MAIS DO QUE UMA INTRODUÇÃO, UMA INTROMISSÃO

Era o dia 8 de março de 2009.

Lembro‐me bem, porque estava um frio tão intenso que durante a noite tivemos de tirar os tapetes de lã do chão para
os pôr na cama juntamente com os cobertores. A localidade de Austis fica nas encostas da Barbagia, suficientemente distante das praias para nos obrigar a pensar numa faceta da ilha muito diferente da dos postais de verão; mas a minha ida destinava‐se a enfrentar outros preconceitos. A situação encontrava‐se entre as mais improváveis: a senhora Lucia Chessa, presidente da Câmara da localidade, convidara‐me para intervir num colóquio provocadoramente intitulado Mulheres e Igreja: é possível uma reparação?, tema sobre o qual deviam falar também Marinella Perroni e Cristina Simonelli, duas doutoras em Teologia, especializadas respetivamente em Bíblia e Patrística. Eu, que mais modestamente frequentara Ciências Religiosas, supunha ter sido convidada para aquela mesa sobretudo na qualidade de personalidade local.

A humildade ter‐me‐ia portanto desaconselhado a ir, mas o tema era tão cativante que eu não tinha sido capaz de resistir, e foi uma sorte, porque, não obstante o frio horrível, encontrámo‐nos perante uma sala cheia de mulheres ordeiramente à espera, algumas das quais, talvez por terem percebido mal a natureza do encontro, tinham o terço nas mãos, prontas para o usarem.

Na mesa dos conferencistas estava também o pároco, um jovem sacerdote que me parecia bastante alarmado com o facto de, com o pretexto do colóquio teológico, terem organizado nas suas barbas um encontro sobre um tema tão pouco conciliador. Calculo que a introdução da senhora presidente da Câmara — uma extensa e minuciosa enumeração das faltas reais ou presumíveis da Igreja em relação às mulheres ao longo dos séculos — não tenha eliminado o seu receio.

Sérgio Godinho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de junho, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz o seu romance "Vida e Morte nas Cidades Geminadas", editado pela Quetzal.

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Pareceu‐me que as senhoras presentes na sala permaneciam impassíveis, quer perante a evocação das bruxas queimadas nas fogueiras da Inquisição quer perante os grandes temas da igualdade dos anos do feminismo; era difícil perceber o que pensavam. De qualquer modo, tudo se desenvolveu como seria de prever: Marinella Perroni e Cristina Simonelli intervieram, cada uma no seu âmbito, com discursos incisivos que, embora muito longe do tom belicoso da introdução da senhora presidente da Câmara, expunham de forma muito clara a necessidade de repensarmos as relações entre a Igreja e as mulheres, não só à luz da Bíblia mas também da Patrística.

A minha intervenção foi de carácter mais prático, e ao expô‐la fiz referência tanto à minha experiência direta de mulher cristã como à minha longa atividade de animadora paroquial, tudo desenvolvido nas fileiras da Ação Católica. Falei de liturgias, parábolas, orações e preconceitos, mas a minha intervenção, embora prosaica, manteve‐se em tudo na mesma linha das que a precederam. As mulheres na sala reagiram com cortesia, mas o aplauso educado que me dispensaram não permitia supor o que verdadeiramente lhes passava pela cabeça. No fim, o jovem pároco tomou a palavra para as conclusões, e recordo perfeitamente que parecia incomodado e na defensiva.

Afirmou ter apreciado as nossas reflexões, mas não escondeu que as considerava mais adaptadas a outros ouvintes, porque na sua igreja — reiterou, cauteloso, várias vezes — as paroquianas eram tidas em grande consideração e de certeza não teriam qualquer motivo para pedir reparação por terem sofrido da parte da Santa Madre Igreja os presumíveis danos que o título do colóquio provocadoramente pressupunha. Terminou a sua intervenção afirmando com orgulho que a prova deste feliz clima era ele, em Austis, poder gabar‐se do apoio de muitas colaboradoras na atividade paroquial. Foi nesse preciso momento que aconteceu o irreparável. Oportunamente, uma voz feminina anónima ergueu‐se na plateia e proclamou sem rodeios esta memorável afirmação: «Para limpar, padre Marco!» Eu, Cristina e Marinella, fomos apanhadas em contramão, mas o nosso desconcerto não era nada em comparação com o que transparecia no rosto do pobre pároco, que procurava identificar de fila em fila qual a mulher que ousara gritar o seu desacordo em relação ao quadro cor‐de‐rosa que acabara de pintar.

Talvez uma idosa com o vestido tradicional de viúva ou uma das mães jovens com roupa informal, quiçá aquela com o menino a dormir nos braços ou alguma das imponentes matronas da primeira fila que nos tinham ouvido com atenção imperscrutável. Nunca chegámos a saber, mas o facto é que, desde esse momento, tudo mudou. Aquela voz deu origem a um debate animado, durante o qual muitas outras vozes de mulher se ergueram sem timidez para comentar as nossas comunicações.

Algumas delas referiram experiências que refletiam os nossos exemplos, outras pediram explicações sobre algumas interpretações novas para elas, e os poucos homens presentes tomaram a palavra para nos darem razão, às vezes chegando a aprovar ideias que não recordávamos ter alguma vez defendido, mas naquele clima tudo estava bem assim. Estavam presentes várias presidentes de Câmara da vizinhança, todas mulheres e todas com uma autoridade impressionante, e cada uma interveio para realçar a importância do encontro, admoestando as mulheres presentes a não se esquecerem dos conteúdos.

Ficámos naquela sala durante duas horas e meia, e nenhuma das senhoras se ergueu a dizer que a esperavam em casa, que tinha de fazer o jantar ou que o marido estaria preocupado com o atraso. No fim, fomos nós mesmas a dizer que chegava, e confesso que pelo menos eu o fiz na tentativa de dar algum alívio ao pobre pároco, visivelmente prostrado pelo rumo que o serão tinha tomado. Em contrapartida, acabámos por jantar num estabelecimento de turismo rural alugado por um grupo que ali fora festejar o 8 de março, com dezenas de mulheres livres dos namorados e um karaoke no volume máximo que nos fez lamentar termos ouvidos para ouvir. Não podendo combatê‐lo, acabámos por nos juntar a elas, e eu cantei «Born to be Abramo», de Elio e le Storie Tese. Foi um grande dia.

Livro: "Ave Mary – E a Igreja Inventou a Mulher"

Autor: Michela Murgia

Editora: Elsinore

Data de Lançamento: 27 de maio de 2024

Preço: € 16,65

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Este livro nasceu naquela noite. Cada uma das suas páginas foi filtrada imaginando os olhos curiosos daquelas mulheres e das suas perguntas concretas, fecundas, tanto mais necessárias quanto dar‐lhes respostas claras se tornava menos possível. Não posso dizer que tenha surgido de mim; se Marinella e Cristina não tivessem insistido, eu nunca teria tido a ideia de o escrever. Se, com algum descaramento, pude fazer uma intervenção numa pequena localidade, isso não implicava que não tivesse consciência dos limites que a minha falta de preparação académica me impunha que respeitasse.

Foram necessários dois anos, muitos livros e muitos homens e mulheres inteligentes para me fazerem compreender que talvez não fosse sobre os défices da minha instrução teológica que este discurso deveria ser construído. À medida que avançava nas minhas consultas, apercebi‐me de que era preciso, para falar às mulheres com que eu lidava no meu dia a dia, encontrar uma abordagem diferente que comparasse as evidências sociais que tinha diante de mim com elementos provenientes dos meus estudos, mas sobretudo da minha experiência eclesial.

Como cristã, fui frequentemente alvo, dentro da Igreja, de representações limitadas e enganosas enquanto mulher, na maioria das vezes contrabandeadas através de interpretações igualmente pobres da figura complexa de Maria de Nazaré. Sofri quando as reconheci no magistério dos papas, mas ainda mais quando as vi passar à sonega na pastoral comum, na oração popular, na arte pictórica e na música religiosa, isto é, em todos os veículos de elevado impacto emocional e baixíssimo conflito crítico que constituem o fundamento das nossas convicções muito mais do que possamos imaginar, especialmente quando as assimilamos em criança.

Sempre estive convencida de que a educação católica continua a desempenhar um papel fundamental no fornecimento de códigos de leitura do nosso mundo, e inclusivamente quando muitos, ao crescerem, abandonam as convicções de fé, ou mesmo naqueles que nunca as tiveram, essa marca cultural não diminui, antes pelo contrário, continua a condicionar a coexistência de homens e mulheres, sendo a sua eficácia maior quanto menos for compreendida e criticada. Em Itália, quem recebe este tipo de educação continua a ser a esmagadora maioria, e os que não a recebem absorvem‐na. Por isso, ninguém pode considerar irrelevantes os efeitos ou evitar enfrentar as suas consequências na vida de todos e de todas.

Este é um livro de experiências, não de sentenças. Para me lembrar disto, quis que cada argumentação começasse com o relato de uma das histórias de que sou filha. Ao escrevê‐lo, pensei nas mulheres, em todas as que conheço e em quem me reconheço, mas também nos homens, tanto nos que gostariam que fôssemos belas e mudas como nos outros, os que gostariam de nos amar pelo que somos e não pelo que todos dizem que deveríamos ser. Este livro foi escrito também para eles, com a consciência de que desta história falsa ninguém sai se não decidirmos sair juntos.