1

BREVE HISTÓRIA DOS BURACOS NEGROS

«O conhecimento da existência de algo que não conseguimos penetrar, das manifestações da razão mais profunda e da beleza mais radiante — é este conhecimento e esta emoção que constituem a verdadeira atitude religiosa; neste sentido, e apenas nele, sou um homem profundamente religioso.»
Albert Einstein

No coração da Via Láctea, há uma distorção do tecido do Universo causada por algo quatro milhões de vezes mais maciço do que o nosso Sol. O espaço e o tempo estão tão distorcidos nas suas proximidades que, caso se aproximem mais do que 12 milhões de quilómetros, os raios de luz ficam aprisionados. O ponto de não-retorno está delimitado por um horizonte de eventos, assim chamado porque o Universo externo está para sempre isolado do que quer que suceda no interior; ou assim pensávamos quando o nome foi proposto. Chamámos-lhe Sagittarius A* e é um buraco negro supermaciço.

Os buracos negros situam-se onde outrora brilharam as estrelas mais maciças, nos centros de galáxias e no limiar da nossa compreensão atual. São objetos que ocorrem naturalmente, criações inevitáveis da gravidade se demasiada matéria colapsar num espaço sufi cientemente pequeno. E, ainda assim, apesar de os preverem, as leis da Natureza não conseguem descrevê-los por inteiro. Os físicos devotam as suas carreiras à caça de problemas, a conduzir experiências em busca de algo que não pode ser explicado pelas leis conhecidas. A grande maravilha a respeito do número cada vez maior de buracos negros que descobrimos a pontilhar os céus é que cada um representa uma experiência conduzida pela Natureza que não conseguimos explicar. O que significa que há algo de profundo que nos escapa.

O estudo moderno dos buracos negros inicia-se com a Teoria Geral da Relatividade de Einstein, publicada em 1915. Esta teoria da gravidade com um século de existência conduz a duas previsões surpreendentes: «Primeiro, que o destino das estrelas maciças é colapsar atrás de um horizonte de eventos e formar um “buraco negro” que conterá uma singularidade; e, segundo, que há uma singularidade no nosso passado que constitui, em certa medida, um princípio do Universo.» Esta frase notável surge na primeira página de um manual pioneiro sobre a relatividade geral, The Large Scale Structure of Space—Time, escrito em 1973 por Stephen Hawking e George Ellis. Introduz termos evocativos — buracos negros, singularidade, horizonte de eventos — que se tornaram parte da cultura popular. Também refere que, no fim das suas vidas, as estrelas mais maciças do Universo são levadas ao colapso pela gravidade. A estrela desaparece, deixando para trás uma marca no tecido do Universo. Porém, atrás de um horizonte, algo permanece. Uma singularidade — mais um momento do que um lugar —, em que o nosso conhecimento das leis da Natureza falha. Segundo a relatividade geral, a singularidade está no fim do tempo. Também há uma singularidade no nosso passado, que assinala o início do tempo: o Big Bang. Pedem-nos que aceitemos a ideia profunda de que a nossa descrição científica da gravidade, da força bem conhecida que governa o comportamento das balas de canhão e das luas, está, no seu âmago, preocupada com a natureza do espaço e do tempo.

Não parece óbvio que a gravidade deva estar relacionada com o espaço e o tempo, muito menos que a busca da sua descrição por uma teoria científica possa conduzir a uma reflexão sobre o início e o fim do tempo. Os buracos negros ocupam posições centrais na exploração desta relação profunda, porque são as criações observáveis mais extremas da gravidade. Também são tão problemáticos, do ponto de vista intelectual, que já os anos 60 iam avançados e vários físicos ainda sentiam que, por muito que os buracos negros fossem um aspeto matemático da relatividade geral, a Natureza haveria, com certeza, de encontrar uma forma de evitar formá-los. O próprio Einstein escreveu um artigo em 1939 no qual concluiu que os buracos negros «não existem na realidade física». O ilustre contemporâneo de Einstein, Arthur Eddington, disse-o de um modo mais conciso: «Deveria haver uma lei da Natureza que impedisse uma estrela de se comportar desta forma absurda.» Enfim, não há, e elas comportam-se assim.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Agora, percebemos que os buracos negros são uma fase natural e inevitável na vida das estrelas com uma massa equivalente à de algumas vezes a do nosso Sol, e, visto que há vários milhões de estrelas do género, há vários milhões de buracos negros. As estrelas são grandes formações de matéria a combater o colapso gravitacional. Na fase inicial das suas vidas, resistem à força para dentro da sua própria gravidade através da conversão de hidrogénio em hélio nos seus núcleos. Este processo, conhecido por fusão nuclear, liberta energia que gera uma pressão que previne o colapso. De momento, o nosso Sol encontra-se nesta fase, convertendo 600 milhões de toneladas de hidrogénio em hélio a cada segundo. É fácil referir grandes números em astronomia, mas devíamos parar e maravilhar-nos com a assustadora diferença de escala entre as estrelas e os objetos da experiência humana quotidiana. Seiscentos milhões de toneladas é a massa de uma pequena montanha, e o nosso Sol tem estado a queimar o equivalente a uma montanha de hidrogénio a cada segundo, desde antes de a Terra se formar. Não há motivo para preocupação; ainda dispõe de hidrogénio suficiente para continuar a sua luta com a gravidade por outros 5 mil milhões de anos. O Sol consegue fazê-lo porque é grande; no seu interior, caberiam confortavelmente um milhão de planetas Terra. No entanto, o Sol é uma estrela pequena. As maiores estrelas conhecidas são uma centena de vezes maiores, com diâmetros na casa dos milhares de milhões de quilómetros. Posicionadas no centro do nosso sistema solar, tais estrelas poderiam tragar Júpiter. Este tipo de monstros irá terminar a sua vida em colapsos gravitacionais catastróficos.

A gravidade é uma força fraca, mas inexorável. Apenas atrai e, na ausência de forças mais fortes que a contrabalancem, atrai sem limites. A gravidade está a tentar puxá-lo através do chão em direção ao centro da Terra, e está a puxar o chão na mesma direção. O motivo que evita que tudo se precipite para um ponto central é o facto de a matéria ser rígida; é feita de partículas que obedecem às leis de física quântica e que se repelem mutuamente quando se aproximam demasiado. Mas a rigidez da matéria é uma espécie de ilusão. Não nos apercebemos de que o chão debaixo de nós é, essencialmente, espaço vazio. As nuvens de eletrões que dançam em redor do núcleo atómico mantêm os átomos afastados e levam-nos a pensar que os objetos sólidos têm uma enorme densidade. A realidade é que os núcleos atómicos ocupam apenas uma pequena fração do volume de um átomo, e que o chão debaixo dos nossos pés é tão pouco substancial quanto o vapor de água. As forças repulsivas no interior da matéria são, ainda assim, bastante poderosas, sendo capazes de impedir o leitor de atravessar o chão e de estabilizar estrelas moribundas com uma massa de até duas vezes a do Sol.

Uma estrela de neutrões típica tem um raio de apenas alguns quilómetros e uma massa de cerca de 1,5 vezes a do Sol. Um milhão de «Terras» comprimidas numa região com o tamanho de uma cidade. As estrelas de neutrões tendem a girar muito depressa, emitindo feixes de rádio intensos que iluminam o Universo como um farol. A primeira observação de uma tal estrela de neutrões, conhecida como pulsar, foi levada a cabo por Jocelyn Bell Burnell e Antony Hewish em 1967. Esta estrela pulsa com tanta regularidade que varre a Terra a cada 1,3373 segundos, de modo que Bell Burnell e Hewish a batizaram de Little Green Men-1. O pulsar mais rápido até hoje descoberto, conhecido por PSR J1748-2446ad, tem uma rotação de 716 voltas por segundo. As estrelas de neutrões são objetos celestiais extremamente energéticos. A 27 de dezembro de 2004, uma descarga de energia atingiu a Terra, cegando satélites e expandindo a nossa ionosfera. A energia foi libertada pelo reajustamento de um campo magnético em redor de uma estrela de neutrões chamada SGR 1806-20, situada a 50 mil anos-luz da Terra, do outro lado da galáxia. Num quinto de segundo, a estrela irradiou mais energia do que aquela que o Sol emite em 250 mil anos.

A força gravitacional à superfície de uma estrela de neutrões é de 100 mil milhões de vezes a da Terra. O que quer que caía na superfície de uma estrela de neutrões é aplanado num instante e transformado em sopa nuclear. Se caísse na superfície de uma estrela de neutrões, as partículas que outrora haviam feito parte dos seus átomos volumosos seriam transformadas em neutrões e comprimidas umas contra as outras, de tal forma que começariam a agitar-se quase à velocidade da luz numa tentativa de se esquivarem umas das outras. Esta agitação consegue suster uma estrela de neutrões com uma massa de cerca de duas vezes a do Sol, mas não mais do que isso. Para lá desse limite, a gravidade vence. Caso uma massa acima dessa caísse sobre a superfície, a estrela com o tamanho de uma cidade iria colapsar e formar uma singularidade de espaço e tempo. Georges Lemaître, um padre católico e um dos fundadores da cosmologia moderna, descreveu a singularidade do Big Bang na origem do nosso Universo como um dia sem ontem. Uma singularidade formada por colapso gravitacional é um momento sem amanhã. O que permanece no exterior é uma impressão escura do que em tempos brilhou: um buraco negro.

Atualmente, há provas por observação concreta de que o nosso Universo está repleto de buracos negros. As imagens da Figura 1.1. foram obtidas pela Event Horizon Telescope Collaboration, uma rede de radiotelescópios localizada nas Américas, Europa, Pacífico, Gronelândia e Antártida. A imagem à esquerda mostra o buraco negro supermaciço na galáxia M87, situado a 50 milhões de anos-luz da Terra. Como é frequentemente o caso em ciência, esta imagem trémula com uma origem distante vai-se tornando cada vez mais maravilhosa à medida que se aprende mais sobre aquilo que estamos a observar.

Este buraco negro tem uma massa de 6,5 mil milhões de vezes a do nosso Sol, e encontra-se no interior da zona escura central da imagem, conhecida por sombra. Essa zona é escura porque a gravidade é tão forte que a luz não consegue escapar e, uma vez que nada pode viajar mais rápido do que a luz, nada pode escapar. Dentro da sombra, situa-se o horizonte de eventos do buraco negro da M87, uma superfície esférica no espaço com o diâmetro de 240 vezes a distância da Terra ao Sol. Escuda o Universo exterior da singularidade. O disco luminoso que circunda a sombra é formado sobretudo por raios de luz emitidos por gases e poeiras que se movem em espiral em redor e para o interior do buraco negro, sendo os seus trajetos retorcidos e moldados na forma distinta de um dónute pela gravidade do buraco.

A imagem à direita é o buraco negro supermaciço no centro da nossa própria galáxia, o Sagittarius A*. Com uns escassos 4,31 milhões de massas solares, é uma miniatura em comparação com o anterior. O disco luminoso caberia sem dificuldade na órbita de Mercúrio. A sua presença foi inicialmente inferida de forma indireta, através da observação de estrelas ao seu redor. Estas estrelas são conhecidas por «Estrelas S». A estrela S2 orbita particularmente perto do buraco negro, com um período de apenas 16,0518 anos. A precisão é importante, porque as observações detalha- das da órbita da S2 foram comparadas com as previsões da Relatividade Geral e utilizadas para inferir a presença de um buraco negro muito antes de o mesmo ser fotografado. Observou-se que a S2 esteve mais próxima do Sagittarius A* em 2018, quando passou a apenas 120 unidades astronómicas do horizonte de eventos4. Na sua maior aproximação, estava a viajar a 3 por cento da velocidade da luz. Em 2020, Reinhard Genzel e Andrea Ghez receberam o prémio Nobel por estas observações de alta precisão executadas ao longo de vários anos. Provaram que existia um «objeto compacto supermaciço no centro da nossa galáxia», nas palavras do comité do prémio Nobel. Dividiram o prémio com Sir Roger Penrose, pela sua demonstração matemática «de que a formação dos buracos negros é uma forte previsão da Teoria da Relatividade Geral».

Também detetámos inúmeras massas estelares de buracos negros mais pequenos, através da observação de ondas no espaço e no tempo, causadas pela colisão entre eles. Em setembro de 2015, o detetor de ondas gravitacionais do LIGO registou as ondas no espaço-tempo geradas pela colisão de dois buracos negros a 1,3 milhares de milhões de anos-luz da Terra. Os buracos negros tinham 29 e 36 vezes a massa do Sol e colidiram e fundiram-se em menos de dois décimos de um segundo. Durante a colisão, o pico de energia gerado excedeu o de todas as estrelas no Universo observável por um fator de 50. Quando as ondas nos alcançaram, mais de um milhar de milhão de anos depois, alteraram a distância calculada pelos braços da régua a laser de 4 quilómetros de comprimento do LIGO de um milésimo do diâmetro de um protão num padrão fugaz, agitado, que correspondeu exatamente às previsões da Teoria da Relatividade Geral. Desde então, o LIGO e o seu irmão, o Virgo, detetaram uma série de fusões de buracos negros. O prémio Nobel da Física em 2017 foi atribuído a Rainer Weiss, Barry Barish e Kip Thorne pela sua liderança ao projetar, construir e operar o LIGO. O «Cemitério das Estrelas» de buracos negros de massas estelares e estrelas de neutrões conhecido na atualidade é representado na Figura 1.2.

Em conjunto, estas observações, valendo-se de diferentes técnicas e telescópios, demonstram sem qualquer dúvida que as estrelas de neutrões e os buracos negros existem. A ficção científica transforma-se em ciência quando observações experimentais confirmam teorias e, conforme a nossa viagem teórica nos conduz por caminhos cada vez mais estranhos e por terrenos cada vez mais intelectuais, devemos continuar a recordar-nos de que estas coisas absurdas são reais. São parte do mundo natural, e, portanto, devemos tentar compreendê-las através das leis da Natureza. Se falharmos, teremos sempre a oportunidade de desvendar novas leis da Natureza, o que aqui acabou por ser seguramente o caso, para lá dos sonhos mais loucos dos pioneiros.

TENTANTO EVITAR O ABSURDO

OS BURACOS NEGROS FORAM SUGERIDOS PELA PRIMEIRA VEZ EM 1783 pelo reitor e cientista inglês John Michell, e independentemente em 1798 pelo matemático francês Pierre-Simon Laplace. Michell e Laplace consideraram que, tal como uma bola atirada para cima abranda e é atraída para o chão pela gravidade da Terra, é concebível que existam objetos que exerçam uma atração gravitacional tão forte que consigam aprisionar a luz.

Um objeto arremessado para cima a partir da superfície da Terra deve ter um excesso de velocidade de 11 quilómetros por segundo para escapar para o espaço profundo. Isto é conhecido como a velocidade de escape da Terra. A força gravitacional na superfície do Sol é muito mais forte, e a velocidade de escape é proporcionalmente mais elevada tomando o valor de 620 quilómetros por segundo. Na superfície de uma estrela de neutrões, a velocidade de escape pode alcançar uma fração significativa da velocidade da luz. Laplace calculou que um corpo com uma densidade comparável à da Terra, mas com um diâmetro 250 vezes maior do que o do Sol, teria uma força gravitacional tão grande que a velocidade de escape iria ultrapassar a velocidade da luz, e, portanto, «as maiores massas no Universo seriam então invisíveis devido à sua magnitude».7 Tratou-se de uma ideia fascinante e à frente do seu tempo. Imagine uma camada esférica no espaço, a tocar a superfície de uma das estrelas negras gigantes de Laplace. A velocidade de escape da camada seria a velocidade da luz. Agora imagine essa estrela um pouco mais densa. A superfície estelar iria encolher-se para o próprio interior, mas a camada imaginária continuaria no mesmo lugar, sinalizando uma fronteira com o espaço. Se pairassem sobre a camada, entretanto acima da superfície da estrela, e apontassem uma lanterna para o exterior, a luz não iria a lugar algum. Ficaria congelada para sempre, incapaz de es- capar. Essa fronteira é o horizonte de eventos. No interior da camada, a luz da lanterna seria invertida e atraída de volta para a estrela. Apenas fora da camada é que a luz não poderia escapar.

Michell e Laplace imaginaram estas estrelas negras como objetos enormes, talvez porque não conseguissem conceber a alternativa. Mas um objeto não precisa de ser grande para ter uma força gravitacional elevada na sua superfície. Podemos usar as leis de Isaac Newton para calcular, para um objeto de qualquer massa, o raio da região sem-retorno que iria formar-se se o mesmo fosse comprimido o suficiente:

em que G é a constante gravitacional de Newton, que indica o valor da força da gravidade, e c é a velocidade da luz. Se esmagarmos algo com a massa M contra uma bola de massa inferior ao seu raio, criaríamos uma estrela negra. Colocando a massa do Sol a esta equação, descobrimos que o raio é de aproximadamente 3 quilómetros. Para a Terra, é pouco inferior a 1 centímetro. É difícil imaginar a Terra esmagada até ficar com a dimensão de uma pedrinha, o que deve explicar a razão por que Michell e Laplace não consideraram essa possibilidade. No entanto, fantásticos como são, não haveria nada de particularmente problemático ou absurdo em relação às estrelas negras, caso estas existissem. Iriam encurralar a luz, mas, como Laplace salientou, isso significaria apenas que não seríamos capazes de as ver.

Este argumento newtoniano simples transmite uma impressão sobre a ideia de buraco negro — a gravidade pode tornar-se tão forte que a luz não consegue escapar —, mas a Lei da Gravidade de Newton não será aplicável se a gravidade for forte e então devemos aplicar a teoria de Einstein. A relatividade geral também considera a existência de objetos cuja força gravitacional seja tão forte que a luz não consegue escapar, mas as consequências são muito diferentes e definitivamente problemáticas e absurdas. Como no caso newtoniano, se um objeto for comprimido abaixo de deter- minado raio crítico, irá aprisionar a luz. Na relatividade geral, este raio é conhecido por raio de Schwarzschild, porque foi calculado pela primeira vez em 1915, pouco depois da publicação da relatividade geral, pelo físico alemão Karl Schwarzschild. Por coincidência, a expressão matemática do raio de Schwarzschild na relatividade geral é precisamente a mesma que no resultado newtoniano acima. O raio de Schwarzschild é o raio do horizonte de eventos de um buraco negro.

Iremos aprender mais sobre o raio de Schwarzschild no Capítulo 4, quando tivermos a maquinaria da relatividade geral à disposição, mas podemos desde já vislumbrar algumas das coisas absurdas que nos aguardam. Iremos descobrir que os buracos negros afetam o fluxo do tempo nas suas proximidades. À medida que um astronauta cai num buraco negro, o tempo irá passar mais devagar para ele ao ser registado por relógios no espaço distante. É interessante, mas não absurdo. O resultado que soa absurdo é este: segundo os relógios à distância, no espaço, no horizonte de eventos o tempo abranda até parar. Uma vez que, a partir do exterior nunca se viu nada a cair num buraco negro, significa que um astronauta que caia num buraco negro ficará congelado no horizonte para a eternidade. Isto também se aplica à superfície da estrela que colapsa para o seu próprio interior através do horizonte para formar um buraco negro. À primeira vista, parece que a Teoria da Relatividade Geral prevê um disparate. Como é que uma estrela pode colapsar através do horizonte de eventos e formar um buraco negro se a sua superfície nunca é vista a atravessar o horizonte? Este tipo de considerações perturbou Einstein e os pioneiros, e é apenas uma de uma tempestade de aparentes paradoxos.

Para Einstein e a maioria dos físicos até aos anos 60, tais consternações levaram à conclusão de que a Natureza encontraria um meio de se libertar, e a pesquisa em torno dos buracos negros estava sobretudo focada em provar que estes não podiam existir. Talvez não seja possível comprimir uma estrela de modo ilimitado e assim formar um horizonte de eventos. Tal não parece irracional, dado que um pedaço de estrela de neutrões do tamanho de um grão de açúcar teria um peso de pelo menos 100 milhões de toneladas. É possível que não se compreenda completa- mente o comportamento da matéria perante densidades e pressões tão extremas.

As estrelas são grandes formações de matéria a lutar contra o colapso gravitacional, e quando ficam sem combustível nuclear o seu destino fica dependente da sua massa. Em 1926, o colega de Eddington em Cambridge, R. H. Fowler, publicou o artigo «On Dense Matter», no qual mostrava que a recém-descoberta teoria quântica fornecia um modo para que uma velha estrela em colapso pudesse evitar formar um horizonte de eventos graças a um efeito conhecido por «pressão de degenerescência de eletrões». Este foi o primeiro vislumbre da «agitação quântica» à qual nos referimos antes no contexto das estrelas de neutrões. A sua conclusão pareceu ser uma consequência inevitável de dois dos alicerces da teoria quântica: o Princípio de Exclusão de Wolfgang Pauli, e o Princípio da Incerteza de Werner Heisenberg.

Livro: "Buracos Negros"

Autor:Brian Cox e Jeff Forshaw

Editora: Desassossego

Data de Lançamento: 7 de junho

Preço: € 17,70

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

O Princípio da Exclusão determina que partículas como os eletrões não podem ocupar a mesma região do espaço. Se muitos eletrões estiverem comprimidos por colapso gravitacional, irão separar-se nos seus próprios volumes minúsculos individuais dentro da estrela, de modo a manter a distância uns dos outros. É aqui que entra o Princípio da Incerteza de Heisenberg. O mesmo estipula que, à medida que uma partícula é confina- da a um volume cada vez menor, o seu momento linear tornar-se-á maior. Por outras palavras, se confinarmos um eletrão, o mesmo irá agitar-se e, quanto mais tentarmos confiná-lo, mais este se irá agitar. Isto gera uma pressão semelhante à que ocorre quando o calor da reação de fusões nucleares no início da vida de uma estrela leva à agitação dos seus átomos e impede o colapso. No entanto, ao contrário da reação das fusões nucleares, a degenerescência de eletrões não necessita que a libertação de energia a estimule. Parecia que uma estrela poderia resistir à força de gravidade interior por um tempo indefinido.

Os astrónomos tinham conhecimento da existência desse tipo de estrela, denominada anã branca. Sirius B é uma companheira pouco brilhante de Sirius, a estrela mais luminosa dos céus. Sabia-se que a massa da Sirius B é aproximadamente a do Sol, mas com um raio comparável ao da Terra. A sua densidade, segundo medições da época, foi estimada em cerca de 100 kg/cm3 o que, como Fowler salienta, «já originou considerações teóricas muito interessantes». No seu livro The Internal Constitution of Stars, Eddington escreveu: «Creio que, em geral, é considerado apropriado acrescentar a conclusão “o que é absurdo”.» Medições modernas estimam que a densidade seja dez vezes superior. Por muito absurda que esta estrela exótica de tamanho planetário possa ter parecido, Fowler tinha descoberto um mecanismo que explicava como estas poderiam resistir à gravidade. Isto pareceu trazer imenso alívio aos físicos da altura, porque impediu que o impensável acontecesse. Graças a Fowler, parecia que as estrelas terminavam as suas vidas como anãs brancas. Sustidas pela agitação quântica dos eletrões, estas não iriam colapsar dentro do raio de Schwarzschild e não iria formar-se um horizonte de eventos.

A sensação de alívio não durou muito. Em 1930, durante uma viagem de dezoito dias desde Madras para trabalhar com Eddington e Fowler em Cambridge, um físico de 19 anos chamado Subrahmanyan Chandrasekhar decidiu calcular com exatidão quão poderosa poderia ser a pressão da degenerescência de eletrões. Fowler não tinha estabelecido um limite máximo para uma estrela sustida dessa forma, e parecia que a maioria dos físicos achava que não deveria existir um. Mas Chandrasekhar apercebeu-se de que a degenerescência de eletrões tem limites. A Teoria da Relatividade de Einstein afirma que não importa quão confinado esteja um eletrão, a velocidade da sua agitação não pode ultrapassar a da luz. Chandrasekhar calculou que o limite de velocidade seria atingido por uma anã branca com uma massa de cerca de 90 por cento a do Sol. Um cálculo mais preciso revela que o limite de Chandrasekhar, como é hoje conhecido, é de 1,4 vezes a massa do Sol. Se uma estrela em colapso exceder essa massa, os eletrões deixam de originar pressão suficiente para resistir à força da gravidade interior porque estão a mover-se à sua veloci- dade máxima, e o colapso gravitacional tem de continuar. Eddington não se mostrou impressionado. Sentiu que Chandrasekhar tinha misturado incorretamente a relatividade com o então recente domínio da mecânica quântica e, quando feito corretamente, o cálculo deveria mostrar que as estrelas anãs brancas poderiam existir até massas arbitrariamente grandes. A discussão subsequente entre o jovem Chandrasekhar e o venerável Eddington afetou profundamente o primeiro. Décadas depois da morte de Eddington, em 1944, Chandrasekhar ainda descrevia essa época como «uma experiência muito desencorajante... a de ter o meu trabalho completamente desacreditado pela comunidade de astrónomos». Acabou por provar-se que Chandrasekhar estava certo, e ele recebeu o prémio Nobel em 1983 pelo seu trabalho sobre a estrutura das estrelas.

O resultado de Chandrasekhar, publicado em 1931, não foi visto como uma prova definitiva de que os buracos negros deviam formar-se. Einstein ainda estava preocupado com o aparente congelamento do tempo no horizonte de eventos, em 1939. Talvez haja outro processo que possa consistir num apoio para uma anã branca em colapso quando a pressão da degenerescência de eletrões falha? No fim da década de 30, o físico americano Fritz Zwicky e o físico russo Lev Landau sugeriram, corretamente, que talvez até existissem estrelas mais densas do que as anãs brancas, e que estas fossem suportadas não pela pressão da degenerescência de eletrões, mas pela pressão da degenerescência de neutrões. Sob as condições extremas do colapso gravitacional, os eletrões podem ser obrigados a fundir-se com protões para formar neutrões e partículas de massa leve chamadas neutrinos, que saem da estrela. Os neutrões, tal como os eletrões, agitam-se quando são comprimidos, mas, por terem massa maior do que a dos eletrões, podem fornecer mais apoio. Estes objetos são as estrelas de neutrões.

Não é descabido questionarmo-nos se este destino será o fim da linha para todas as estrelas supermaciças, apesar da experiência com as anãs brancas sugerir que a pressão da degenerescência de neutrões também deve ter um limite. Talvez as estrelas com maior massa ejetem material para o espaço conforme colapsam, ou talvez oscilem e expludam ao atingir a densidade de uma estrela de neutrões. Na altura, não foi fácil pôr de parte estas possibilidades — a física nuclear era uma área bastante recente e o próprio neutrão só foi descoberto em 1932.

Em 1939, J. Robert Oppenheimer e o seu pupilo George Volkov estabeleceram, com base no trabalho de Richard Tolman, o que é agora conhecido como o limite de Tolman-Oppenheimer-Volkov, que define um limite máximo para a massa de uma estrela de neutrões: quase três vezes a massa do Sol. Oppenheimer e outro dos seus alunos, Hartland Snyder, demonstraram a seguir que, sob certas premissas, as estrelas mais pesadas devem colapsar atrás de um horizonte de eventos para formar um buraco negro. Este documento marcante começa desta forma: «Quando todas as fontes termonucleares de energia estiverem esgotadas, uma estrela suficientemente pesada irá colapsar. A menos que uma cisão devida à rotação, à radiação de massa ou a expulsão de massa por efeito da radiação reduza a massa da estrela para o valor da do Sol, esta contração continuará por tempo indefinido.» As últimas linhas da introdução detalham as consequências para o curso do tempo que tanto tinham consternado Einstein: «O tempo total do colapso, para um observador que se mova com a matéria estelar, é finito, e, para este caso idealizado e para a típica massa estelar, tem o valor de um dia; um observador externo vê a estrela a encolher assintoticamente até ao seu raio gravitacional.» Por outras palavras, uma estrela não muito maior do que o Sol demora mais ou menos um dia a colapsar até à inexistência do ponto de vista de alguém que se mova para o interior a partir da superfície da estrela em colapso, mas uma eternidade para alguém que esteja a observar a partir do exterior. Este é o estranho comportamento do tempo que havíamos mencionado antes. Oppenheimer e Snyder aceitaram este resultado básico da relatividade geral e mostraram que não conduz a nenhuma contradição. Iremos explorar estes resultados intrigantes em mais pormenores nos capítulos que se seguem.

Nesta altura, a Segunda Guerra Mundial interferiu, e os pensamentos dos físicos do mundo viraram-se para o apoio ao esforço de guerra. Nos Estados Unidos, os conhecimentos de física nuclear aguçados pelo estudo das estrelas foram particularmente relevantes para o desenvolvimento da bomba atómica, e Oppenheimer tornou-se famoso por se tornar o líder científico do Projeto Manhattan. Quando a guerra terminou e os físicos regressaram, uma nova geração foi incumbida de assumir esse trabalho. Nos Estados Unidos, essa geração foi orientada por John Archibald Wheeler. Foi Wheeler quem primeiro cunhou a expressão «buraco negro», durante uma palestra no Salão Oeste do Hilton de Nova Iorque a 29 de dezembro de 1967. Na sua autobiografia, Wheeler descreve as suas dificuldades intelectuais com os buracos negros ao longo da década de 1950. «Durante anos, a ideia do colapso daquilo a que hoje chamamos buraco negro não me parecia natural. Simplesmente, não gostava da ideia. Dei o meu melhor para encontrar uma forma de a contornar, de evitar a implosão compulsiva de uma grande massa.» Ele conta como acabou por se convencer de que «nada pode impedir um pedaço suficientemente grande de matéria fria de colapsar para uma dimensão mais pequena do que o raio de Schwarzschild». A conversão intelectual de Wheeler culminou num trabalho de 1962 com o seu aluno Robert Fuller, no qual concluiu que «existem pontos no espaço-tempo a partir dos quais os sinais de luz nunca podem ser recebidos, não importando o tempo que fiquemos à espera». Trata-se dos pontos no interior do horizonte de eventos a partir dos quais o Universo está isolado para sempre. Ao que parece, os buracos negros são impossíveis de evitar. Qualquer dúvida teórica que persistisse foi dissipada em 1965 pelo trabalho distinguido com o prémio Nobel da autoria de Sir Roger Penrose, «O Colapso Gravitacional e Singularidades do Espaço-Tempo», um colosso científico de três páginas no qual Penrose demonstra que, nas palavras de Wheeler, «para qualquer descrição de matéria que alguém tenha imaginado, há de existir uma singularidade no centro de um buraco negro».

UM BRILHO PROFUNDO

A NOSSA BREVE HISTÓRIA DOS BURACOS NEGROS LEVA-NOS A 1974 E A um artigo de Stephen Hawking que levantou uma questão aparentemente simples que tem orientado a investigação dos buracos negros no meio século que se seguiu à sua publicação.

Nos anos 70, a existência de buracos negros era amplamente aceite pelos teóricos, embora estes ainda não tivessem sido avistados pe- los astrónomos, e a atenção do pequeno grupo ainda interessado neles voltou-se para os desafios concetuais que apresentavam. No artigo de Hawking, publicado na revista Nature e alegremente intitulado «Black Hole Explosions?», ele mostrou que a presença de um horizonte de eventos tem um efeito dramático sobre o vácuo espacial na sua vizinhança. A teoria quântica diz-nos que o espaço vazio não é vazio. Está repleto de campos que estão constantemente a flutuar, e estas flutuações têm o potencial de criar partículas: fotões, eletrões, quarks, quaisquer partículas, na verdade. O vácuo tem uma estrutura. No espaço vazio comum, estas flutuações vêm e vão; podemos imaginar as chamadas partículas virtuais a entrar e a sair continuamente da existência, mas o resultado invariável é que nenhuma partícula real aparece miraculosamente do nada. A presença do horizonte perturba este equilíbrio, e pode acontecer que as partículas virtuais emergentes se tornem reais. Estas partículas, conhecidas por radiação de Hawking, fluem para o Universo transportando consigo uma fração minúscula da energia do buraco negro. Em escalas de tempo inimagináveis, muito mais longas do que a idade atual do Universo, um buraco negro típico evapora-se e, por fim, explode. Os buracos negros, para usarmos a famosa expressão de Hawking, não são assim tão negros. Brilham suavemente como brasas ténues no céu frio. Brasas muito ténues. A temperatura de um buraco negro de massa solar é de 0,00000006 graus Celsius acima do zero absoluto, o que é muito mais frio do que o Universo de hoje. O Sagitário A* é ainda mais frio: 4,31 milhões de vezes mais frio, para ser preciso. Mas a temperatura de um buraco negro não é zero, e isso é de uma importância enorme. Significa, como vamos descobrir, que os buracos negros obedecem às leis da termodinâmica — as mesmas leis que regem as brasas cintilantes, as máquinas a vapor e as estrelas —, o que significa que não são imortais. Um dia, num futuro longínquo, todos eles vão desaparecer.

Uma questão profunda surge como resultado desse brilho ténue. Quando o buraco negro desaparece, o que acontece a tudo o que caiu para o seu interior? Devido ao mecanismo de produção peculiar da radiação de Hawking, arrancada assim para fora do vácuo nas proximidades do horizonte de eventos, a radiação parece não ter nada que ver com o que quer que tenha caído no buraco negro durante a sua vida útil. É, portanto, muito difícil ver como qualquer informação sobre qualquer coisa que tenha caído, ou mesmo a estrela que colapsou e gerou o buraco negro, poderia ser preservada, impressa de alguma forma, na radiação. De facto, o cálculo original de Hawking pareceu muito claro neste ponto. A radiação, os restos do buraco negro, não contém qualquer informação.

Um dos pioneiros da investigação moderna sobre buracos negros, Leonard Susskind, conta a história de uma reunião num pequeno sótão de São Francisco em 1983, na qual Hawking levantou pela primeira vez esta questão e lhe respondeu, de forma incorreta, ao que parece. O relato em primeira mão de Susskind sobre a tremenda luta intelectual gerada pela questão de Hawking intitula-se The Black Hole War: My Battle with Stephen Hawking to Make the World Safe for Quantum Mechanics. Susskind tem jeito para títulos. Uma vez, foi coautor de um artigo intitulado «Invasion of the Giant Gravitons from Anti-de Sitter Space». Ele escreve que «Stephen afirmou que a informação se perde na evaporação do buraco negro e, pior, pareceu que conseguia prová-lo. Se isso fosse verdade... os alicerces do nosso tema seriam destruídos.»

Susskind referia-se a um dos pilares da física moderna: o determinismo. Se sabemos tudo sobre um sistema, seja ele uma simples caixa de gás ou o Universo, podemos prever como evoluirá no futuro e qual seria a sua aparência no passado. Trata-se evidentemente de uma afirmação do tipo «em princípio». Não é possível na prática saber tudo sobre o passado e o futuro, porque a nossa informação é sempre incompleta sobre qualquer sistema físico real. Mas na ciência, ao contrário do que acontece na política moderna, os princípios são importantes. Se Hawking estivesse certo, os buracos negros tornariam o Universo fundamentalmente imprevisível e os fundamentos da física acabariam por perecer.

Sabemos hoje que Stephen Hawking estava errado — a informação não é destruída e a física é segura —, como o próprio Hawking veio a aceitar com satisfação, e não com pesar, até porque o programa de investigação estimulado pela sua alegação original continua a impulsionar-nos em direção a uma nova compreensão do espaço, do tempo e da natureza da realidade física.

Na última edição de Breve História do Tempo, Hawking escreve que acabou por mudar de ideias em 2004 e aceitou uma aposta que tinha feito com John Preskill (com cujo trabalho nos cruzaremos mais tarde). Depois de outra aposta sobre as vantagens do críquete e do basebol, que também perdeu, Hawking deu a Preskill uma enciclopédia de basebol. Na altura em que escreveu o seu livro, salienta Hawking, ninguém sabia como a informação sai do buraco negro — apenas que o faz. O que era evidente, no entanto, é que a informação seria muito difícil de descodificar. «É como queimar um livro», escreve ele. «A informação não está tecnicamente perdida, se restarem as cinzas e o fumo — o que me recorda uma vez mais a enciclopédia de basebol que ofereci a John Preskill. Talvez devesse ter-lhe oferecido antes os restos queimados dela.»

PARA LÁ DO HORIZONTE

IMAGINEMOS QUE ENCONTRA UM RELÓGIO NO CHÃO. Ao ser inspecionado de perto, é obrigado a maravilhar-se com a sua delicada sofisticação e requintada precisão. Este mecanismo foi certamente concebido: tem de haver um criador. Transponhamos «relógio» para «Natureza» e este é o argumento apresentado para a existência de Deus pelo clérigo William Paley, em 1802. Compreendemos agora que o argumento é gravemente minado pelas provas esmagadoras que apoiam a teoria da evolução de Darwin por seleção natural. O relojoeiro é a Natureza, e é cego. «Há grandiosidade nesta visão da vida», escreveu Darwin, «com os seus muitos poderes, como algo que de início tenha sido soprado para originar algumas formas ou apenas uma; e que, enquanto este planeta é regido pela já estabelecida lei da gravidade, de um princípio tão simples tenham surgido as mais belas e fantásticas formas infinitas, que evoluíram ou ainda estão a evoluir.»

Mas o que dizer da já estabelecida lei da gravidade, um pré-requisito para a existência de planetas nos quais as formas infinitas evoluíram? Ou das leis da eletricidade e do magnetismo que garantem a coesão dos animais? Ou da sopa de partículas subatómicas de que somos feitos? Quem ou o que estabeleceu as leis, o enquadramento dentro do qual tudo se move?

A história da física moderna tem sido uma história de reducionismo. Não precisamos de uma vasta enciclopédia para compreender o funcionamento dos mecanismos da Natureza. Pelo contrário, podemos descrever uma gama quase ilimitada de fenómenos naturais, desde o interior de um protão até à criação de galáxias, com uma eficácia aparentemente irrazoável, usando a linguagem matemática. Nas palavras do físico teórico Eugene Wigner: «O milagre da adequação da linguagem da matemática na formulação das leis da física é um dom maravilhoso que não compreendemos nem merecemos. Devemos estar gratos por ele.» A matemática do século XX descreveu um universo povoado por um número limitado de tipos de partículas fundamentais que interagem umas com as outras numa arena conhecida como espaço-tempo, segundo uma coleção de regras que podem ser escritas nas costas de um envelope. Se o Universo tiver sido concebido, ao que tudo indica o seu autor é matemático.

Hoje, o estudo dos buracos negros parece estar a caminhar numa nova direção, rumo a uma linguagem comummente utilizada pelos cientistas da computação quântica: a linguagem da informação. O espaço e o tempo po- dem ser entidades emergentes que não existem na descrição mais profunda da Natureza. Em vez disso, são sintetizados a partir de pedaços de informação quântica entrelaçados de uma forma que se assemelha a um código informático engenhosamente construído. Se o Universo tiver sido concebido, o autor será programador.

Mas temos de ter cuidado. Tal como Paley antes de nós, corremos o risco de chegar demasiado longe. O papel da ciência da informação na descrição de buracos negros pode estar a apontar-nos para uma nova descrição da Natureza, mas isto não implica que tenhamos sido programados. Pelo contrário, podemos concluir que a linguagem da informática é bastante adequada para descrever o desdobramento algorítmico do cosmos. Visto deste ângulo, não há aqui maior ou menor mistério do que o milagre de Wigner da adequação da linguagem da matemática para a formulação das leis da física. O processamento da informação — a agitação de bits desde uma entrada até uma saída — não é uma construção da informática, é uma característica do nosso Universo. Em vez de tempo-espaço-como-um-código-de-computador-quântico», a apontar para a existência de um programador, podemos considerar que cientistas informáticos na Terra descobriram truques que a Natureza já explorou. Vistos deste prisma, os buracos negros são Pedras de Roseta cósmicas que nos permitem traduzir as nossas observações para uma nova linguagem que nos fornece um vislumbre da razão mais profunda e da mais radiante beleza.