Carlos Tavares, de 66 anos, já tinha anunciado a saída da Stellantis, concretamente em setembro último, mas a ideia era reformar-se em 2026. A saída, abrupta, deveu-se sobretudo a uma rutura “total” com a administração, dizem várias fontes do setor, numa altura em que o grupo anunciou uma quebra de 40% na faturação, sobretudo na América do Norte e Europa, com o grupo a pensar no encerramento de fábricas um pouco por todo o mundo, isto após o grupo ter vendido menos 279 mil unidades face a 2023.
Em termos práticos, nomeadamente números, as receitas foram, ainda assim, positivas, nomeadamente com 33 mil milhões de lucros, embora 27% abaixo do que foi registo no ano passado.
"O sucesso da Stellantis desde a sua criação foi assente num alinhamento perfeito entre acionistas de referência, administração e CEO. Contudo, nas últimas semanas emergiram visões diferentes que resultaram em que a administração e o CEO chegassem à decisão de hoje", salientou no comunicado o administrador independente Henri de Castries.
As palavras do francês não escondem assim a fricção entre Carlos Tavares e administração, com algumas fontes do setor a salientarem também que o grande problema, nestas “visões diferentes”, teriam a ver com o futuro e o presente. Alegadamente o CEO português estaria “mais interessado” em conseguir resultados imediatos, em detrimento de uma “estratégia para o futuro”.
“Tavares procurava certamente fazer cortes profundos nos custos, sendo que os problemas da Stellantis devem-se mais a uma visão arrogante do poder de fixação de preços e da posição de mercado das suas marcas, e à falta de atenção dos seus concessionários”, diz o analista do setor Daniel Roeska.
Carlos Tavares tinha feito da redução de custos uma missão crítica para a Stellantis, os números apontavam então para cortes na ordem dos 8,4 mil milhões de euros. Uma das medidas mais duras era a redução do número de colaboradores nos EUA e o aumento do trabalho em países com custos mais baixos, como o Brasil e o México. Vários atuais e ex-executivos da Stellantis abordaram estas medidas, sob anonimato, e descreveram-nas como “excessivas”, levando a problemas nos EUA, daí a quebra de faturação neste país, perto dos 30%.
Estas medidas criaram também muitos problemas entre a Stellantis e os sindicatos de trabalhadores, nomeadamente nos EUA e também em Itália, devido aos milhares de despedimentos. Um deles, o United Auto Workers, tinha vindo a pedir há alguns meses a demissão de Carlos Tavares, algo que aconteceu agora.
Carlos Tavares, que iniciou a sua carreira no universo automóvel em 1981, na Renault, passando também pela Nissan, sai assim de um dos maiores grupos mundiais de automóveis em desacordo, mas com obra feita, ele que foi o obreiro da fusão entre a PSA (multinacional francesa que detinha a Peugeot e a Citroën), onde era CEO desde 2014 até à ida para a Stellantis, em 2021, e a FCA (empresa que juntava a Fiat e a Chrysler, entre outras marcas).
O Messi da indústria, como também era conhecido no setor, sai também numa das piores alturas do setor, que enfrenta uma grave crise a nível mundial. Não é só a Stellantis, que tem a segunda maior fábrica de automóveis em Portugal, em Mangualde (com cerca de 900 trabalhadores), que enfrenta sérios problemas, recentemente a alemã Volkswagen anunciou cortes de pessoal e fecho de fábricas (não se prevê que afete a Autoeuropa) e também a Ford revelou já em novembro que vai reduzir o número de trabalhadores na Europa em quatro mil pessoas, até 2027, justificando a medida com a fraca evolução económica e vendas abaixo do esperado.
O vinho do Porto como pano de fundo
Apesar de ter nascido em Portugal, em Lisboa, Carlos Tavares emigrou cedo, concretamente para Paris, onde vive desde os seus 17 anos. Pai de três filhas, com quatro netos, o agora ex-CEO da Stellantis tem outra grande paixão, além dos carros, que é o vinho.
À parte da sua vida profissional, a privada têm-no trazido muitas vezes a Portugal, nomeadamente ao Douro, onde é proprietário de várias propriedades vinícolas, sendo mesmo um dos principais produtores de Vinho do Porto da região.
A aposta no vinho surgiu em 2016, quando comprou a sua primeira propriedade. Seguiu os passos de Carlos Ghosn, um dos seus mentores no mundo automóvel, que também juntava a paixão pelos carros aos vinhos libaneses. Cinco anos após a compra das primeiras vinhas, atualmente tem mais três propriedades e em 2021 lançou a sua marca, a Porto Amalho, um Porto premium.
Esta sua paixão poderá mesmo fazer com que Carlos Tavares regresse definitivamente ao seu país, de onde saiu há quase 50 anos. A aposta no vinho e o crescimento da sua produção (a que se junta também a produção de azeite) vinha a fazer com que viajasse com regularidade a Portugal. Agora, embora dois anos antes da prevista reforma do setor automóvel, Carlos Tavares poderá dedicar-se completamente ao seu outro grande amor. Sem a chave na ignição automóvel, poderá trocá-la pelo vinho e pelas vinhas.
Comentários