Nos intervalos publicitários das televisões é frequente encontrar anúncios com soluções para problemas auditivos. Mostram famílias reunidas em atividades do dia a dia melhoradas pela possibilidade de escutar bem o que os outros dizem. Estas soluções, no entanto, não são todas iguais: se algumas são dispositivos médicos que respondem a necessidades específicas, outras são amplificadores que aumentam o som em geral.
A diferença entre um aparelho e um amplificador pode passar despercebida, mas os primeiros são dispositivos médicos, que obedecem a regras estritas e apenas devem ser comprados mediante a recomendação de um profissional de saúde que olhe para as características e problemas individuais de cada paciente. Os amplificadores não são dispositivos médicos e não reúnem consenso entre os profissionais de saúde, porque ao elevarem todos os sons de forma igual podem criar mais problemas do que aqueles que resolvem — afinal, se não usamos todos óculos com a mesma graduação, porque haveríamos de usar nos ouvidos amplificadores cuja calibração não distingue sons?
Além disso, quando se avança para a compra de um aparelho auditivo, por recomendação de um profissional de saúde, há cuidados a ter: é preciso estar consciente das diferenças entre os equipamentos, dos direitos que se tem e do tipo de acompanhamento de que se deve ser alvo — até porque muitas vezes, quando a primeira adaptação ao aparelho corre mal, as pessoas não voltam a tentar, o que, em última instância, coloca a saúde e a qualidade de vida em causa.
Mas, afinal, como está a saúde auditiva em Portugal? Serão mesmo necessários estes equipamentos? Devem ser comprados pela televisão? O SAPO24 escutou juristas e médicos para perceber como estão os ouvidos (e os aparelhos auditivos) dos portugueses.
Índice:
Muitos ignoram que ouvem mal. Como se chega aqui?
Vários tipos de aparelhos, alguns problemas — e a possibilidade de uma má experiência
Quais os conselhos para uma boa saúde auditiva?
Os anúncios de aparelhos auditivos. Quais os perigos e como reclamar?
A publicidade a este tipo de dispositivos é legal?
Muitos ignoram que ouvem mal. Como se chega aqui?
Em Portugal, "um terço das pessoas acima dos 65 anos tem perda de audição de grau moderado, que é um grau que já devia ser reabilitado e, se formos a pensar nas idades acima dos 75, isso já passa para acima dos 50%", explica ao SAPO24 Joana Vaz de Castro, otorrinolaringologista no Hospital Soerad, em Torres Vedras.
Segundo dados do INSA, em 2015, 1,6 milhões de portugueses (23,7%) disseram ter dificuldades auditivas. Destes, 41,7% faziam parte do grupo etário 65-74 anos. Em 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimava que mais de 5% da população mundial — cerca de 466 milhões de pessoas —, tivesse deficiência auditiva incapacitante.
Contudo, há também muitos casos por identificar, principalmente porque "as pessoas têm muita dificuldade em aceitar que ouvem mal", diz a médica. E as contas a nível mundial não são animadoras: estima-se que em 2050 mais de 900 milhões de pessoas – uma em cada dez – sofrerão com perda auditiva, a menos que sejam tomadas medidas para prevenção e tratamento.
"É frequente as pessoas virem [a uma consulta de otorrino] indicadas por familiares e não valorizarem nada; os que valorizam mais são mesmo os mais novos, por razões profissionais, porque as pessoas com mais idade vêm mais porque a família chateia", diz Joana Vaz de Castro.
As justificações para esta recusa podem ser várias. Influencia "o custo, dependendo da pessoa, o estigma, já que as pessoas não conseguem ver aparelhos auditivos como se fossem óculos. Também a negação, a não compreensão do problema, a não aceitação do défice", enumera.
Por isso, muitas vezes o diagnóstico é tardio — e isso traz riscos. "É estimado pela OMS que as pessoas demoram cerca de sete anos para colocarem um aparelho auditivo. Se houver uma perda de audição, esta aumenta muito a probabilidade de demência e de perda auditiva total, especialmente em quem tem mais idade", aponta.
Mas há outras consequências: "uma pessoa isola-se mais porque não ouve, não consegue participar [em conversas], tem vergonha, responde outra coisa, há menos estimulação, distrai-se mais e, portanto, há menos uso cognitivo. E quanto menos uso cerebral, mais envelhecimento neural", explica Joana Vaz de Castro.
Com a pandemia, a saúde auditiva também foi afetada. Afinal, as máscaras tapam a boca e o nariz, o que leva a abafar a voz — o que, por outro lado, pode ser suficiente para "as pessoas terem consciência da perda auditiva".
"A máscara consegue filtrar cerca de 12 decibéis do volume, as pessoas ficam com sons muito mais abafados. Por outro lado, a capacidade para ver a expressão da cara, ler os lábios, perceber o contexto, deixa de existir. E na altura em que foi tudo mais por videochamada, [havia] a própria distorção dos sons do microfone... tudo isso altera a audição", diz a médica, acrescentando que "doentes que andaram a recusar um aparelho auditivo durante meses e anos ficaram motivados para tal nos primeiros seis meses [da pandemia]", já que estavam inibidos de recorrer a outras formas de comunicação.
Também há quem não seja tão resistente. "Há muita gente que vai à procura de uma solução: os mais novos gostavam que fosse mais cirúrgica, no sentido de ficarem resolvidos; e há pessoas que querem a outra opção e fugir do cirúrgico. Às vezes é preciso que alguém explique as diferenças, as vantagens e as desvantagens de quando existem estas hipóteses".
José Marques dos Santos, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Otorrinolaringologia e Cirurgia da Cabeça e Pescoço (SPORL-CCP), aponta ao SAPO24 que "cada vez mais a nossa população valoriza a audição como um dos sentidos cruciais à vida" — o que pode levar à maior procura de aparelhos.
"A procura de cuidados especializados por suspeita de perda auditiva tem aumentado ao longo dos anos. É também maior a prevenção da surdez por ruído e das outras patologias, comparativamente ao passado", começa por dizer. Todavia, há sempre a possibilidade de um contratempo: "por vezes, os portadores de surdez deixam de lado a saúde auditiva por falta de poder de compra para adquirirem os referidos aparelhos auditivos e ainda há casos de estigma em usar os mesmos".
Mas também é preciso ter atenção ao que se vai usar.
Vários tipos de aparelhos, alguns problemas — e a possibilidade de uma má experiência
Quando a solução para a perda de audição é um aparelho, é preciso ter várias coisas em consideração. No fundo, explica a otorrinolaringologista Joana Vaz de Castro, o mais importante não é a compra, não é a tecnologia — embora isto seja importante —, mas o seguimento do paciente. "Uma boa casa de aparelhos deveria acompanhar as pessoas todas as semanas no primeiro mês e depois irem alargando este período de acompanhamento conforme a necessidade, durante os primeiros três meses", nota.
"Uma boa casa de aparelhos deveria acompanhar as pessoas todas as semanas no primeiro mês"Joana Vaz de Castro
"Na maioria dos locais, a pessoa consegue experimentar o aparelho gratuitamente durante esse período e se não estiver bem aparelhada pode desistir e eles devolvem o dinheiro. Isso não acontece, por exemplo, com os óculos. Mas a reabilitação auditiva é muito complexa, envolve muita motivação, muita participação do audiologista, muitas idas, substituição de pilhas, verificar se o ouvido está bem ou se tem uma infeção. Isso são os custos que estão por trás do aparelho", explica.
Mas vejamos os vários tipos de aparelhos que existem. Para simplificar: "existem os que vão dentro do ouvido e os que vão atrás da orelha".
"Os aparelhos retro-auriculares, que são os que acabamos por ver mais frequentemente, são aqueles atrás da orelha e que hoje em dia tornam tudo um bocadinho mais complexo, porque a orelha já leva os óculos e, por vezes, a máscara", aponta Joana Vaz de Castro.
"Estes aparelhos são os maiores e têm uma pilha maior, duram mais tempo e têm frequentemente um recetor e o amplificador em zonas diferentes, pelo que há menos alterações do feedback e conseguem ter uma potência maior e uma duração melhor", explica.
Por outro lado, existem "os aparelhos intra-auriculares, que são dentro do ouvido — dentro da concha ou mesmo no canal [do ouvido]".
No caso dos "aparelhos invisíveis, que são completamente dentro do canal e são mesmo muito pequenos", geralmente são para "pessoas mais novas que têm destreza". E "para isso é preciso um canal auditivo saudável. Não dá para ter infeções", alerta, pois "as pessoas que têm infeções do ouvido, por eczema ou por uma otite crónica, vão agravar [o problema]", diz a médica.
Vamos a casos práticos. "Por exemplo, pessoas que têm peles a descamar nunca deveriam pôr um intra-auricular, porque vai criar uma humidade e um ambiente que é muito propício para infeção. As infeções, especialmente nas pessoas com mais idade, podem ser mesmo muito difíceis. Na maioria das vezes resolvem-se com antibiótico ou antifúngico tópico (em gotas e/ou pomada) e evicção de água no ouvido, mas em pessoas com a imunidade comprometida, diabetes ou idade avançada pode ser necessário antibiótico e/ou antifúngico oral (ou até endovenosa)", alerta a médica.
"Nas pessoas referidas anteriormente, infeções não controladas podem progredir e causar destruição do ouvido médio, culminando em casos raros até em meningite, através da pele em otite externa maligna ou até atingir os nervos e, por exemplo, causar uma paralisia facial periférica", explica ainda.
"Muitas vezes só temos uma oportunidade. Para algumas pessoas, se correr mal, o perigo é nunca mais se conseguirem adaptar"Joana Vaz de Castro
Além destes dois tipos de aparelhos, existem ainda "aparelhos que até estão integrados nos óculos, nas hastes, mas isto é uma moda super antiga e fazia vibração". Contudo, são "também usadas umas bandoletes, como o intermédio para um aparelho osteointegrado, uma espécie de parafuso que se coloca com cirurgia, como se fosse um implante dentário, atrás da orelha, que se liga a um recetor e faz a vibração e transmissão".
A otorrinolaringologista alerta ainda que uma má experiência pode fazer com que a pessoa nunca mais se adapte a usar um aparelho. "Muitas vezes só temos uma oportunidade. Para algumas pessoas, se correr mal, o perigo é nunca mais conseguirem adaptar-se", refere.
E aqui o papel das marcas que comercializam este tipo de dispositivos e serviços é fundamental. "Se a pessoa gastou muito dinheiro" e, por motivo de falência do local, por exemplo, fica sem assistência médica, "têm o aparelho, mas não têm ninguém para ajudar e afinar, ou tem um acompanhamento errado, isso pode levar à rejeição", explica.
"Com a esperança média de vida em Portugal tão longa e as pessoas a perderem a audição entre os 55 e os 65, há o risco de passar 30 ou 40 anos a não ouvir. É muito tempo e, às vezes, gasta-se dinheiro e depois não funciona", reconhece a médica.
Desta forma, em primeiro lugar, é importante ir a "uma consulta de otorrino, para fazer um exame auditivo, e se houver indicação para pôr aparelho, ouvir o conselho do médico". "Já tive casos em que as pessoas tinham só cera e foram emparelhadas", recorda.
Assim, se a recomendação médica for para usar aparelho, a melhor opção é "escolher uma casa que preveja um período de adaptação, em que a pessoa consiga devolver [o aparelho] se não se adaptar ou se não estiver preparada, porque a motivação é fundamental" neste processo.
"A eficácia dos ditos amplificadores não está comprovada, não são considerados um dispositivo médico"José Marques dos Santos
"A nível económico, os aparelhos são um bocadinho caros, por volta dos 1.500 euros, mas normalmente há muitos planos de comparticipação e créditos. Mas é bom que a pessoa compre para depois usar. Se ao final de três meses não usou, não vai usar de todo, pelo menos não naquela altura. Talvez depois, se houver alguma mudança de trabalho ou mudança no agregado familiar, já pondere", remata.
Já para o vice-presidente da SPORL-CCP, é importante perceber que "não podemos confundir toda a panóplia de dispositivos e equipamentos que se publicitam".
"Os aparelhos auditivos ou próteses acústicas são um dispositivo médico, com comprovada eficácia científica e, como tal, aprovadas pelo seu regulador que é o INFARMED. São dispositivos adaptados a cada tipo diferente de surdez, aumentando apenas as frequências sonoras nas quais a pessoa tem deficiência", começa por apontar.
Por sua vez, "os ditos amplificadores aumentam a totalidade dos sons por igual. A sua eficácia não está comprovada, não são considerados um dispositivo médico e como tal caem fora da regulamentação do INFARMED", refere.
"É como vender óculos, todos com a mesma graduação das lentes, sem atender ao caso particular de cada paciente"José Marques dos Santos
Estabelecida a diferença, o médico refere que "a utilização dos aparelhos auditivos convencionais é segura, desde que prescrita por um otorrinolaringologista que avalia a necessidade e utilidade no uso da dita prótese". Todavia, os amplificadores, "não são dispositivos médicos, não são recomendados pelos profissionais de saúde e podem ser prejudiciais pelo aumento das frequências sonoras que estão normais e provocarem uma lesão por ruído".
"Se fizermos a analogia dos amplificadores com o uso de óculos por défice na visão, eu diria que é como vender óculos, todos com a mesma graduação das lentes, sem atender ao caso particular de cada paciente", exemplifica.
"Não se trata de um dispositivo médico e como tal não nos merecem confiança"José Marques dos Santos
Para José Marques dos Santos, é importante estabelecer que "os aparelhos auditivos são dispositivos médicos", sendo "equipamentos totalmente credíveis" — mas "devem ser adquiridos só e apenas após avaliação médica especializada e mediante prescrição", já que "assim evitaríamos indicação e compra desnecessária ou incorreta".
Por sua vez, "quanto aos ditos amplificadores, não se trata de um dispositivo médico e como tal não nos merecem confiança", especifica.
Quais os conselhos para uma boa saúde auditiva?
Em primeiro lugar, estar atento aos sinais: "se estiver em esforço, se tiver de pedir para que algo seja repetido várias vezes ou se deixar de participar [nas conversas], pode ter mesmo uma perda de audição", diz Joana Vaz de Castro.
"Se as pessoas à sua volta estiverem a dizer que está surdo, é procurar o mais cedo possível uma reabilitação. Até pessoas mais novas, que ainda têm muita destreza, podem usar aqueles aparelhos que são invisíveis, dentro do canal, porque têm um ouvido mais saudável. Se [o exame médico] não acusar nada, pode ser só distração. Às vezes não estamos a ouvir e estamos simplesmente muito stressados e a fazer multitasking, mas é bom identificar isso", aponta a otorrinolaringologista.
Também o vice-presidente da SPORL-CCP deixa algumas "medidas preventivas" que considera "fundamentais" quanto à saúde auditiva:
- Rastreio auditivo dos recém-nascidos;
- Implementação do Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU) obrigatório nos primeiros 30 dias de vida, preferencialmente, durante o internamento pós-parto;
- Despiste da infeção à nascença pelo Citamegalovírus (CMV) que pode provocar surdez irreversível desde o nascimento;
- Atenção ao atraso na linguagem, à aprendizagem escolar e às otites, nas crianças;
- Evitar ambientes ruidosos seja no trabalho, seja em espaços com música, com volume de som muito alto;
- Atenção e avaliação das dificuldades de audição no idoso, cuja resolução ajuda a integração familiar e social e contribui para evitar a demência;
- Na suspeita de surdez, consultar o médico otorrinolaringologista.
A OMS acrescenta ainda que "a deteção precoce da perda auditiva é crucial para a sua reabilitação eficaz". Para isso, de forma a "assegurar que a perda de audição seja notada o mais cedo possível, todas as pessoas devem verificar a sua audição de vez em quando, especialmente as que correm um risco mais elevado de perda", como é o caso de quem ouve frequentemente música alta, trabalha em lugares ruidosos, usa medicamentos que são prejudiciais à audição ou todos os que têm mais de 60 anos de idade.
Os anúncios de aparelhos auditivos. Quais os perigos e como reclamar?
Uma vez que há diferenças entre aparelhos auditivos e amplificadores, é necessário olhar para a questão da regulamentação, nomeadamente no que toca aos anúncios a este tipo de produtos. Para Maria Antunes, jurista da DECO, os anúncios de aparelhos auditivos que surgem na televisão obrigam a considerar a "vulnerabilidade do público alvo", as "questões de saúde" e, ainda, as "práticas comerciais desleais".
"O público alvo são pessoas idosas, que vivem em locais mais isolados e que adquirem aparelhos auditivos sem compreender o que na verdade estão a fazer, a contratar", começa por explicar ao SAPO24. "Além disso, os aparelhos de valores elevados muitas vezes não correspondem às características associadas e, por outro lado, não significa sequer que exista uma indicação médica de utilização dos mesmos. Pelo contrário, muitas vezes até são desaconselhados a utilizar este tipo de aparelhos pelos médicos", enumera.
Segundo a jurista, há ainda outro perigo: "Atendendo à imensidão de publicidade que existe, muitas vezes as pessoas associam o que ouvem aos slogans do SNS, porque são parecidos — e apenas se trata de publicidade para induzir em erro ou [fazer] ações de venda".
Por todos estes motivos, as reclamações que a DECO recebe são frequentes — "não existe uma semana em que não chegue uma situação deste tipo de vendas" —, essencialmente no que toca a três questões.
"Muitos consumidores julgam que ao pagar uma prestação estão a pagar a totalidade do aparelho, quando na realidade não estão"Maria Antunes
Em primeiro lugar, as que são relativas a situações de garantia. “Existem consumidores que adquirem este tipo de aparelhos porque pretendem mesmo adquirir e, muitas vezes, até por indicação médica, mas depois dos dois anos de garantia após a compra existe uma falta de conformidade no produto e são solicitados montantes sem qualquer má utilização por parte do consumidor”, diz Maria Antunes.
Depois, surgem casos de "incumprimento contratual", em que "a entidade não entrega em determinado prazo o aparelho e o consumidor deixa de ter interesse na aquisição e procura comprar noutra entidade".
A acrescer a isto, "temos os contratos de crédito associados, porque muitos consumidores julgam que ao pagar uma prestação estão a pagar a totalidade do aparelho, quando na realidade não estão", aponta.
Existem, todavia, soluções que o consumidor deve conhecer. "Se estiver dentro do prazo dos 14 dias para dissolver o contrato sem qualquer custo e sem qualquer tipo de necessidade de indicar o motivo, pode efetivamente pedir o reembolso dos montantes pagos e o prestador de serviço deve reembolsar o consumidor", explica.
E mais: mesmo nos "contratos que têm um crédito associado, em caso de cancelamento do contrato principal no prazo de 14 dias, também o contrato de crédito associado se considera automaticamente resolvido".
Na compra e venda de aparelhos e amplificadores, há várias entidades responsáveis pela fiscalização. Se se trata de um dispositivo médico, a vigilância cabe ao INFARMED. Caso contrário, a ASAE e a Direção-Geral do Consumidor são as autoridades responsáveis.
Aliás, questionada pelo SAPO24 sobre a fiscalização dos anúncios a este tipo de produtos, nomeadamente aos que não se classificam como dispositivos médicos, fonte do INFARMED remeteu eventuais esclarecimentos para a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) ou para a Direção-Geral do Consumidor.
Já contactada pelo SAPO24, a ASAE começou por explicar que, tal como referido anteriormente, “poderemos estar na presença de aparelhos auditivos cuja fiscalização enquanto dispositivo médico cabe ao INFARMED” ou de “amplificadores de som, que são equipamentos eletrónicos que ampliam o som na sua totalidade, independentemente das frequências que estejam em perda auditiva e que se encontram a ser comercializados essencialmente através de contratos celebrados à distância”.
"No que se refere à atividade de venda destes equipamentos eletrónicos, estes podem estar disponibilizados através de anúncios publicitários em jornais, televisão entre outros, ou ainda em lojas de comércio fixo, pex, parafarmácias, lojas de comércio", foi especificado.
A ASAE adianta ainda que, "ao longo dos últimos 5 anos", foram recebidas "cerca de 243 denúncias (incluindo reclamações do livro físico e eletrónico)", referindo essencialmente três questões:
- "práticas comerciais desleais, principalmente vendas forçadas, pois sob o pretexto de fazerem um rastreio auditivo gratuito, algumas empresas convencem consumidores, essencialmente vulneráveis, de idade avançada ou com cultura escassa, a adquirirem aparelhos auditivos de elevado valor, mediante a assinatura de um contrato";
- "usurpação de funções na medida em que se identificam como profissionais ligados à saúde quando na realidade não possuem habilitação para tal";
- "incumprimento das regras relativas aos contratos à distância".
Além disso, "até ao momento e decorrente de ações de fiscalização relacionadas com esta temática e da competência desta Autoridade, foram instaurados 5 processos de contraordenação no âmbito das práticas comerciais desleais e incumprimento de contrato celebrado à distância, que decorrem os seus trâmites processuais", diz a ASAE.
Já a Direção-Geral do Consumidor (DGC), explica, por escrito, que, apesar de lhe competir “tratar as reclamações que em matéria de publicidade lhe sejam submetidas por consumidores ou operadores económicos”, esta competência é “genérica (e residual), estando arredada da sua atuação matérias técnicas como sejam as relativas a medicamentos, às que caiam no âmbito de atuação dos reguladores do mercado de valores mobiliários, seguros e fundos de pensões ou ainda a saúde, atento o disposto no regime aplicável às práticas de publicidade em saúde nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 238/2015 de 14 de outubro, apenas para dar alguns exemplos.”
Assim, a DGC clarifica ao SAPO24 que “a competência para fiscalizar poderá cair no INFARMED, na Entidade Reguladora da Saúde, ou na DGC”, dependendo de alguns fatores. Assim, o INFARMED é a entidade responsável pela fiscalização e monitorização da publicidade de dispositivos médicos e à Entidade Reguladora da Saúde cabe fiscalizar as práticas de publicidade em saúde.
A DGC concretiza, todavia, as práticas de publicidade em saúde proibidas:
- as que “aconselhem ou incitem à aquisição de atos e serviços de saúde, sem atender aos requisitos da necessidade, às reais propriedades dos mesmos ou a necessidade de avaliação ou de diagnóstico individual prévio";
- as que "limitem, ou sejam suscetíveis de limitar, significativamente a liberdade de escolha ou o comportamento do utente em relação a um ato ou serviço, através de assédio, coação ou influência indevida e, assim, conduzam, ou sejam suscetíveis de conduzir, o utente a tomar uma decisão de transação que, sem estas práticas publicitárias, não teria tomado;
- as que "sejam suscetíveis de induzir o utente ao consumo desnecessário, nocivo ou sem diagnóstico ou avaliação prévios por profissional habilitado; o aproveitamento consciente pelo profissional de qualquer infortúnio ou circunstância específica que pela sua gravidade prejudique a capacidade de decisão do utente, com o objetivo de influenciar a decisão deste em relação ao bem ou serviço.”
No final de 2020, no âmbito de um processo de contraordenação da DGC, uma das empresas que faz publicidade a equipamentos para audição na televisão foi condenada por violação ao disposto no Código da Publicidade. Todavia, a DGC não dá acesso à decisão de condenação porque “tal poderia equivaler à sanção acessória de dar publicidade da punição.” Ou seja, ao revelarem a empresa em causa estariam a sancioná-la com uma medida que não foi decretada, uma vez que "dar publicidade" é uma das penas previstas, tal como seria o pagamento de uma coima ou a prisão.
Ainda assim, entre 2021 e 2022, a DGC recebeu apenas uma reclamação de um consumidor sobre anúncios de diversas empresas a aparelhos auditivos no jornal ‘Correio da Manhã’. “Solicitadas ao jornal em apreço as mensagens objeto de reclamação, e após análise das mesmas, concluiu a Direção-Geral do Consumidor estar-se perante dispositivos abrangidos pelo Regulamento dos Dispositivos Médicos (UE) 2017/745 (RDM), matéria que cumpre ao INFARMED fiscalizar, tendo-lhe sido remetida a referida reclamação”, explica em resposta escrita ao SAPO24.
A publicidade a este tipo de dispositivos é legal?
Apesar das queixas que a DECO recebe, "a publicidade inserida nos programas, em todos os canais generalistas, não deixa de ser legal", diz a jurista Maria Antunes. "Temos à nossa frente uma campanha e depois temos a opção de contratar ou não. O que aconselhamos sempre é: antes de assinar, antes de contratar, de fazer qualquer tipo de contrato de crédito associado, de colocar os aparelhos, informe-se, peça auxílio para depois não cair neste tipo de situações", diz.
Mas isso não escusa as empresas do dever de transparência para com o consumidor. Ao SAPO24, a Direção-Geral da Saúde (DGS) frisa que "a comunicação é fundamental para a promoção da saúde, contribuindo para o aumento do nível de literacia em saúde da população". A mensagem deve ser "clara e simples, adequada nos meios de transmissão para a população alvo que se pretende alcançar, contribuindo para a ativação de comportamentos de prevenção da doença e de proteção e promoção da saúde".
Afinal, se a população tiver "ferramentas para avaliar e tomar decisões", isso irá "repercutir[-se] nos cuidados de saúde, prevenção de doenças e promoção da saúde, de forma a manter ou melhorar a sua qualidade de vida". O caso dos aparelhos auditivos não é exceção.
No caso dos aparelhos que são considerados dispositivos médicos — e recorde-se que não é o caso de todos os aparelhos publicitados —, há regras específicas a considerar.
Antes de mais, “note-se que apenas é permitida a publicidade de dispositivos médicos que tenham sido objeto de uma avaliação da conformidade e de notificação à autoridade competente”, neste caso, o INFARMED, aponta Alexandra Caetano Domingues, assistente convidada na Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP) e advogada na Abreu Advogados.
Citando o Regime Aplicável aos Dispositivos Médicos e Respetivos Acessórios (RADM, decreto-lei n.º 145/2009, de 17 de junho), explica ao SAPO24 que o legislador proíbe a publicidade junto do público em geral de “dispositivos médicos, sempre que a sua utilização careça da mediação e decisão de um profissional de saúde, designadamente os dispositivos implantáveis, os dispositivos invasivos de longo prazo, os dispositivos que incluam como parte integrante um medicamento ou um derivado estável do sangue ou do plasma humanos e os dispositivos fabricados mediante a utilização de células e tecidos de origem animal”, enumera.
Quando o aparelho se enquadra nos tipos de dispositivos que é possível publicitar, é necessário que os anúncios contenham “elementos que estejam de acordo com as informações constantes das instruções de utilização e da documentação técnica do dispositivo médico”; promovam “a utilização segura dos dispositivos médicos, fazendo-o de forma objetiva e sem exagerar as suas propriedades”; e essa publicidade “não pode ser enganosa” (art.º 43.º).
“Para além disso, a publicidade dos dispositivos médicos junto do público tem de ser inequivocamente identificada enquanto tal, indicando expressamente que se trata de um dispositivo médico”, acrescenta a assistente da FDUP, indicando que estes anúncios devem incluir o nome do dispositivo médico ou a marca comercial; informações indispensáveis ao uso seguro do dispositivo médico, incluindo a finalidade e precauções especiais; e o aconselhamento ao utente para ler cuidadosamente a rotulagem e as instruções de utilização.
"Apenas é permitida a publicidade de dispositivos médicos que tenham sido objeto de uma avaliação da conformidade e de notificação à autoridade competente" Alexandra Caetano Domingues
Do mesmo modo, existem também elementos que a legislação proíbe neste tipo de publicidade, como, por exemplo, os que levem “a concluir que a consulta médica ou a intervenção cirúrgica é desnecessária, em particular sugerindo um diagnóstico ou preconizando o tratamento por correspondência; ou sugira que o efeito do dispositivo médico é garantido, sem reações adversas ou efeitos secundários, com resultados superiores ou equivalentes aos de outro tratamento com dispositivo médico ou medicamento; entre outros”.
A legislação prevê ainda que, no caso dos dispositivos médicos, não haja médicos ou outros profissionais de saúde a participar nos anúncios: “o legislador expressamente previu que esta não pode fazer referência a uma recomendação emanada por cientistas, profissionais de saúde ou outra pessoa que, pela sua celebridade, possa incitar ao consumo de dispositivos médicos (art.º 46.º, n.º 3, alínea f) do RADM)”, diz Alexandra Caetano Domingues.
Na publicidade a dispositivos médicos, “a mensagem publicitária, para ser lícita, apenas poderia contar com o desempenho de alguém que não fosse visto, aos olhos do consumidor, como um verdadeiro profissional de saúde ou conotado com essa área do conhecimento especializado”, decidiu a Comissão de Apelo da Auto Regulação Publicitária no Processo n.º 6J/2019, citada pela advogada.
No caso dos aparelhos auditivos que não são considerados dispositivos médicos, mas que alegam ajudar a resolver problemas auditivos, cabe-lhes o cumprimento do previsto no Código da Publicidade. Assim, "qualquer anúncio publicitário deve reger-se pelos princípios da licitude, identificabilidade, veracidade e respeito pelos direitos do consumidor" (art. 6.º).
Posto isto, na hora de tomar uma decisão quanto à escolha de um aparelho auditivo, o consumidor deve considerar, em primeiro lugar, segundos os especialistas, se há indicação médica para tal, se está a adquirir um dispositivo médico ou um amplificador auditivo, se terá acompanhamento médico na fase de adaptação ao novo aparelho e quais as condições financeiras associadas à aquisição do mesmo. Afinal, tudo conta na hora de se ouvir melhor o mundo.
Trabalho com colaboração na pesquisa de Pedro Soares Botelho
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