Nas últimas semanas, Bolsonaro atacou reiteradamente as urnas eletrónicas usadas em eleições brasileiras desde 1996 e chegou a declarar que se o país não adotar um sistema de votação impresso a eleição agendada para o próximo ano não acontecerá.
Bolsonaro tem defendido que sem esse mecanismo de votação será vítima de fraude para favorecer um de seus oponentes e repetiu, sem nunca ter apresentado qualquer prova, que já foi alvo dessa estratégia porque teria vencido as presidenciais na primeira volta em 2018.
Em resposta a estas declarações, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pediu a investigação de Bolsonaro num inquérito sobre disseminação de notícias falsas que está em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) e determinou a abertura de um inquérito administrativo interno que pode inviabilizar a sua recandidatura.
Rosemary Segurado, socióloga e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), considerou que o Governo Bolsonaro é inspirado pela na estratégia de Trump e coloca o sistema de votação em causa por temer uma derrota nas urnas, apelando a um discurso mais radical para tentar se perpetuar no poder através da mobilização de apoiantes.
“Se a eleição será mais transparente, auditável, ou seja, todo discurso construído aqui [no Brasil sobre urnas eletrónicas] pelo Bolsonaro como o que foi construído pelo Trump [nos Estados Unidos sobre voto pelo correio] não importa. O que importa é deslegitimar um procedimento fundamental da democracia representativa que é a escolha dos seus representantes com a periodicidade estabelecida pela Constituição de cada país”, explicou segurado.
A possibilidade de uma derrota tem assombrado Bolsonaro desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva obteve vitórias judiciais que cancelaram duas condenações em processos da Operação Lava Jato no primeiro semestre de 2020.
Com isto, Lula da Silva voltou a ser elegível e passou a figurar na frente do actual Presidente nas sondagens sobre as eleições de 2022. Tal mudança no cenário político coincidiu com o aumento dos ataques de Bolsonaro às urnas eletrónicas.
Segundo dados divulgados pela agência de verificação de informação Aos Fatos, Bolsonaro fez pelo menos 192 declarações contrárias ao modelo atual de votação eletrónica e favoráveis ao voto impresso desde que chegou ao poder, porém 160 dessas afirmações aconteceram a partir de abril, quando Lula da Silva recuperou os seus direitos políticos.
Questionada sobre a campanha do Presidente brasileiro contra as urnas eletrónicas, Segurado considerou que pode ter consequências sérias.
“O que Bolsonaro tem feito, as ‘motociatas’ [passeios de motocicleta], atos públicos, as ‘lives’ [transmissões ao vivo nas redes sociais], ou seja, as várias estratégias para manter este tema na agenda tem uma inspiração em Trump e ele [Bolsonaro] perdendo a eleição poderia reproduzir uma cena como vimos em janeiro na invasão no Capitólio. Acho que aqui, isto pode ser ainda pior porque em dois anos e meio de Governo ele [Bolsonaro] tem feito várias ações para facilitar o acesso as armas”, ponderou.
A socióloga considerou que o tom agressivo de Bolsonaro também reflete um certo medo da prisão já que se perder a imunidade garantida aos Presidentes no exercício do mandato os processos serão retomados e também poderá ser investigado.
“Derrota no processo eleitoral, além do que significa para qualquer Presidente num primeiro mandato e que poderia tentar a reeleição, para ele [significa] ficar sem mandato e poder ir parar na cadeia. Ele [Bolsonaro] sabe disto porque tem vários processos e várias investigações contra si”, disse a especialista.
A estratégia bélica contra o sistema eleitoral já trouxe como consequência o risco de Bolsonaro ser declarado inelegível por um inquérito administrativo.
Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues, advogado e especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), explicou que este procedimento vai incidir nos supostos crimes de abuso de poder económico, corrupção ou fraude em processo eleitoral, abuso do poder político, uso indevido dos meios de comunicação, uso da máquina administrativa e propaganda antecipada conta com elementos inéditos e não há uma estimativa sobre o tempo para a sua tramitação.
“As ações que tratam de ilegibilidade no TSE tendem a ser lentas, são processos muito graves e o TSE protege, de forma geral, o voto, o direito do eleitor”, afirmou.
“Da mesma forma que a justiça eleitoral busca a proteção da vontade da urna, ela também busca a proteção do sistema. A partir do momento em que ela perceber que sistema está sendo colocado em xeque eles [juízes] podem agir”, acrescentou Medeiros Rodrigues.
Sobre a inclusão de Bolsonaro no inquérito das notícias falsas, que já corre no STF desde 2019, o advogado ponderou que há neste caso problemas que podem influenciar o andamento da investigação.
“A natureza de alguns dos crimes relatados no despacho [que incluiu Bolsonaro no inquérito das ‘fake news’] são de natureza comum e o Procurador-Geral da República poderia mandar arquivar. No entanto, há também uma lei que diz que é crime de responsabilidade do Presidente da República atentar contra um dos poderes. Então, o despacho do juiz Alexandre de Moraes tem este duplo sentido. Ele mostra crimes comuns e de responsabilidade”, explicou Medeiros Rodrigues.
No caso dos crimes de responsabilidade o processo precisa ser aceite pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, para ter andamento.
Na esfera criminal caberá ao Procurador-Geral da República (PGR), Augusto Aras, apresentar ou não uma denúncia contra Bolsonaro. Além disso, para que um processo criminal seja de facto aberto contra o Presidente brasileiro a denúncia do PGR precisa também ser confirmada pela Câmara dos Deputados numa votação aberta.
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