Andrew Boulton é o Presidente da Federação Internacional da Diabetes (IDF) e está em Portugal no âmbito do Congresso virtual da IDF que se realiza a partir de Lisboa, embora online, com oito mil participantes inscritos e 250 palestrantes.
O tema principal deste congresso é a relação entre a covid-19 e a diabetes e, em Portugal, o congresso tem o apoio e promoção da instituição mais antiga do mundo dedicada a esta doença, a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugueses (APDP).
A relação entre covid-19 e Diabetes é problemática?
A covid-19 é um desastre para a diabetes por duas razões. Em primeiro lugar, foi publicado no mês passado um artigo no Journal of Clinical Pathology, no Reino Unido, que demonstrou uma redução de mais
de 60% na avaliação de hemoglobina A1c — uma medida a longo prazo do controlo da diabetes —em relação aos primeiros seis meses (de abril a setembro) do ano passado, no Reino Unido. Trata-se de uma redução de
quase dois terços. Isto significa que as pessoas não estão a ser rastreadas, não estão a ser diagnosticadas. Revela ainda que as pessoas com diabetes fazem consultas virtuais ou que não estão a fazer os testes sanguíneos regulares, porque têm medo de ir ao hospital. Hospital equivale a correr um risco. Ou seja, covid-19 + diabetes é igual a muito mau. No Reino Unido, um terço de todas as mortes por covid-19 em hospitais, no ano passado, ocorreram em pessoas com diabetes.
A segunda razão para ser uma relação problemática é que os pacientes com consultas não comparecem. Mais uma vez, porque estão assustados. Faltam-lhes os testes regulares e o controlo da doença provavelmente não é tão bom. Adicionalmente, ter ficado em casa, isolar-se, é muito stressante, sendo que o stress agrava ainda mais o controlo da diabetes. Por isso, receamos que haja um tsunami de complicações da diabetes e um tsunami de novos casos, se alguma vez sairmos desta pandemia.
Falando de covid-19, quais os cuidados essenciais para a comunidade alargada? E quais as recomendações para a comunidade científica?
As pessoas com diabetes devem ter uma dieta equilibrada. Não é necessário ir ao ginásio, porque é nos ginásios que as pessoas se reúnem e isso poderá facilitar a propagação do vírus. Assim, recomenda-se um
passeio sozinho ou com alguém do mesmo agregado familiar, caminhar no parque ou na rua, mantendo o distanciamento. É importante que as pessoas se mantenham ativas, e que convivam com um grupo restrito de
pessoas, fazendo uso de chamadas virtuais para manter o contacto com amigos. A monitorização do nível de açúcar no sangue a partir de casa é igualmente importante.
Quais os temas, além da covid-19, do Congresso da Federação Internacional da Diabetes?
O Congresso Mundial de Diabetes deveria estar a decorrer agora em Banguecoque, mas por causa da covid-19 tivemos de cancelá-lo. Estava planeado que, no ano passado, em dezembro, decorresse aqui [em
Portugal] o Congresso sobre Complicações na Diabetes. Foi igualmente cancelado. Portanto, estamos a realizar o congresso, virtualmente. No primeiro dia [segunda-feira, dia 6], lançámos os novos dados do Atlas da Diabetes, o 10ª Atlas, que é uma autoridade global sobre a forma como a diabetes vivida em todo o mundo. Tivemos um simpósio sobre o centenário da insulina – faz este ano 100 anos da sua descoberta. O restante congresso é, principalmente, sobre as principais complicações da diabetes, sendo que acrescentámos a relação entre a covid-19 e a diabetes.
A diabetes tem consequências específicas. Até há uns tempos, no Reino Unido, a diabetes era a causa número um para a cegueira em adultos em idade ativa. Em resposta a essa realidade, foi introduzido um programa de rastreio no qual todas as pessoas com diabetes tiram uma fotografia de retina uma vez por ano. Se for encontrada alguma coisa, são encaminhados para uma consulta de oftalmologia. Como resultado, a diabetes já não é a causa mais comum para a perda de visão no Reino Unido. O rastreio é muito importante. Agora estamos a trabalhar com novas técnicas de rastreio, e pode ser que num futuro próximo, o paciente possa tirar uma fotografia do seu olho e que esta possa ser lida por inteligência artificial.
Um dos maiores receios das pessoas com diabetes é a amputação das pernas. O rastreio e acompanhamento regular são também primordiais. Mas, mais uma vez, será necessário consultar um profissional de saúde. Este
acompanhamento não precisa de ser feito no hospital. O que eu fiz — porque a minha área são as complicações associadas à diabetes, especialmente nos membros inferiores — foi transferir todos os pacientes
com problemas nos pés do hospital para uma clínica comunitária. Por favor, olhem para os pés. O diagnóstico precoce, a educação e bons cuidados com os pés podem reduzir o risco de úlceras e amputação.
Para diagnosticar a diabetes será necessário ir ao hospital?
Para diagnosticar a diabetes é necessário fazer um exame de sangue, sendo que este não tem de ser feito no hospital. Se as pessoas tiverem medo de lá ir, isso pode ser feito numa outra estrutura comunitária, onde
o risco seja menor. Se tiver um familiar de primeiro grau com diabetes, ou se tiver uma ocupação sedentária, que implique estar sentado todo o dia, e se tiver excesso de peso, estes são fatores de risco. Não tenha receio de ser examinado. A diabetes é agora reversível na sua fase inicial. E mesmo que não seja reversível, pode evitar as complicações tardias, que é o que realmente causa problemas.
Sem querer fazer futurologia, como é que as novas tecnologias irão ajudar a controlar a doença?
Estamos a analisar a possibilidade de usar a inteligência artificial para sermos capazes de prever quais as úlceras do pé diabético que vão curar bem. Na diabetes tipo 1, a revolução tecnológica decorreu nos últimos 10 anos com a monitorização contínua da glicose através do uso de um sensor adesivo no braço e, com o recurso ao telemóvel, é agora possível ter a leitura do açúcar no sangue em alternativa ao picar o dedo. A antiga primeira-ministra, Theresa May, na Câmara dos Comuns, tinha um no braço, e não tinha vergonha de dizer às pessoas que tinha diabetes tipo 1. Isto ajuda as pessoas a viverem uma vida relativamente normal, sendo capazes de monitorizar o açúcar no sangue e obter tratamentos adequados. Podemos usar bombas e, através da tecnologia sem fios, o monitor contínuo de glicose pode alimentar a bomba, que por sua vez
determina a quantidade de insulina a administrar.
A IDF publica o 10º Atlas da Diabetes. O que contempla este Atlas?
É a autoridade global sobre o quão comum é a diabetes. É utilizada mundialmente pelos governos e pelas autoridades de saúde. Pessoas de todo o mundo referem-se ao Atlas como a compilação dos dados reais
baseados em provas, tanto quanto possível, sobre o quão comum é a diabetes. As estatísticas são assustadoras. Desde que a nossa edição foi publicada, há dois anos, houve um aumento de 16%, mais 76 milhões de pessoas no mundo com diabetes em comparação com dezembro de 2019. Em 2019, o Atlas referia-se a mais de 400 milhões de pessoas.
Como vê a realidade das pessoas com diabetes em Portugal?
A APDP, membro da Federação Internacional de Diabetes (IDF), é a sociedade de diabetes mais antiga do mundo, com 95 anos de idade este ano. Há muito trabalho de qualidade vindo de Portugal e penso que o cuidado geral é muito bom. Existem excelentes centros de especialização e investigação, bem como bons cuidados clínicos. Ainda na semana passada, fui um orador convidado importante no Porto, no Wound Healing Congress, onde falei sobre úlceras diabéticas, e o interesse foi muito significativo.
Quais os principais objetivos do Congresso Virtual do IDF?
Penso que o ponto alto no dia de segunda-feira foi o simpósio para celebrar o centenário da insulina, olhando para a História, dizendo que a diabetes tipo 1 costumava ser uma sentença de morte e que, com insulina, já não é. Mas ainda há pessoas a morrer em países de todo o mundo, porque não conseguem ter acesso à insulina. E a nossa mensagem pretende aumentar a consciência de que a diabetes é facilmente tratável desde cedo, e garantir que ninguém, onde quer que esteja, seja qual for a cor, onde quer que viva, passe sem os medicamentos, quer seja insulina ou comprimidos. Isso não deveria acontecer 100 anos após essa descoberta.
Artigo com edição adicional às 21h55 de 9 de dezembro
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