconheceu ter ficado “surpreendido” com a sentença daquele que foi o primeiro caso de mutilação genital feminina a ser julgado em Portugal.

“Vamos pegar numa jovem de 20 anos e mandar para a cadeia. Vale a pena? Sai de lá o quê? Só para mostrar ao mundo, a Portugal, que agora há uma decisão que põe fim a essas práticas? Acho que é injusto”, reagiu.

O coletivo de juízes que julgou o caso condenou hoje Rugui Djaló, cidadã guineense com nacionalidade portuguesa e residente em Portugal, a uma pena de três anos de prisão efetiva pelo crime de mutilação genital da sua filha menor, com um ano de idade à altura dos factos, durante uma estadia de três meses na Guiné-Bissau, em 2019.

Na leitura do acórdão, o juiz presidente do coletivo comunicou que "não há dúvida que as práticas [em julgamento] integram o crime de mutilação genital feminina" e recordou que esta prática é "uma flagrante violação de direitos humanos".

O juiz realçou ainda a "elevada ilicitude, é uma mãe que atenta contra a própria filha", a "premeditação" de uma viagem organizada à Guiné e a falha nos "deveres de cuidado" para com a filha bebé.

O tribunal entendeu ainda que, dado que "não mostrou qualquer arrependimento", a arguida levanta a possibilidade de reincidência no futuro.

Admitindo que a decisão tenha tido o objetivo de “dissuadir” que a prática possa vir a acontecer no futuro, o advogado de defesa destacou os fatores atenuantes da arguida – a idade (tinha 19 anos na altura) e a inexistência de antecedentes criminais – e frisou que “não ficou provado que foi a própria que praticou os factos”.

Assim, Jorge Gomes da Silva admite recorrer da decisão, após analisar o acórdão e conversar com a sua constituinte. “Em princípio vamos recorrer, porque entendemos que pelo menos a pena suspensa (…) seria mais justa”, adiantou.

Originário da Guiné-Bissau, o advogado entende que o tribunal não estava preparado para julgar um caso como este, com um contexto e um enquadramento tão específicos.

A mutilação genital feminina – que consiste na retirada total ou parcial de partes genitais, com consequências físicas, psicológicas e sexuais graves, podendo até causar a morte – ainda é uma prática comum em três dezenas de países, sobretudo africanos, estimando-se que ponha em risco três milhões de meninas e jovens todos os anos e que cerca de 200 milhões de mulheres e meninas tenham já sido submetidas à prática.

A Guiné-Bissau – onde a mutilação genital feminina é punida por lei desde 2011 – é o único país de língua portuguesa que figura nas listas internacionais sobre a prática, estimando-se que metade das suas mulheres tenham sido excisadas.

Segundo dados oficiais, 39% das crianças guineenses com menos de 15 anos tinham sido excisadas em 2010 (antes da criminalização), percentagem que desceu para 30% em 2014.

Estima-se que em Portugal vivam 6.500 mulheres excisadas, na maioria originárias da Guiné-Bissau. Rugui Djaló é uma delas, pois foi submetida à prática na infância, ainda na Guiné-Bissau.

Este foi o primeiro julgamento por um crime de mutilação genital feminina em Portugal, onde a prática é considerada crime autónomo desde 2015.