O enorme escândalo de abusos sexuais de alunos na centenária instituição estatal de ensino de Lisboa, que fez correr muita tinta na Comunicação Social portuguesa e internacional, rebentou a 23 de novembro de 2002 com uma notícia da jornalista Felícia Cabrita publicada no semanário Expresso e uma reportagem na SIC, do mesmo grupo empresarial.

A notícia que abalou aquela sexta-feira dava nota de um motorista da Casa Pia, Carlos Silvino da Silva, conhecido pela alcunha de “Bibi”, que foi abusado como aluno da instituição e mais tarde veio a abusar de alunos. A noticia dizia ainda que Silvino funcionava igualmente como angariador de rapazes para atos sexuais com figuras de destaque da sociedade portuguesa, incluindo da política e diplomacia, entre outros, num processo que veio a ter como arguido mais mediático o “senhor televisão”, o apresentador Carlos Cruz.

Dois dias depois da reportagem em que “Bibi” aparecia com um blusão vermelho num parque de estacionamento da instituição a negar o que constava da notícia, o motorista foi detido, acabando por ficar em prisão preventiva por decisão judicial.

Seguiram-se meses de notícias e reportagens sobre o caso - que partilhavam o mediatismo com o julgamento do processo da Universidade Moderna, que envolveu personalidades como o então ministro da Defesa Paulo Portas -, até à detenção no ano seguinte (2003), a 31 de janeiro, do médico Ferreira Diniz, do advogado Hugo Marçal e de Carlos Cruz, após uma alegada perseguição automóvel pela Polícia Judiciária (PJ) até Quarteira (Algarve), que veio a ser desmentida pelo arguido e nunca confirmada pelas autoridades.

Após serem ouvidos como arguidos pelo juiz de instrução Rui Teixeira, no dia seguinte (01 de fevereiro) Hugo Marçal saiu em liberdade, enquanto Ferreira Diniz e Carlos Cruz ficaram em prisão preventiva.

Os adeptos das teorias da conspiração salientaram na altura que Cruz foi preso no dia 01 de fevereiro, mês dois, do ano três, o que culminava com os números 1, 2, 3, nome do programa que durante tantos anos apresentou.

No mesmo mês, Gertrudes Nunes, proprietária de uma vivenda em Elvas, Alentejo, é constituída arguida pelo crime de lenocínio, por alegadamente fornecer a sua casa para encontros de abusos sexuais de menores a arguidos do processo.

Na sequência do mediatismo do caso, em abril seguinte são detidos o provedor adjunto da Casa Pia Manuel Abrantes, também por suspeita de abuso sexual de alunos, seguindo-se em maio o antigo embaixador Jorge Ritto e o ex-ministro socialista do Trabalho e Solidariedade Paulo Pedroso, acabando todos por ficar em prisão preventiva.

No mesmo mês, o humorista Herman José foi sujeito a interrogatório judicial e também constituído arguido, e o arqueólogo subaquático Francisco Alves foi dado como suspeito de emprestar a sua casa na Ajuda (Lisboa) para encontros com crianças, mas acabou por ser constituído arguido apenas pela posse de uma arma antiga encontrada numa busca domiciliária e julgado à parte.

Nessa altura o processo tinham 13 arguidos, mas a acusação contra Herman José caiu na fase de instrução e Paulo Pedroso, acusado por 23 crimes de abuso sexual de menores, acabou por não ser pronunciado e foi libertado após quatro meses e meio de prisão preventiva, vindo mais tarde, após ter deixado a vida política e ido trabalhar para o estrangeiro, a receber uma indemnização do Estado português.

A detenção de Paulo Pedroso causou celeuma na sociedade por ter sido detido pela PJ em plena Assembleia da República, após levantamento da sua imunidade parlamentar, numa ação que foi filmada em direto pela SIC, já avisada da detenção.

No meio de todo o mediatismo nacional e internacional do processo, em que foram apontados políticos [antigos ministros e presidentes da AR] como Ferro Rodrigues e Jaime Gama, o julgamento teve início em novembro de 2004 no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa, num enorme aparato mediático causado por jornalistas, polícias e curiosos, vindo poucas sessões depois a transitar para o Tribunal do Monsanto e depois, em janeiro de 2005, para o antigo Tribunal Militar de Santa Clara, junto à Feira da Ladra.

O processo, em que as vítimas foram ouvidas à porta fechada, e que teve como uma das grandes protagonistas a então provedora da Casa Pia Catalina Pestana, que efetuou depoimentos que fizeram muitas primeiras páginas e aberturas de telejornais, foi um dos mais longos e mediáticos da justiça portuguesa, provocando mesmo alterações do Código Penal e do Código do Processo Penal.

O julgamento, que acabou com sete arguidos (Carlos Silvino, Carlos Cruz, Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Ferreira Diniz, Hugo Marçal e Gertrudes Nunes) durou cerca de cinco anos e oito meses, teve 461 audiências, 980 testemunhas (já que a defesa de “Bibi” arrolou quase todas dos outros arguidos) e mais de 70 mil documentos.

O coletivo de juízes de julgamento, presidido por Ana Peres e constituído também por Lopes Barata e Ester Santos, acabou por dar como provado os abusos sexuais dos menores em questão e que a maioria dos arguidos participou nos crimes.

À exceção de Gertrudes Nunes, que foi absolvida, todos os restantes arguidos foram condenados a penas de prisão efetiva em primeira instância.

Após recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, foi mandada repetir a parte referente aos alegados crimes cometidos na casa de Elvas, acabando Carlos Cruz e Hugo Marçal por serem absolvidos daquelas acusações.

O processo foi fértil em incidentes processuais, entre eles pedidos de afastamento de juízes, a maioria protagonizados pelo então advogado de “Bibi” José Maria Martins.

“Bibi”, que estava inicialmente indiciado por cerca de 600 crimes, viu o Ministério Público dar como provados 167.

A acusação do MP para os sete arguidos incluía crimes de abuso sexual de menores, ato homossexual com adolescentes e lenocínio.

Carlos Silvino admitiu em tribunal os crimes, mas em 2012 acabou por negar tudo, alegando que fora pressionado para inculpar os arguidos, juntando-se a ele uma das vítimas, não resultando em nada no processo.

Após a leitura do acórdão, a 03 de setembro de 2010, Carlos Silvino foi condenado a 18 anos de cadeia (que baixaram para 15 por decisão da Relação), Carlos Cruz e Ferreira Diniz a sete anos, Jorge Ritto a seis anos e oito meses, Manuel Abrantes a cinco anos e nove meses.

Hugo Marçal, condenado pela primeira instância a seis anos e dois meses de cadeia, foi absolvido.

“Bibi” foi libertado e ficou em liberdade condicional a 17 de julho de 2022, após cumprir 12 dos 15 anos a que foi condenado, Carlos Cruz saiu em liberdade em 2016, João Ferreira Diniz libertado em 2014 para prisão domiciliária devido a doença e morreu em março de 2022, Jorge Rito libertado em 2014 devido também a doença grave e Manuel Abrantes em 2017.

Duas décadas depois, Carlos Cruz tem ainda pendentes uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra o Estado português e um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, depois de ter sido condenado a 15 de setembro passado pela Relação de Lisboa ao pagamento de duas indemnizações de 25 mil euros a duas vítimas.

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