"Às vezes pergunto-me quando é que chegamos ao fundo", revela Michelle Obama em "Becoming", o seu novo livro de memórias, publicado esta terça-feira. Numa referência ao mandato de Donald Trump, a ex-primeira dama revela que fica "com o estômago às voltas" ao ser confrontada com as notícias que surgem e admite ter "pavor de Trump", que considera estar a "desfazer agressivamente o legado" do seu marido.

Alguns excertos do livro foram divulgados pelo The Guardian, que teve acesso à sua pré-publicação.

Eleições de 2016: Quando Trump subiu ao poder

O casal Michelle e Barack Obama passaram a noite eleitoral no cinema da Casa Branca, em Washington. "Quando o filme terminou e as luzes se acenderam, o telemóvel do Barack tocou. Eu vi-o a olhar para ele [telemóvel] e depois voltou a olhar, franzindo a testa levemente, e disse: 'Os resultados na Flórida parecem meio estranhos'", relata a ex-primeira dama.

“Não havia alarme na sua voz, mas uma minúscula 'semente' de consciência, como uma brasa que começou a brilhar de repente". Michelle, citada pela publicação inglesa, conta que o telemóvel tocou novamente e admite ter observado o rosto do marido sem saber "se estava pronta para ouvir aquilo que ele ia dizer". "O que quer que fosse, não parecia ser bom. Senti algo pesado no meu estômago e a minha ansiedade endureceu e apavorou-me", descreve.

Numa tentativa de "bloquear tudo" aquilo a que assistia, Michelle admite não ter conseguido permanecer em frente à televisão a ver as notícias e revela, no seu livro, que a confirmação surgiu enquanto dormia: Trump seria o sucessor de Barack Obama como presidente.

"Não queria saber o resultado durante o máximo de tempo possível", expõe a ex-primeira dama, que admite que as filhas do casal — Malia, que estava na Bolívia, e Sasha, que foi para a escola em Washington — ficaram “profundamente abaladas” com o resultado.

“Disse-lhe que as amava e que as coisas iriam ficar bem. Continuei a tentar dizer isso para mim mesma", acrescenta.

Rússia, as falhas da campanha de Hillary Clinton e o dia D

No livro, Michelle Obama abstém-se de fazer comentários sobre uma eventual interferência da Rússia nas eleições de 2016, sobre a a intervenção do diretor do FBI, James Comey, ou sobre se falhas na campanha provocaram ou não a derrota de Hillary Clinton.

“Não sou uma pessoa política, por isso não vou tentar oferecer uma tentativa de análise dos resultados. Não vou tentar especular sobre quem foi responsável ou o que é foi injusto", aponta.

Conhecidos os resultados, relata o The Guardian, Michelle Obama foi ao seu escritório, na Ala Este da Casa Branca, onde a sua equipa estava reunida. Michelle relembra que o staff era composto principalmente por mulheres e minorias, incluindo várias que vieram de famílias de imigrantes. "Muitas estavam em lágrimas, sentindo que todas as suas vulnerabilidades estavam agora expostas", escreve no livro hoje lançado.

Mas Michelle e Barack Obama estavam “determinados a fazer a transição com graça e dignidade", de forma a terminar, escreve no livro, "os nossos oito anos com os nossos ideais e a nossa compostura intactos”.

Michelle, a política e as mulheres

Norte-americanos querem uma candidatura à presidência de Michelle Obama. De acordo com uma sondagem recente da Axios/SurveyMonkey, se a ex-primeira dama se candidatasse à presidência dos Estados Unidos, Michelle teria uma vantagem de 13 pontos sobre Donald Trump — enquanto, por exemplo, a empresária e apresentadora Oprah Winfrey teria uma vantagem de 12 pontos perante Trump.

Mas no epílogo do seu livro —que contém relatos sobre a educação familiar e escolar e sobre tentativas de equilibrar uma carreira com a família — Michelle é clara: "Digo-o de forma direta: Não faço intenções de me candidatar um cargo, nunca. Nunca fui fã de política e a minha experiência nos últimos dez anos pouco fez para mudar isso".

Em "Becoming" a ex-primeira dama revela ainda desânimo perante as norte-americans que escolheram aquele que adjetiva de misógino (pessoa que sente ódio ou aversão por mulheres) como seu presidente, ao invés da candidata do partido democrata - Hillary Clinton.

“Só queria que mais pessoas tivessem votado. E irei sempre questionar-me sobre o que é que levou tantas mulheres a rejeitar uma candidata excecionalmente qualificada e, em vez disso, escolher um misógino como seu presidente. Mas agora temos de viver com o resultado", escreveu citada pelo jornal inglês.

Os imigrantes e as políticas de Trump

Nas suas memórias Michelle Obama mostra-se ainda preocupada com o futuro dos EUA, referindo que, desde que o marido saiu do cargo, tem tido "o estômago à volta" com as notícias que todos os dias são publicadas.

“Continuo a ficar desanimada pela maldade — a segregação tribal do vermelho e do azul [cores dos partidos Republicado e Democrata, respetivamente], esta ideia de que devemos escolher um lado e cumpri-lo, incapazes de ouvir e criar compromissos, ou, às vezes, até de sermos civilizados. Acredito que, no seu melhor, a política pode ser um meio para a mudança positiva, mas esta arena não é apenas para mim", conta.

“Tem sido difícil observar como políticas solidárias e cuidadosamente construídas têm sido revertidas, na medida em que temos alienado alguns dos nossos aliados mais próximos e deixado os membros vulneráveis ​​da nossa sociedade expostos e desumanizados. Às vezes pergunto-me quando é que chegamos ao fundo", acrescenta.

Michelle Obama fala ainda do lançamento da campanha de Donald Trump, em junho de 2015, na qual Trump classificou os imigrantes mexicanos como "criminosos" e "violadores", dando assim o tom para a sua campanha e presidência que se caracterizam, diz, pela divisão: “Percebi que ele estava orgulhoso por sugar a atenção dos media. Nada no comportamento dele sugeriu que ele estava a falar a sério sobre a vontade de querer governar".

Para promover a obra, Michelle Obama contratou uma empresa habituada a fazer as digressões de estrelas de rock e vai fazer um roteiro de conferências que passará por várias cidades dos EUA, com lugares pagos.

A tournée de promoção do seu livro de memórias começa esta terça-feira, em Chicago, onde milhares de pessoas a participam num evento moderado por Oprah Winfrey.

Dez por cento das receitas das conferências serão doados a instituições de caridade, escolas e grupos comunitários em cada cidade por onde Michelle passar.