Quem é?

António Costa Silva nasceu a  23 de novembro de 1952 em Angola, na antiga Nova Sintra, hoje Catabola, na província do Bié. De lá, recorda-se desde muito miúdo de ver os “contratados” (homens negros) acorrentados – que iam em camiões levados para trabalhar no norte de Angola.

“Lembro-me de ficar revoltado e perguntar aos adultos o que se passava. Fui inclusivamente buscar comida a casa para aquelas pessoas. Foi meu primeiro ato político”, contou em entrevista à agência Lusa.

Os primeiros passos no mundo da intervenção pública foram dados na Universidade de Luanda, onde fez parte dos Comités Amilcar Cabral, apoiantes da independência da antiga colónia portuguesa onde teve grandes batalhas políticas. “Éramos jovens e queríamos mudar o mundo”, diz na mesma entrevista.

Dois anos depois de ter aplaudido Agostinho Neto na Praça 1.º de Maio a 11 de novembro de 1975, durante a declaração de independência de Angola, seria preso, apanhado por um onda de repressão brutal, apesar de não estar em nada relacionado com os chamados “fracionistas”.

É na sequência dessa atividade que veio a ser preso, em dezembro de 1977, onde foi “barbaramente agredido e torturado quase dia sim, dia não, no primeiro ano de prisão”, recorda à Lusa. Ficaria preso durante três anos, sujeito a constantes humilhações e torturas por parte da polícia, a DISA (Direção de Informação e Segurança de Angola).

Num dia, em 1978, é transportado de ambulância para fora da cadeia. Vendado, é colocado perante um pelotão de fuzilamento. Ouviu o som das culatras, mas as armas não dispararam. “Nunca soube porquê”, diz. Questionado pela Lusa sobre o que sentiu naquele dia, diz que "foi um dia que enfrentei com grande tranquilidade, penso que a morte faz parte da vida e algum dia temos que morrer, e eu pensei, bem, chegou esse dia”.

Segundo conta, os torturadores pretendiam que assinasse uma declaração afirmando que era espião da CIA, o que ditaria a sua execução imediata. Ao recusar-se, deram-lhe uma folha de papel para escrever o testamento.

“E eu escrevi que a vida é linda, o que causou ainda mais irritação. Prenderam-me, algemaram-me as mãos atrás das costas, puseram-me uma venda e levaram-me de carro para uma praia, onde habitualmente executavam as pessoas, ouvi o ruído das armas, mas elas não dispararam. Nunca soube porquê”, conclui.

Desde esse dia, a partir do qual António Costa e Silva descreve a sua vida como "uma espécie de bónus" -  "poderia praticamente ter ficado ali, há coisas que nos condicionam para sempre", diz - até ser libertado, ainda se passou um ano em que a tortura continuou a ser uma constante.

Finalmente, em 1980, várias pressões de organismos internacionais resultaram na sua libertação. Saia da prisão com 28 anos, marcado profundamente para a vida. Hoje, garante que não guarda rancor. “Angola vivia sob um regime totalitário e esses regimes descarregam toda a sua raiva na cabeça e no corpo dos presos políticos. Não tenho nenhum ressentimento em relação a isso”, diz.

Cá fora, decidiu não abandonar Angola e em 1980 integra o departamento de produção da Sonangol, a petrolífera estatal angolana. Mais tarde, problemas de saúde fizeram-no viajar para Portugal. Por cá, licenciou-se em Engenharia de Minas no Instituto Superior Técnico, e, mais tarde, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian fez o mestrado em Engenharia de Petróleos no Imperial College, em Londres. Fez-se doutor, com uma tese sobre “O Desenvolvimento de Modelos Estocásticos aplicados aos Reservatórios Petrolíferos” entre a capital londrina e Lisboa.

Entre 1998 e 2001 foi diretor executivo da francesa Compagnie Générale de Geophysique (CGG) na capital portuguesa,  onde coordenou projetos de exploração de petróleo no Bahrein, México e na Rússia, antes de se mudar para Paris e trabalhar no Instituto Francês do Petróleo (IFP) como diretor de engenharia de reservatórios e diretor de operações durante dois anos em que  lidou com alguns dos maiores campos de gás do mundo (Argélia, Venezuela, Arábia Saudita, Irão). Há quase 20 anos, chegava à empresa que gere o negócio petrolífero do grupo Gulbenkian, a Partex, onde permanece até hoje.

“A vida tem múltiplas dimensões e é evidente que a poesia é uma espécie de descanso do espírito”

António Costa Silva sempre foi um devorador de livros. Enquanto esteve preso, em Angola, escreveu e publicou dois romances sob o pseudónimo de António Valis. Mais tarde vieram os poemas. Atualmente tem quatro livros publicados, todos escritos com o amigo Nicolau Santos, jornalista e presidente do Conselho de Administração da Agência Lusa.

Numa entrevista ao Dinheiro Vivo, em 2019, explica da seguinte maneira a partilha da poesia e da vida: “A vida tem múltiplas dimensões e é evidente que a poesia é uma espécie de descanso do espírito”.

É precisamente com literatura que pede emprestado ao alemão Novalis a definição do que é um engenheiro de minas: um astronauta ao contrário. “Quando se começa a olhar para a geologia do planeta, estudá-la é crucial porque percebemos a partir daí que vivemos não só num planeta extraordinário, mas que causa — do ponto de vista da beleza — inúmeros assombros“, explicou Costa Silva nessa entrevista.

No prefácio do livro “Fotografias Lentas do Diabo na Cama”, editado em 2014 pela Arcádia, Pedro Santos Guerreiro, antigo diretor do semanário Expresso, diz que, na poesia, “o António liberta a imensa força devagar". Nela "há beijos, muitos beijos (beijos-mulher), há aromas, há silêncios, há olhos fechados que pensam o sabor da beleza”, escreve Santos Guerreiro, sublinhando que “António Costa Silva escreve muito sobre a palavra ordenando neste fascínio o seu próprio lugar na poesia”.

“Gramática, sílabas, linguagem, dactilografia, "palavras-perfume", "palavras-passado", sempre a busca pelo conhecimento da palavra, sempre o amor pela palavra, a palavra íntima, inteira, a palavra primitiva. "A verdade à espera de cada verso" - disse ele”.

Nesse mesmo livro, nas primeiras páginas, salta à vista um poema, “Bié-Chão”. Tem Angola, astronomia de pernas para o ar e a palavra. É assim:

Bié-Chão

O chão tem uma gramática
Como a alma tem um canto.
Junto letras raízes
Caules que me traduzem,
Capítulos do tempo.

A terra feita de sílabas.
Sílabas que adivinham,
E adivinham-me.

O chão tem uma linguagem.
Trajecto de raízes
O cachimbo de Kota Venâncio
O voo das viuvinhas
Caminhos à beira da lagoa
Tarde velha de horizontes
Relâmpagos em fúria
A toupeira escondida
Entre quintal e água
Frases vestidas de luz
O relógio da casa grande do avô,
Alpendre do mundo.

O chão,
Sempre o chão a chamar-me,
Do fundo do tempo.

créditos: JOSÉ SENA GOULÃO / LUSA

Quando é que passámos a ter outro António Costa na ordem do dia?

No último sábado, dia 30 de maio, o semanário Expresso imprimia uma primeira página com o título: Costa chama ‘independente’ para salvar a economia. O ‘independente’ era, claro está, António Costa Silva.

No dia seguinte, o primeiro-ministro confirmava o convite feito ao gestor da Partex em nota enviada à Agência Lusa. O texto dizia que o convite fora aceite "como contributo cívico e ‘pro bono'" e que o gestor tem estado a trabalhar nessa missão nas últimas semanas, "enquanto os membros do Governo estão concentrados, nesta fase, no Programa de Estabilização Económica e Social e no Orçamento Suplementar".

"O objetivo é este trabalho preparatório estar concluído quando o Governo aprovar o Orçamento Suplementar" - dia 12 de junho -, altura em que o ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital, Pedro Siza Vieira, assumirá "a direção da elaboração do Programa de Recuperação", acrescenta o gabinete de António Costa.

O programa, recorde-se, terá por base os até 26,3 mil milhões de euros que Portugal poderá vir a receber do Fundo de Recuperação da União Europeia.

Finalmente, esta quarta-feira foi publicado em Diário da República o despacho que designa o gestor António Costa Silva para coordenar os trabalhos preparatórios de elaboração do Programa de Recuperação Económica e Social 2020-2030, não auferindo de qualquer remuneração ou abono.

Porquê António Costa Silva?

Segundo palavras dos próprios, António Costa e António Costa Silva nunca se tinham cruzado nas suas vidas até ao surgimento deste convite. O mais perto que terão estado terá sido há dois anos, em 2018, quando Costa Silva entrou em discórdia com o executivo de então por discordar da decisão tomada em relação à exploração de gás e petróleo no Algarve, tendo mesmo afirmado que “não vale a pena” investir em Portugal, que “tem uma fraquíssima inteligência estratégica”.

Segundo o despacho publicado, é sublinhada a “idoneidade, experiência e competências” do professor catedrático do Instituto Superior Técnico. Na exposição de motivos relativa à designação de António Costa Silva, o Governo aponta "a situação económica e financeira mundial gerada pela pandemia da doença covid-19 e os seus reflexos e consequências na sociedade, os quais têm implicado a adoção de diversas medidas ao nível nacional e no plano da União Europeia".

Para a escolha do presidente do executivo da Partex e docente universitário, o executivo invoca também "a orientação da União Europeia no sentido de a estratégia de recuperação económica assentar em planos de recuperação nacionais, alicerçados no investimento e nas reformas prioritárias, no quadro do Semestre Europeu, alinhados com os programas operacionais e os planos nacionais de energia e clima e da transição digital".

Neste contexto, o Governo defende então que "tal estratégia deve ser trabalhada em torno da elaboração de um plano específico que verse transversalmente sobre a recuperação do tecido económico e social, de forma articulada com a resposta imediata da União Europeia a esta crise económica, financeira e social, bem como com o próximo quadro financeiro plurianual 2021-2027".

Ainda na exposição de motivos deste diploma, o executivo socialista realça "a importância de, perante a conjuntura gerada pela pandemia da doença covid-19, as medidas estruturais adotadas pelo Governo, nomeadamente o Plano Nacional de Energia e Clima 2021-2030, a Estratégia Nacional para o Hidrogénio, o Programa Nacional de Investimentos 2030 e o Plano de Ação para a Transição Digital, carecerem de reavaliação e reorientação estratégicas".

No debate quinzenal, que aconteceu esta quarta-feira, o primeiro-ministro defendeu, perante a oposição, a importância de, “quem está no exercício de funções políticas, seja capaz de ouvir para lá da bolha político-mediática, chamar à colaboração especialistas, técnicos porque têm uma visão fora da caixa que muitas vez nos ajudam a refletir".

Como foram as reações?

Bloco de Esquerda: “O senhor primeiro-ministro é aconselhado por quem acha que pode fazer esse trabalho, é livre de o escolher. O Bloco de Esquerda, naturalmente, negoceia com membros do Governo, como fez até agora e como mandam, aliás, as regras da boa transparência da nossa democracia” - Catarina Martins

CDS: "Para discutir o plano de recuperação económica do país, o CDS conta reunir com Costa e Siza, e não com Costa Silva. O primeiro-ministro pode escolher com quem é que os seus ministros se aconselham, mas em matéria de governação do país, o CDS deve falar com o Governo e não com quem o Governo fala" - nota do partido

PAN: "Face a esta decisão do Governo, o PAN afirma-se, como até aqui, disponível para se reunir com o Governo através do senhor primeiro-ministro ou dos ministros ou secretários de Estado setoriais, que são quem tem legitimidade democrática e assume a responsabilidade política pelas suas decisões, manifestando contudo, desde já, a nossa indisponibilidade para nos reunirmos com alguém que se apresente nas negociações como ‘paraministro'” - André Silva.

PSD: "Se Governo quer fazer um plano a longo prazo de desenvolvimento estratégicos da economia portuguesa, acho bem. Quem é que chama a colaborar? Não é da minha conta. Desde que depois o relacionamento direto não seja com essa pessoa" - Rui Rio

PCP: “O Governo pode rodear-se de assessores, de especialistas - está no seu direito - mas estamos a falar do relacionamento institucional, da sede (Assembleia da República) onde as coisas vão ser discutidas e resolvidas. Entendemos que deve ser sempre alguém do Governo” - Jerónimo de Sousa

Joacine Katar Moreira: ““Parece claro que o primeiro-ministro [o socialista António Costa] está a tentar voltar aos 'tempos áureos' em que grandes investimentos em infraestruturas dinamizavam economias assentes na exploração dos combustíveis fósseis”

Chega: “A escolha de António Costa Silva para conselheiro governamental é, no mínimo, caricata: o maior Governo da história de Portugal não tem gente competente para preparar um programa de recuperação económica? Temos de ir buscar fora do Governo? Que estão lá a fazer então os ministros da Economia e das Finanças?” - André Ventura

Iniciativa Liberal: Requereu a audição parlamentar urgente de António Costa Silva. No requerimento, o deputado único João Cotrim Figueiredo considera que “estas matérias são verdadeiramente definidoras do futuro de Portugal, pelo que o seu escrutínio não deve ser deixado fora da Assembleia da República”.

O que é que defende António Costa e Silva?

Assume-se como um homem que vem da esquerda, mas recusa intenções de ingressar no governo, assumindo apenas um contributo cívico. Desde que foi designado pelo primeiro-ministro para coordenar os trabalhos preparatórios de elaboração do Programa de Recuperação Económica e Social 2020-2030 que António Costa e Silva tem-se desdobrado em entrevistas.

Na primeira de todas, à RTP, disse ter escrito, “mais ou menos, o plano na cabeça” e que depois, em dois dias, o meteu no papel. Nesse documento ficaram desde logo estabelecidos alguns dos eixos estratégicos" que Costa e Silva considera "muito importante discutir", entre os quais a reindustrialização e assentes na ideia de que "o país tem recursos e deve apostar nesses recursos".

O plano de Costa e Silva assenta em duas fases: numa primeira , a curto prazo, proteger o emprego e salvar a economia, numa segunda, a médio prazo, transformar a economia, modernizando-a e tornando-a mais sustentável.

O homem da confiança do primeiro-ministro quer "apostar nas infraestruturas físicas do país, modernizá-las todas", "qualificar a rede viária", "construir um hub portuário", rever a gestão das redes energéticas e do ambiente, assim como a distribuição de água.

No que toca ao segundo eixo abordado, Costa e Silva abordou as infraestruturas digitais. O gestor quer "acelerar a transição digital", "estender a fibra ótica a todo o território nacional" e "aumentar as competências digitais" da população, sobretudo na Função Pública, e incluindo ainda "um grande programa para as pequenas e médias empresas".

O terceiro eixo passa pelo reforço e qualificação do Serviço Nacional de Saúde, passando por "apostar em equipamentos, em recursos humanos e ver todo o sistema de assistência da saúde", que pode ser "potenciada".

O plano é para 10 anos e tem como primeiro objetivo "salvar a economia e proteger o emprego", através de "uma intervenção forte do Estado". "Esta crise mostrou que o papel do Estado tem de ser revalorizado", referiu e aconselhou de imediato ter "mais Estado na Economia", adiantando que este "é o último protetor de todo o tipo de ameaças".

"Não podemos deixar que empresas que podem ser rentáveis se afundem e entrem em estado de coma", referiu.

À TSF disse que o que pretende é uma transição e não uma revolução e voltou a abordar a questão que ficou a pairar na esfera de discussão pública: a dimensão do papel do Estado na economia e no mercado. "Os mercados são máquinas fantásticas de inovação, competição e criação de novas ideias, mas isto tem de ser combinado com o Estado, que tem de ser regulador, e nesta fase interventor no sentido de capitalizar as empresas".

António Costa Silva destacou também o papel que o povo português pode ter para a superação da crise, um povo "absolutamente extraordinário a responder às situações de anormalidade", que se "reinventa, improvisa, é capaz de ser criativo" e que depois, quando regressamos à normalidade, é "medíocre". "É isso que nos perde", diz, pedindo que a atitude perante a adversidade seja também transportada para o pós-crise.