No dia 1 de janeiro de 2023, 10 dias antes do 22.º aniversário, Sofia Duarte morreu enquanto pernoitava com o namorado num apartamento no sul de Londres. Em causa esteve um incêndio causado pela explosão da bateria de uma bicicleta elétrica.
Desde aí, o episódio tem vindo a pressionar o governo britânico para apertar a regulamentação destes equipamentos, através de controlos de qualidade a baterias de iões de lítio. Com isto, fica uma pergunta: como é que o tema é tratado em Portugal?
Gil Nadais, secretário-geral da ABIMOTA, a associação nacional da indústria das duas rodas, explica ao SAPO24 que existe no país "um laboratório que faz testes de conformidade aos produtos, porque as bicicletas têm normas para serem colocadas no mercado e devem respeitar essas normas, sobretudo as de segurança e de qualidade".
Independentemente de ser elétrico ou não, é preciso olhar para todo o veículo. "Há um conjunto de regras que definem as características que têm de ter cada componente da bicicleta e a bicicleta no seu conjunto. Por exemplo, se partir um quadro ou uma forqueta, a pessoa pode cair e pode ter um acidente grave. Têm de respeitar determinadas regras que estão normalizadas a nível mundial — e existem comissões internacionais de que nós fazemos parte", adianta.
Por sua vez, "também há regras específicas para as bicicletas elétricas [normas EN 15194: 2017 e EN 17404: 2022], além das que se aplicam às bicicletas normais. Estas são geralmente mais reforçadas, porque a bicicleta elétrica, se tiver um motor central, obriga a uma estrutura mais pesada e há também todos os testes que temos de fazer na área da eletricidade, da bateria, do motor e da compatibilidade eletromagnética. É um conjunto mais alargado de testes que tem de ser feito. É a ABIMOTA que supervisiona este processo, temos dois parceiros que trabalham connosco", frisa o secretário-geral da associação.
E como acontecem estes testes? Primeiro, olha-se para os modelos disponível no mercado. "Cada modelo tem diferentes componentes. Os processos estão standardizados, são feitos sempre da mesma forma, e parte-se do princípio de que todos [os produtos daquele modelo] têm a mesma resistência e o mesmo comportamento".
Além disso, seria impossível testar todos os produtos que vão ser vendidos. "Muitos destes ensaios são destrutivos ou chegam perto da destruição. Correspondem, no mínimo, a níveis de utilização muito elevados. No final dos ensaios que fazemos, as peças vão para a sucata, porque não é possível utilizá-las. Por isso não é possível fazer testes a tudo antes de colocar as bicicletas no mercado. Aquilo que se pode fazer no momento é um teste aos travões ou algo assim do género, mas não à resistência dos materiais", justifica Gil Nadais.
Um caso como o do Reino Unido em Portugal? É difícil
Com todos estes testes, a ABIMOTA considera que o mercado em Portugal não tem qualquer semelhança com o do Reino Unido. "Tem havido agora um grande alarido por causa das baterias e aquilo que se passa é que todas essas que têm explodido são baterias não conformes com a legislação europeia", garante o secretário-geral.
"Quem compra esses produtos arrisca-se a ter problemas. Deixar uma bateria à carga durante muito tempo, um dia ou dois... essas baterias correm o risco de explodir, porque não estão preparadas adequadamente", assegura.
"São baterias de baixa qualidade, de fraca qualidade. Ponto. É tão fácil quando isto: basta cumprir as normas". E isso começa à entrada dos produtos em cada país. "A Autoridade Tributária não as deve deixar entrar [se não estiverem conforme as regras]. E depois, no caso concreto, a ASAE de cada país deve verificar se essas baterias estão a ser comercializadas".
"O grande problema disto são as compras online de muitos desses equipamentos que não têm qualidade. E depois temos situações que denigrem um setor quando, na verdade, não existe esse problema com aquilo que é utilizado normalmente", assegura.
No Reino Unido, os incêndios originados em bicicletas e trotinetas elétricas defeituosas aumentou quase 60% em 2023. Para Gil Nadais, tudo deriva do facto de o país ter "saído do Espaço Económico Europeu, pelo que deixaram de ter as mesmas regras".
No Espaço Económico Europeu "há regras anti-dumping" — a resposta da UE às práticas comerciais desleais —, o que significa que "os produtos chineses não entram tão facilmente e são muito mais controlados". Mas "o Reino Unido não tem essas regras. Temos lá algumas marcas de topo a nível mundial, mas a grande maioria nas elétricas são chinesas, o que pode justificar este número tão alto [de incidentes]. Tenho poucas dúvidas a respeito disso. Na Europa, com as regras e o trabalho que tem sido feito, não temos tido esse aumento nem tantos problemas assim. Não quer dizer que seja tudo perfeito, que não é. Podem acontecer problemas, mas é mais difícil", evidencia o secretário-geral da ABIMOTA.
Como saber que é uma bicicleta segura?
Apesar de Portugal ser o maior produtor de bicicletas da União Europeia — com 2 milhões e 700 mil unidades produzidas em 2022 —, as baterias são maioritariamente compradas no estrangeiro. "Temos poucos fabricantes de baterias e nenhum fabricante de selas. A grande maioria dos sistemas são importados da Ásia, onde há bons e maus fabricantes, como em todo o lado. Há uns que trabalham muito bem, que vendem kits completos [para adaptar a bicicletas normais], mas também há alguns aqui na Europa, como o sistema da Bosch".
Assim, como saber que se está a comprar uma bicicleta elétrica que, à partida, não vai ter problemas de segurança?
"Se comprar uma bicicleta elétrica tem de estar atento se esta tem no quadro a indicação de que está certificada segundo as normas ISO", que são diretrizes comuns ao comércio mundial e que ajudam as empresas a aumentar a produtividade enquanto minimizam erros e desperdício.
Depois, é preciso "verificar se efetivamente os componentes estão dentro das regras. O consumidor deve pedir acesso aos manuais da bicicleta, para saber, por exemplo, se a bateria está certificada. Se for esse o caso, deve ter um CE na própria bateria e nas informações do veículo, o que significa que cumpre as normas da Comunidade Europeia. Mas há que ter cuidado: alguns habilidosos colocam o CE um bocadinho diferente e já significa China Exportation. Mas, em princípio, nas boas casas, as coisas estão devidamente feitas e não haverá esse perigo", alerta.
E é aqui que a ASAE pode intervir: "se as bicicletas não tiverem essa indicação, não estão conformes e a ASAE intervém para retirar esses produtos do mercado".
Segundo Margarida Moura, jurista da Deco, "a ASAE, no âmbito das suas competências, desenvolve ações de fiscalização no mercado de forma a verificar o cumprimento das obrigações legais dos operadores económicos no âmbito da segurança geral dos produtos. Neste âmbito, a ASAE promove ações de fiscalização de bicicletas".
"A legislação impõe uma obrigação geral de segurança a qualquer produto colocado no mercado destinado aos consumidores ou suscetível de ser por eles utilizado, incluindo os produtos utilizados pelos consumidores no âmbito de uma prestação de serviços", explica ao SAPO24.
Assim, "um produto é considerado seguro quando não apresente quaisquer riscos ou apresente riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados aceitáveis tendo em conta um nível elevado de proteção da saúde e da segurança das pessoas".
No caso das baterias, nos próximos anos vai existir também uma outra forma de perceber se são ou não seguras. Segundo o novo Regulamento Comunitário — Regulamento (UE) 2023/1542 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2023, relativo às baterias e respetivos resíduos —, as baterias vão ser marcadas com um código QR a partir de 18 de fevereiro de 2027.
"No caso das baterias de meios de transporte ligeiros, entre outras, o código QR permitirá aceder ao passaporte de bateria. O passaporte digital vai documentar e acompanhar toda a vida das baterias – desde a sua construção, passando pela informação sobre os diversos intervenientes que as vão manusear (fabricantes, importadores, distribuidores, agentes económicos) até ao reciclador final", explica Margarida Moura.
"O regulamento será aplicável a todas as baterias, incluindo as baterias de meios de transporte ligeiros (como sejam as bicicletas) e regulará todo o ciclo de vida das baterias, desde a produção até à reutilização e reciclagem, garantindo que estas são seguras, sustentáveis e competitivas", remata.
Vamos andar mais de bicicleta — e de forma segura
As novas regras que começam a surgir para os próximos anos evidenciam um facto que Gil Nadais dá por garantido: as bicicletas vão começar a impor-se.
"Anda-se cada vez mais de bicicleta, mas teremos de andar mais ainda. Em Portugal ainda se anda muito pouco, comparativamente com o centro da Europa. Começa-se a ver alguma diferença, mas há muito caminho para fazer", assume.
"Se a gasolina subir mais e se forem dadas melhores condições para as pessoas andarem de bicicleta e alguns incentivos, as pessoas começarão a andar mais. É uma questão de mentalidade", assegura o secretário-geral da ABIMOTA.
E dá um exemplo prático. "Nós no carro não precisamos de nos preocupar muito com o clima que está, porque qualquer roupa serve. Para andar de bicicleta já não é bem assim, não é? Se está a chover, temos de nos preparar para a chuva; se está frio temos de nos preparar para o frio; se está sol a mesma coisa. Há aqui umas alterações de mentalidade e de forma de estar que têm de ser feitas — o que é difícil, mas possível".
E, além da segurança das baterias e restantes componentes, é preciso olhar também para a segurança na estrada — e para os seguros existentes. "Há seguros específicos para quem anda de bicicleta, mas penso que têm pouca utilidade. Os acidentes provocados por bicicletas, em que os danos tenham de ser assumidos pelos portadores de bicicletas são poucos. Geralmente, num número elevadíssimo, os ciclistas são alvo de dano". Assim, "são os outros veículos que têm de ter seguro para proteger os danos a quem os cometeram, que anda num transporte mais vulnerável".
Mas, na verdade, tudo se resolve de forma simples: "o que nós precisamos é de uma cultura de velocidades mais baixas dentro das nossas cidades. Os 30 deveria ser regra, não a exceção como temos neste momento".
Já no caso dos sistemas de bicicletas partilhadas, como existe em algumas cidades do país, "é obrigatória a existência de seguro de
acidentes pessoais e de responsabilidade civil, a disponibilizar pelo locador", evidencia a jurista da Deco.
"Salienta-se, no entanto, que o diploma que regula a atividade do sharing — o DL 181/2012,de 6 de agosto —, na sua atual redação, não especifica quais os termos obrigatórios do seguro de acidentes pessoais e de responsabilidade civil, nem remete para regulamentação a aprovar pelos membros do governo competentes. Com efeito, não existindo regulamentação específica sobre a extensão deste seguro, esta poderá variar em função do seguro contratado e, nomeadamente, de eventuais exclusões impostas pelas seguradoras", refere Margarida Moura.
Assim, "alguns riscos associados a bicicletas podem estar eventualmente cobertos noutros tipos de seguros, mas será necessário consultá-los" para saber ao certo com o que contar. "Por exemplo, num seguro de acidentes pessoais, muitas vezes associado a cartões de crédito ou num seguro multirriscos-habitação, que pode incluir acidentes pessoais ocorridos no âmbito da vida privada, bem como o furto ou roubo da bicicleta guardada em casa".
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