![Ainda se pode namorar no local de trabalho? “Quem é o empregador para saber se está a namorar com A ou com B?”](/assets/img/blank.png)
No início deste ano, Filipe Silva, CEO da GALP, demitiu-se por suspeita de conflito de interesses como resultado de uma alegada relação amorosa com uma diretora da empresa. O caso serviu de mote para o ressurgimento de uma discussão sobre a possibilidade de ter relações dentro da mesma empresa e os limites dos direitos dos trabalhadores.
Se alguns acreditam que a proibição de o fazer em contexto de trabalho é inconstitucional e reflete uma violação da intimidade da vida privada e familiar do trabalhador, outros defendem que as dinâmicas de hierarquia e poder dentro das empresas não podem ser manipuladas por interesses pessoais ou familiares.
O código de conduta da GALP, citado pela Comissão de Ética, exige que a relação de dois funcionários em posições hierárquicas diferentes seja comunicada à administração, o que não aconteceu com a relação de Filipe Silva. A lei não o obriga a fazê-lo, mas a decisão final está sujeita à interpretação de cada jurista, explica ao SAPO24 João Leal Amado, professor na Universidade de Coimbra especializado em ciências jurídico-empresariais.
No entanto, a condenação pela falha de comunicação entre os funcionários num relacionamento e a administração de uma empresa é, na sua opinião, “inadmissível, segundo a legislação geral, a Constituição portuguesa, e a Lei do Trabalho”. A vida privada tem de ser, perante a lei, mais importante do que a vida profissional, e “o trabalhador não tem de reportar tudo o que acontece no plano da sua vida íntima”.
“Os trabalhadores não podem ser obrigados a reportar à sua entidade empregadora relacionamentos amorosos ou outro tipo de ligações que tenham no âmbito da sua vida privada”, uma vez que “prevalecem os direitos de personalidade dos trabalhadores”. No entanto, “a lei não se refere expressamente a essa questão, que naturalmente resulta dos princípios gerais e dos direitos dos trabalhadores enquanto pessoas, enquanto seres humanos”, que se relacionam.
A consultora McKinsey adota a mesma estratégia e no código de ética refere que “determinados tipos de relações devem ser divulgados para que a empresa possa realizar uma avaliação de risco e estabelecer salvaguardas quando necessário”. No entanto, tal como a GALP, admite que estas possam existir: “As relações pessoais - românticas, físicas, familiares ou outras - podem existir ou desenvolver-se entre colegas, um colega e um cliente que servem, ou um colega e um terceiro com quem estão a negociar ou a trabalhar”.
Perante estas situações, o professor desafia os trabalhadores a questionar “quem é o empregador para ter de saber se está a namorar com A ou com B, ou se foi fazer um jantar romântico?”. Na verdade, “o trabalhador, antes de ser agente produtivo, é uma pessoa que goza do direito à reserva da vida privada, goza do direito à liberdade de desenvolvimento da sua personalidade”, defende, “não tem de ser transparente para com a entidade empregadora, tem o direito a manter uma certa opacidade no que toca aos aspetos da sua vida íntima”.
É "natural" que se desenvolvam relações no trabalho
Na verdade, João Leal Amado lembra que estes são contextos propícios ao desenvolvimento de relações, “por ser um espaço de convivência, de sociabilidade”, e pelo "volume de tempo e as circunstâncias em que se trabalha”. E, por isso, “é perfeitamente natural” que as pessoas se relacionem, “não há nada que o impeça e até acontece que é no trabalho ou por ocasião do trabalho que a maioria das pessoas se conhece”, e isso “é da natureza da vida”.
“Isto são aspetos muito sensíveis, ligados à intimidade de cada qual", que podem variar entre “sentimentos de amor, de amizade, ou de ódio e de inveja", lembra. "E isso só vai desaparecer quando um dia houver robôs a trabalhar no lugar dos seres humanos”.
Para João Leal Amado, “enquanto formos pessoas a prestar trabalho no quadro de uma empresa, esses sentimentos, alguns bons, outros maus, vão brotando e isso faz com que, sem dúvida, nas decisões que se tomam, além do lado racional, interfira o lado emocional, não só quando há relações amorosas”, comenta.
De facto, “também essas relações de amizade, ou de inimizade, podem levar a conflitos”, destaca Dora Fonseca, socióloga especialista em relações do trabalho, em entrevista ao SAPO24. Portanto, é preciso "relativizar a necessidade de invadir de forma tão incisiva a esfera privada dos trabalhadores”.
Além disso, João Leal Amado acredita que é necessário “estabelecer uma prioridade de valores”, que permita que a legislação coloque a privacidade dos trabalhadores “antes das conveniências das organizações produtivas”.
Mas podem prejudicar a produtividade e o ambiente de trabalho?
De acordo com o código de ética da Mckenzie, “as relações pessoais podem ter consequências indesejadas para os nossos clientes, colegas e para a nossa Firma. Podem, de facto ou aparentemente, criar um conflito de interesses ou perceção de preconceito, ameaçar a nossa independência ou prejudicar a tomada de decisões baseadas no mérito”.
Dora Fonseca compreende que “pode existir a necessidade de algumas empresas recorrerem a esses expedientes”, de forma a impedir que “aspetos de relações íntimas que se reflitam na forma como o trabalho ou esse ambiente se desenvolve”. Mas não concorda que as relações “não possam afetar o trabalho”, quer sejam relações de namoro ou de amizade.
A investigadora no centro de investigação CoLABOR - Laboratório para o trabalho, emprego e proteção social, considera ainda “abusivo” fazer da comunicação das relações “uma obrigatoriedade, até porque isso pode abrir as portas para, num futuro, proibir a emergência de determinadas relações em contexto de trabalho”. Além disso, “as pessoas têm que ter noção do que é o profissionalismo e do que é o comportamento dentro do espaço de trabalho”, acrescenta.
No caso de representarem posições hierárquicas diferentes, “em que um pode, de alguma forma, exercer um poder abusivo sobre o funcionário, percebe-se que possa gerar vários conflitos dentro dos locais de trabalho e entre os próprios colegas”, comenta. E isso “não é desejável, são relações de subordinação, que são inegáveis e são mais complicadas”.
Contudo, “o facto de existir uma hierarquia e de esse tipo de relação trazer para cima da mesa a questão das relações de poder”, não justifica, na opinião da socióloga, “a invasão da esfera privada”. Até porque, “em que medida somos capazes de avaliar que uma relação conjugal ou amorosa está a interferir com a produtividade de uma pessoa", questiona, "é muito ambíguo”.
Então, o que pode o empregador exigir?
O empregador não pode exigir que o trabalhador revele os aspectos íntimos da sua vida, de acordo com o especialista. “Não tem que revelar qual é a sua orientação sexual, não tem que revelar qual é a sua religião, e também não tem que revelar quais os seus relacionamentos pessoais”.
“Para uma lei que olhe para o trabalhador não apenas como uma peça, um elemento da força produtiva, mas como uma pessoa, tem que se respeitar essa esfera do trabalho", explica, "porque isso faz parte, estamos a falar de relações amorosas, mas no fundo é da natureza humana que se trata”.
Por outro lado, “se se começar a verificar que há condutas anómalas de um trabalhador em relação ao outro, isso sim pode ser punido", declara João Leal Amado. "Não há soluções ótimas, mas tem de se dar prevalência a alguma coisa”, e acredita que deve ser à tutela da intimidade.
“A prioridade tem que ser dada à reserva da vida privada, à ideia de que uma coisa é a vida íntima do trabalhador e outra coisa é a sua vida profissional e que o trabalhador não tem que ser transparente para com a entidade empregadora”, reforça. Deixando claro que “nenhuma autoridade pública pode exigir ao trabalhador que tenha que dar essa informação, muito menos uma entidade privada”.
Como deve atuar a Comissão de ética neste processo?
“Os códigos de ética são princípios reguladores, basilares, de qualquer instituição, de qualquer organização, e das próprias sociedades”, explica Dora Fonseca. Portanto, “é bom que existam, sem que haja uma invasão da privacidade dos trabalhadores e sem serem escrutinadas dessa forma violenta pela administração”.
João Leal Amado defende que a Comissão de Ética deve intervir “se houver realmente condutas anómalas no quadro da atividade profissional, em que se verificam violações de dever do trabalhador”, mas considera que é “ilegítimo” que seja usada para “obrigar e sobretudo depois punir as pessoas por não darem a informação” de estar numa relação.
Na opinião do professor, os códigos de ética devem “ aconselhar, recomendar, mas nunca no sentido de criarem deveres de cumprimento obrigatório e que depois possam levar as sanções, como aconteceu”. Estes documentos “têm lógica enquanto estabelecerem regras que procuram preservar a reputação e evitar conflitos de interesse”, defende, mas não podem punir as pessoas por não quererem falar sobre a vida pessoal, “sob tutela dos direitos de personalidade de quem trabalha”.
O trabalhador “não pode ser obrigado a fazer essa comunicação”, quer seja no início ou durante a relação.
Outros casos de relacionamentos proibidos
João Leal Amado dá o exemplo de um dos casos que estudou de um casal que se conheceu na mesma empresa, se começou a relacionar e foi despedido por isso. Passou-se no Brasil, na empresa Walmart, e o jurista decidiu que os trabalhadores tinham razão.
A empresa “proibia o relacionamento amoroso entre funcionários da empresa se tivessem alguma relação funcional, portanto se um deles pudesse tomar decisões com impacto na atividade profissional do outro”. Quando tomou conhecimento do relacionamento de dois jovens nestas circunstâncias, despediu-os, “indicando que tinham violado os deveres de comunicação da relação à administração”.
O caso foi levado ao Tribunal Superior do Trabalho no Brasil, conta o professor, “numa decisão que não foi unânime, portanto estas coisas não são lineares, mas que considerou que o despedimento era abusivo e deu razão aos trabalhadores”.
“Se temos uma relação com alguém, se não temos, como é que temos, enfim, isso é algo que, à partida, o empregador não deve disputar. Ou há, de facto, alguma conduta na esfera empresarial, na vida laboral, que se considera menos correta, ou se demonstra que o trabalhador tomou uma decisão ou violou algum dos seus deveres. Se não se apura nada de anormal no cumprimento do contrato, não pode ser valorado”, conclui.
*Edição por Ana Maria Pimentel
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