Numa das ruas da povoação, no distrito de Évora, com casas quase todas idênticas e pintadas com barras de várias cores, Ermelinda Godinho, de 78 anos, partilha as saudades da “aldeia velha”, à qual ‘regressa’ sempre que sonha.

“Já há 20 anos” que foi a mudança e “ainda hoje, quando se sonha, é sempre na aldeia velha. Corre a gente aquelas ruas todas”, conta à agência Lusa a moradora.

Na companhia da fiel “Doninha”, a cadelita que lhe segue todos os passos, Ermelinda evoca as memórias da “difícil” mudança, em 2002, uns meses após as comportas da barragem do Alqueva terem sido fechadas, em 08 de fevereiro, para a albufeira encher.

“Havia mais amizade. Nos sonhos, continuo além”Ermelinda Godinho

“O que custou mais, olhe, foi tudo”, mas o “mais chocante” foi “a trasladação dos mortos, dos nossos entes queridos”, relata.

Na localidade nova, a poucos quilómetros da antiga, que foi desmantelada e ficou submersa, os habitantes têm hoje “casas melhores”. Só que as vivências da outra Luz não se esquecem: “Havia mais amizade. Nos sonhos, continuo além”.

Uma outra moradora, Lucília Neves, de 69 anos, ‘viaja’ para os mesmos sonhos de Ermelinda: “Quando sonho, é quase sempre na outra. Sonho com as pessoas de lá”.

Carregada com as compras do dia, que pousa no chão para conversar com a Lusa, Lucília evoca a tristeza sentida na mudança, em que “as pessoas mais velhas choravam”, mas, duas décadas depois, esta ‘casa’ já ganhou o seu coração.

"Logo e logo não, era uma coisa postiça, não era igual, mas já gosto, temos aqui metade da vida”Lucília Neves

“Agora já. Logo e logo não, era uma coisa postiça, não era igual, mas já gosto, temos aqui metade da vida”, diz, satisfeita por atual aldeia ter “coisas mais avançadas”, como uma escola melhor, um pavilhão ou um lar.

Un cão passeia pelo largo 25 de Abril da nova aldeia da Luz para onde os habitantes se mudaram em 2002 (a velha aldeia foi desmantelada e posteriormente ficou submersa), Mourão, 03 de fevereiro de 2022. NUNO VEIGA/LUSA

Sara Correia, presidente da Junta de Freguesia da Luz, desde 2013, conhece bem estas histórias, que ela própria viveu.

Passou os primeiros 18 anos de vida na antiga aldeia e lembra-se da “dor” dos pais e da própria frustração com a mudança, de achar que podia “mudar o mundo” e não conseguir.

"Estávamos aqui absolutamente obrigadosSara Correia

Não obstante essa resistência, a nova Luz já faz parte dos habitantes, que nela criaram memórias e se foram “afeiçoando”, afirma, frisando que, “devagarinho”, estão a “transformar esta aldeia numa aldeia de verdade”.

“O carinho que sentimos hoje por esta aldeia é muito diferente do que tínhamos há meia dúzia de anos” ou “há 20 anos, porque, há 20 anos, estávamos aqui absolutamente obrigados”, destaca.

Ainda assim, e apesar de reconhecer que a albufeira do Alqueva “é uma mais-valia” com “grandes benefícios para o país e para o Alentejo”, a autarca, ao pesar os prós e os contras para a Luz, não tem um balanço positivo.

“Aceitando que esta é a nossa” aldeia” e que “gostamos dela, se colocarmos nos pratos da balança, trouxe-nos mais prejuízo do que benefícios”, porque “não há uma evolução assim tão grande para esta população que passou pelo sacrifício da mudança”, sentencia.

"A Luz só teve importância até ao enchimento da barragem, até à mudança. Daí para diante, a aldeia voltou a ser a aldeia pequenina que sempre foi, para os nossos governantes em especial”Sara Correia

Na memória de todos, continua hoje “a estar muito presente tudo aquilo que foi feito nessa altura e que não foi feito devidamente ou que ainda está por fazer”, argumenta.

Segundo a autarca, o emparcelamento rural está “por concluir”, os proprietários de terrenos rústicos “continuam a pagar IMI de terras submersas por falta de cadastro atualizado” e edifícios públicos como o cemitério, praça de touros ou campo de futebol “ainda não estão em nome da autarquia”.

O que “demonstra que a Luz só teve importância até ao enchimento da barragem, até à mudança. Daí para diante, a aldeia voltou a ser a aldeia pequenina que sempre foi, para os nossos governantes em especial”, critica.

A população “não consegue”, assim, “virar a página e dizer ‘acabou'”, argumenta a presidente da junta de freguesia.

A sonhadora Ermelinda corrobora-a: “Aqui não, ainda não fui capaz de sonhar com esta aldeia”.

Habitantes da Aldeia da Luz ainda pagam IMI de terras submersas

Habitantes da Aldeia da Luz, em Mourão (Évora), ainda hoje pagam Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) dos terrenos que possuíam e ficaram submersos na antiga povoação, 20 anos após o início do enchimento do Alqueva.

A situação, que “não cabe na cabeça de ninguém”, é um dos problemas existentes na pequena freguesia alentejana, cuja grande parte do território foi submersa pelas águas do Alqueva, revelou a presidente da Junta de Freguesia da Luz, Sara Correia.

“Isto é frustrante para quem está à frente da autarquia”, argumentou a autarca, no cargo desde 2013, atribuindo a situação ao facto de não ter sido feito cadastro atualizado dos terrenos.

“Um proprietário de um terreno rústico não pode, simplesmente, ir às Finanças e dizer que é dono deste ou daquele prédio rústico e que quer pagar IMI dele. Estamos dependentes do cadastro feito pelo Instituto Geográfico”, que “não foi feito na altura”, disse.

A verba para essa atualização do cadastro, necessária porque “existe um lago imenso” na zona da antiga aldeia, “foi orçamentada e existiu”, mas “terá sido “gasta noutra coisa qualquer”, alegou.

“E todos os proprietários rústicos da Luz pagam IMI de terras submersas ou expropriadas, mas que não são deles. E pagam isso há 20 anos”, contou, realçando que o mesmo não se passa com prédios urbanos, que “estão devidamente escriturados e nas Finanças”.

A presidente da Junta de Freguesia da Luz desde 2013, Sara Correia, fala dos seus 18 anos de vida na velha aldeia da Luz (desmantelada e posteriormente ficou submersa), na aldeia da Luz, Mourão, 03 de fevereiro de 2022. NUNO VEIGA/LUSA

Caso “a população estivesse disponível para pagar”, o cadastro podia ainda ser feito. Só que “a população não pode estar disponível, não obstante muita gente, se calhar, já o querer fazer” por estar “cansada”, afiançou.

“Não pode ser, porque lá na antiga aldeia tínhamos as coisas devidamente feitas. Isto não foi procurado por nós, fomos forçados e, portanto, tem que ser o Estado”, sustentou.

O que a população contesta, até porque o valor de IMI nem deve ser “muito elevado”, visto as Finanças não poderem atualizar “os valores de terras submersas”, é “ter de pagar sobre um bem que não lhe pertence” e do qual “não tira usufruto”, criticou.

O emparcelamento rural, ou seja, o registo das novas terras em nome de quem já possuía terrenos na anterior localização, também merece críticas da autarca, que alega que o processo “não foi concluído”.

“A maior parte está feito, mas ainda existem uns quantos” por registar. “Qualquer um que seja, ao fim de 20 anos, é muito”, argumentou.

Segundo Sara Correia, estes e outros problemas são conhecidos dos governantes: “Não há ninguém lá em cima que não saiba que isto acontece, porque nós fazemo-lo chegar a todos os governos que passaram por lá” e até “ao Presidente da República já fomos. Não falta pedido, falta interesse em resolver”.

A transferência da Aldeia da Luz, no verão/outono de 2002, para uma nova povoação construída de raiz a poucos quilómetros da anterior, desmantelada e submersa, foi o impacto social mais significativo da construção da barragem do Alqueva, cuja albufeira começou a encher em 08 de fevereiro desse ano.

*Com Rita Ranhola (texto) e Nuno Veiga (fotos), da agência Lusa