As alergias nunca são exatamente o que parecem. São difíceis de identificar.

Muitas vezes mais difíceis de diagnosticar. E ainda mais difíceis de medir. As medições exatas das taxas de incidência das doenças alérgicas são importantes. Os números são o motor de tudo na investigação médica, desde a atribuição de fundos até ao desenvolvimento de novos medicamentos. Para começar a perceber a dimensão do problema e porque e que as alergias podem ser a condição médica crónica definidora do século XXI, temos de mergulhar de cabeça num mar de estatísticas. Os números que se seguem, retirados de alguns dos dados mais recentes disponíveis, realçam quão difundidas e generalizadas sãs as alergias hoje em dia.

  • Estima‑se que 235 milhões de pessoas em todo o mundo sofram de asma.
  • A nível mundial, 240 a 550 milhões de pessoas podem sofrer de uma alergia alimentar.
  • A alergia a medicamentos pode afetar ate 10% da população mundial e ate 20% de todos os pacientes hospitalizados
    no mundo.
  • Entre 10 e 30% da população mundial sofre de rinite alérgica (febre dos fenos).
  • Pelo menos uma forma de doença alérgica afeta 20 a 30% da população total da Índia.
  • A alergia respiratória afeta 33% dos indianos.
  • Alguma forma de alergia crónica afeta 150 milhões de europeus.
  • Metade dos ugandeses tem uma alergia.
  • A alergia alimentar afeta 7,7% das crianças chinesas.

Sérgio Godinho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de junho, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz o seu romance "Vida e Morte nas Cidades Geminadas", editado pela Quetzal.

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Estes números são, a um certo nível, incompreensíveis no seu alcance e, no entanto, vemos números como estes todos os dias. A maior parte de nós está tão habituada a ver tabelas, gráficos, resultados de inquéritos e percentagens nos nossos feeds de notícias, que os factos e os números conseguem intrigar‑nos, sobrecarregar‑nos, entorpecer‑nos e aborrecer‑nos, tudo ao mesmo tempo. Vivemos na era do big data, da ciência global e das folhas de cálculo Excel, onde, como Joseph Estaline terá dito: ≪Se apenas um homem morre de fome, isso e uma tragédia. Se morrerem milhões, isso é apenas estatística.≫ Se transpusermos esta lógica para o domínio das condições medicas atuais, talvez possamos começar a compreender melhor porque e que não prestamos atenção suficiente a estas taxas espantosas: se apenas uma criança morre de anafilaxia por comer um amendoim ou de um ataque de asma alérgica grave, isso e uma tragédia. Mas se milhões de outras crianças sofrerem de alergia alimentar ou asma e não morrerem, isso é apenas estatística. E embora números enormes como estes possam dizer‑nos muito sobre a dimensão do problema global da alergia, não nos podem dizer tudo o que precisamos de saber.

Temos dificuldade em visualizar todas as pessoas que sofrem de alergias e as suas lutas diárias coletivas com as suas doenças,
que constituem todos estes dados em primeiro lugar. As histórias individuais – como a do meu pai, a minha e talvez a sua —tendem a perder‑se.

Quando comecei a analisar as estatísticas, senti‑me simultaneamente impressionada e confusa. Em que se baseavam exatamente os números oficiais e porque e que muitas vezes variavam ou refletiam um leque tão vasto de possibilidades? Obviamente, todas as estatísticas são estimativas. São calculadas com base em amostras mais pequenas e representativas. Mas eu queria mais pormenores sobre quem estava a fazer a amostragem e como, por isso entrei em contacto com os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CCP) dos EUA para tentar encontrar algumas respostas.

Os CCP registam as taxas de asma e de alergia alimentar porque são as duas formas mais mortais de doença alérgica e são as que
mais contribuem para as nossas taxas nacionais de mortalidade.

No entanto, após várias rondas de telefonemas e emails com membros do pessoal, não obtive respostas. Depois de um pouco
mais de trabalho e de muitas mais entrevistas com investigadores de alergias, percebi que isso se devia ao facto de ser difícil, se não impossível, saber com certeza quantas pessoas sofrem de alergias.

É igualmente difícil responder definitivamente à pergunta para a qual toda a gente quer saber a resposta: as coisas estão a piorar?
Esta foi uma das questões mais prementes que tive depois de ter sido diagnosticada e de ter começado a falar com outras pessoas sobre as suas próprias alergias. Os especialistas em alergias, os prestadores de cuidados de saude, as empresas farmacêuticas e
de biotecnologia, os cidadãos não alérgicos, as pessoas que sofrem de alergias como Veronica e, muito possivelmente, você, leitor
preocupado, todos querem saber se as alergias são mais prevalecentes agora do que eram no passado e se as taxas de alergias
continuarão a aumentar num futuro previsível. Serão os números verdadeiramente piores do que há dez, vinte ou trinta anos? Será que as taxas de alergia estão realmente a aumentar década após década, ou será que as novas campanhas de sensibilização para a saúde pública e os instrumentos de diagnóstico mais precisos nos tornaram simplesmente melhores a detetar e a diagnosticar as alergias, fazendo assim subir os números? Será que as pessoas que vivem no século XXI têm, de facto, mais probabilidades de desenvolver alergias ou de as sofrer com mais frequência e com sintomas mais graves?

Passei mais de cinco anos a pesquisar e a escrever este livro, lendo sobre alergias no passado, entrevistando alergologistas e visitando laboratórios científicos que trabalham com alergias. Perguntei a todas as pessoas que conheci se achavam que as alergias estavam a tornar‑se mais prevalecentes na população em geral e mais graves por natureza. Quase todos responderam afirmativamente a ambas as perguntas; no entanto, também alertaram para o facto de estarmos apenas no início da nossa jornada para compreender as alergias de um ponto de vista científico e que os dados de que dispomos atualmente não são tão bons como
poderiam ou deveriam ser.

Os especialistas em alergias que trabalham nesta área há décadas disseram‑me todos a mesma coisa: é difícil avaliar com precisão a situação atual porque é complicado obter dados fiáveis sobre o número de pessoas que sofrem de alergias. Por um lado, temos inúmeras narrativas individuais de pessoas que sofrem de diferentes formas de doença alérgica – eczema, asma, febre dos fenos, alergia alimentar – e notas clínicas e diagnósticos de médicos ou alergologistas. Por outro lado, temos as estatísticas oficiais compiladas e tabuladas. Quando se analisa estes estudos epidemiológicos, rapidamente se detetam alguns problemas evidentes.

Para começar, a definição do que é uma alergia – ou, talvez mais importante, do que não é – pode afetar a forma como as pessoas são contadas, prejudicando a exatidão das estatísticas.

Livro: "Alérgico"

Autor: Theresa MacPhail

Editora: Casa das Letras

Data de Lançamento: 18 de junho de 2024

Preço: € 21,90

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As categorias de doenças não são entidades estáveis ou ≪coisas≫ no mundo; são descrições de um conjunto de sintomas típicos e sinais biológicos de doença. Mesmo algo aparentemente ≪fácil≫ de definir, como a asma, e mais complicado do que parece a primeira vista. A definição oficial de asma mudou várias vezes desde a década de 1950. Os estudos epidemiológicos nem sempre
utilizam os mesmos marcadores de doença, pelo que alguém que e considerado asmático num estudo pode não ser considerado
asmático noutro. Num meta‑estudo, os investigadores descobriram que 122 estudos sobre a prevalência da asma em crianças não
utilizavam definições ou sintomas de asma padronizados, tornando impossível compilar ou comparar os dados. De facto, foram utilizadas sessenta definições diferentes de asma nos 122 estudos.

Quando as quatro definições mais populares foram aplicadas ao mesmo conjunto de dados, a variação no número de crianças que
poderiam ser classificadas como ≪asmáticas≫ foi surpreendente. Dependendo da definição utilizada, ate 39% das crianças passaram de ter asma para não a ter.

Portanto, as crianças que participaram nestes estudos tem ou não asma? E quem e que decide? Os pais que veem os seus filhos
a arquejar ligeiramente no parque infantil ou a ter dificuldade em respirar ao deitar? Os pediatras que fazem um historial familiar
e depois usam um espirómetro para medir a função pulmonar dos seus jovens pacientes? Ou os epidemiologistas que analisam
a codificação de pedidos de indemnização de seguros por asma, o número de prescrições de inaladores que estão a ser passadas ou os dados de inquéritos relatados por pais com filhos menores de dezoito anos? E isto que torna os dados epidemiológicos sobre o número de pessoas com alergia tão difíceis de recolher, de decifrar e de escrever.

A Dra. Neeru Khurana Hershey, médica e investigadora da asma no Hospital Pediatrico de Cincinnati, com décadas de experiência, explicou‑me porque é que a asma alérgica, em particular, é tão difícil de rastrear. ≪A asma é um termo vago≫, disse ela. ≪É o nome de um sintoma, não de uma doença. A asma é heterogénea. E definida por uma constelação de sintomas, que podem resultar de diferentes caminhos.≫ Por outras palavras, muitas condições médicas diferentes podem causar uma reação asmática, e não apenas uma alergia. Este facto, explicou Khurana Hershey, torna difícil medir especificamente a asma alérgica ou separar as alergias das outras causas da asma, como o exercício ou outras doenças pulmonares. Para complicar ainda mais a situação, mesmo que as alergias não sejam a causa principal da asma de um doente, podem ser um fator ambiental desencadeante de um ataque de asma. A menos que se analise o historial clinico de cada doente, é impossível dizer quem tem asma ≪alérgica≫ e quem tem asma ≪não alérgica≫ com gatilhos alérgicos.

E isto não é apenas um problema para a asma.

As definições de quase todas as diferentes formas de condições alérgicas utilizadas para compilar dados oficiais sobre as taxas globais de alergia são difusas, contestadas e estão em constante mudança. Surpreendentemente, a febre dos fenos – a mais antiga
alergia reconhecida medicamente – é muito mais difícil de definir do que se poderia supor à partida, e os sintomas utilizados para a medir podem variar muito. E mesmo que os estudos sejam rigorosos e se baseiem em testes clínicos ou num diagnóstico oficial
para serem considerados como um diagnóstico confirmado (e a maioria não o faz), os números resultantes continuam a depender
da forma como os investigadores definiram inicialmente as categorias da doença. Tudo isto é, para dizer o mínimo, confuso
e frustrante, e muitas vezes leva a uma grande discrepância nos números oficiais de pessoas que sofrem de alergias.

Eis um exemplo pertinente de como é difícil obter números mais precisos sobre quantas pessoas estão a fungar, a espirrar e a ficar irritadas. As medições da rinite alérgica variam entre 10 e 40% da população mundial total. Numa escala global, a diferença entre 10 e 40% é enorme – é como somar ou subtrair a população de um continente inteiro. A grande variação deve‑se às diferenças nas definições do que constitui a febre dos fenos, aos critérios de diagnóstico utilizados para avaliar a doença em inquéritos individuais e nacionais (como olhos lacrimejantes ou espirros frequentes) e as populações a medir (que grupos socioeconómicos e áreas geográficas estão representados nos dados do inquérito a compilar).

Para começar, nem todas as pessoas que sofrem de febre dos fenos fazem o teste e as pessoas que se autodiagnosticam nem sempre estão refletidas nos números oficiais. Mesmo quando as pessoas que sofrem de rinite alérgica vão ao médico ou a um clínico geral, podem não sair com o diagnóstico correto. Alem disso, nem todas as pessoas que sofrem de uma alergia sabem que a têm ou se identificam como alérgicas, sobretudo se os sintomas forem ligeiros ou se a exposição ao alergénio for rara. O meu pai não sabia da sua alergia ao veneno de abelha e eu não sabia das minhas alergias respiratórias, e nenhum de nos teria assinalado a caixa ao lado de ≪alergia≫ na nossa história clinica familiar ou respondido afirmativamente a uma pergunta de um inquérito sobre ter uma alergia. E é amiúde assim que recolhemos dados sobre a taxa de alergias em primeiro lugar – perguntamos diretamente as pessoas ou fazemos‑lhes um inquérito sobre os seus sintomas.

Este é um problema importante no que diz respeito à fiabilidade e precisão dos nossos números atuais sobre alergias. A maioria dos estudos epidemiológicos sobre alergias baseia‑se na autoavaliação dos sintomas através de inquéritos online ou por contacto telefónico. Confiamos que as pessoas que sofrem de alergias avaliem com exatidão os seus próprios sintomas e os comuniquem de forma verdadeira para que as suas respostas possam ser classificadas na categoria correta e contadas. O problema gritante com esta abordagem é que os sintomas de alergia são frequentemente semelhantes ou idênticos aos de outras doenças, pelo que podem ser confusos. Os sintomas relatados são, na melhor das hipóteses, uma evidência de que um paciente pode ter uma alergia subjacente. Sem um diagnostico médico, os sintomas relatados por si só não podem ser usados como confirmação de uma verdadeira resposta alérgica.