“Eu comecei no negócio das palestras há 40 anos. E ia falar com empresas sobre motivação, sobre como ultrapassar obstáculos na vida. E debaixo do fato levava soutien e cuecas. Cá dentro sentia que estava a enganar quem me ouvia, (…) sentia-me uma fraude porque não lhes podia contar a história toda. (….) Hoje eu posso estar em frente a um público, de forma honesta, e desta vez eu tenho mesmo o meu soutien e cuecas vestidas. Sem mais segredos, porque essa é a única maneira de viver a vida”.
Dois minutos e Caitlyn Jenner, um dos rostos mais aguardados desta edição da Web Summit, recebia uma ovação daqueles que fizeram questão de estar na Altice Arena para ouvir de viva voz como é nascer e viver num corpo estranho.
“Do LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trangénero] o ’T’ é, de longe, o mais mal compreendido”, salientou Jenner. “Deixem-me fazer uma pergunta muito simples às senhoras na sala, uma pergunta que se calhar nunca vos fizeram: a partir de que momento é que perceberam que eram meninas?”
A questão terá apanhado vários de surpresa, e Jenner continuou: “Para muitas isso foi tido como garantido. Mas para uma pessoa trans, esse pensamento atravessa a sua mente 24 horas por dia, 365 dias por ano”, e salientou: “as questões trans não são sobre preferências sexuais, tem tudo a ver com identidade”.
A ativista pelos direitos trans, atleta olímpica, cujo processo de transição teve lugar em 2015 diz não encontrar uma razão que explique a transexualidade, comparando-a a algo tão natural como ser “canhoto”.
“Eu sou canhota. Porque é que sou canhota? Não faço ideia. Mas e se a sociedade te obrigasse a escrever com a mão direita? As letras não são tão bonitas, a escrita não flui, porque não é confortável fazê-lo desta forma. Eventualmente, em algum momento da tua vida pensas: eu não quero saber o que julga a sociedade, eu sou canhota. E, de repente, começas a escrever com a mão esquerda e expressas-te melhor. Porque é quem tu és”.
Perante uma audiência atenta, Jenner fez várias confissões: “os anos 80 foram duros. Tive seis anos isolada em minha casa, não fui bom pai, já tinha quatro filhos, não era boa pessoa, estava a tomar hormonas, tinha terapia todas as semanas. Eu estava numa luta, e a fazer tudo o que estava ao meu alcance para me sentir melhor comigo mesma”.
Em 1999, com 39 anos, ainda como William Bruce Jenner, decidiu dedicar-se à família — “e tenho a dizer que fiz um bom trabalho, estou muito orgulhosa dos meus filhos” — mas as suas questões “nunca desapareceram verdadeiramente”. A separação da esposa Kris Jenner acabou por acontecer em 2013. “Voltei a Malibu e pensei: será que vou ficar aqui como naquele seis anos, apodrecer aqui?”
Não foi o que aconteceu. Jenner iniciou uma nova etapa da sua vida. Decidiu avançar com a transição de género e hoje é um dos rostos pelos direitos das pessoas trans. Mas deixa uma nota: “Eu não sou o porta-voz da comunidade trans. Eu sou o porta-voz da minha própria história, porque nesta comunidade todos temos uma história diferente”. Todavia, reconhece, dispõe de uma “plataforma” única para integrar a discussão sobre o tema e mudar mentalidades, e é isso que está decidida em fazer.
E na comunidade trans há várias questões prementes, salienta. “Nos EUA, uma mulher trans negra é assassinada a cada duas semanas. A taxa de sem-abrigo está fora do controlo. 41% dos jovens trans tentam suicídio antes dos 21 anos. A taxa de suicídio entre pessoas trans é nove vezes maior do que na população geral. Temos problemas graves na indústria do sexo, com HIV”, enumerou. “Estou a fazer tudo o que está ao meu alcance para arrecadar dinheiro para entregar a organizações porque temos muitas pessoas na nossa comunidade que foram marginalizadas. É muito difícil”, concluiu.
Antes de se despedir do palco da Web Summit, Jenner recordou as quatro “chaves” do sucesso que costumava referir em conferências motivacionais, enquanto Bruce Jenner. “Ainda funcionam e são: aposta, engana, 'mente' e rouba”.
Espanto na plateia e gargalhadas. “Deixem-me explicar. Faz a tua melhor aposta na vida. Corre riscos, a vida tem de ser uma grande aventura, e é. Engana aqueles que te fazem sentir menos do que aquilo que és, rodeia-te de pessoas positivas, pessoas que te querem bem. Lie [ um trocadilho da palavra inglesa lie - de mentir - com a palavra lie down - de descansar ou deitar] nos braços daqueles que gostam de ti. E, finalmente, rouba cada momento de felicidade, vive cada dia como se fosse o último, porque nunca saberemos quando esse dia será.
A cimeira tecnológica, de inovação e de empreendedorismo que nasceu em 2010 na Irlanda e se mudou em 2016 para Lisboa, teve lugar de 6 a 9 de novembro na Altice Arena (antigo Meo Arena) e na Feira Internacional de Lisboa (FIL). Por aqui passaram 59.115 pessoas de 170 países, entre os quais mais de 1.200 oradores, duas mil 'startups', 1.400 investidores e 2.500 jornalistas.
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