Trabalhando em equipa para trazer vida a pessoas doentes, em situação de extrema fragilidade, Catarina Pazes é enfermeira especialista em cuidados paliativos, trabalha na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e dedica-se também à vida académica. Depois de ter concluído licenciatura em enfermagem, fez mestrado, assim como diversas pós-graduações, na área dos cuidados paliativos; neste momento, frequenta o doutoramento em cuidados paliativos na Universidade do Porto. Reconhecida pelos seus pares, foi eleita como presidente da APCP para o triénio 2024-2026.
É, neste momento, a presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. Muitos ouviram falar em cuidados paliativos, mas por vezes há algum desconhecimento. Quer clarificar?
Os cuidados paliativos são uma especialidade clínica, de saúde, de alívio, de prevenção de sofrimento que decorre de doenças. Esta é a designação mais formal. Paliativo vem da palavra palium, que tem um significado relacionado com manto, proteção, cuidado; tem a ver com a proteção, o manto que protege face ao frio, às intempéries. São cuidados que protegem a pessoa do sofrimento que está a acontecer e daquele que possa vir a acontecer por causa de uma doença grave. O que é o sofrimento? É algo muito individual, muito próprio de cada um e para cada um é algo diferente. O sofrimento pode ser físico, emocional, psicológico. Por isso é que os cuidados paliativos, para responderem às várias partes do sofrimento – para tudo aquilo que contribui para o sofrimento do doente e da família –, têm de ser um trabalho em equipa. Tem de ser uma equipa multidisciplinar, precisamente porque o sofrimento tem multidimensões. E acaba por ter de ser essa boa articulação entre vários profissionais que vão responder às necessidades das pessoas.
Muitas vezes as pessoas têm a ideia de que os cuidados paliativos são para doentes terminais; mas não se trata apenas disso…
Não, porque o sofrimento não existe apenas no fim da vida. Como são cuidados especializados em tratar sofrimento e o sofrimento não faz parte apenas do final da vida, não faria sentido… Mas foi assim que eles nasceram. Os cuidados paliativos nasceram como uma resposta aos doentes que não tinham cura. Não se curavam e depois fazia-se o quê? Ficavam a sofrer com dor; já ninguém “queria saber daquele doente”, porque aquele doente já não respondia aos tratamentos. E foi assim que nasceram os cuidados paliativos nos anos 70, em Inglaterra. A “mãe dos cuidados paliativos” chama-se Cicely Saunders; é uma médica, que já fora enfermeira e assistente social. Preocupava-se com as pessoas que estavam muito próximas do fim da vida. É por isso que os cuidados paliativos são associados ao fim da vida, porque eles nasceram como uma resposta aos doentes em fim de vida.
Entretanto evoluíram…
Precisamente, porque são uma boa resposta para o sofrimento. E são uma boa resposta para aquilo que são as dificuldades que as doenças trazem ao longo do percurso da doença. Somos bons a comunicar com o doente e com a família, a planear com o doente e a família o futuro, se alguma coisa não correr como desejamos. Somos bons a controlar sintomas, somos bons em termos físicos, mas também emocionais. Somos bons a trabalhar com o doente aquilo que pode voltar a trazer-lhe um sentido para a sua vida quando tudo parece estar a correr mal e, afinal, pode haver um sentido nisto tudo. E trabalhamos muito nesta dimensão.
No sentido da esperança?
Sim, na esperança. Quando eu digo que “somos bons” é porque trabalhamos muito neste âmbito: estudámos muito para poder fazer isso. É essa a nossa função enquanto profissionais. Portanto, são cuidados especializados a tratar o sofrimento que implicam vários profissionais, muita formação e muita competência nestas dimensões do controlo dos sintomas, do trabalho e equipa, da comunicação com o doente e com a família.
Em doentes com situações complexas – como doentes com demência, por exemplo – provavelmente a comunicação com o doente é bem mais difícil do que com a família que, por outro lado, tem outro tipo de sofrimento em função da situação.
Todas as áreas em que os cuidados paliativos têm uma ação, por exemplo, na área da demência, é necessário um investimento da nossa parte em perceber melhor como é que funcionam estas doenças e como é que evoluem, para depois podermos trabalhar com as pessoas que lidam com estes doentes: como é que se lida; qual é a forma mais positiva de comunicar, de lidar com as dificuldades que aparecem; se, face a uma desorientação, devemos contrariá-la ou devemos estar de uma forma mais tranquila, mais relaxada, sem estar a bater de frente com o doente, por exemplo. Ou seja, ao nível da comunicação, há sempre um grande desafio para além do controlo dos sintomas físicos.
Tem muito a ver com o comunicar?
Sim, com o doente, com a família e ajudar a família a comunicar melhor com o doente e o doente a comunicar com a família. Na demência, como exemplo, mas também num doente que tem uma doença grave, avançada e incurável e cuja família quer muito protegê-lo de tudo aquilo que o possa pôr triste e, portanto, não se fala do assunto. Isto foi estudado e sabemos que é desejável ficar triste quando se fala do assunto, faz parte da vivência da situação e só depois disso é que se pode integrar toda essa situação. Sem isso não é possível. Como sabemos isso, uma função que nós temos é trabalhar com a família e com o doente sobre como falar acerca dos assuntos sem fugir deles ou fingir que está tudo bem, quando todos estão a pensar sobre o mesmo, mas ninguém fala do tema. E assim não se resolvem questões importantíssimas. Portanto, a questão da comunicação tem um papel central em toda a nossa ação no dia a dia.
Em materiais que saíram recentemente na comunicação social, em entrevistas suas anteriores, têm sido apontadas dificuldades ao funcionamento da Rede Nacional de Cuidados Paliativos. O que é que sugere para uma gestão mais eficiente desta Rede?
O que sugiro, em primeiro lugar, é percebermos que, nesta área, os cuidados são altamente especializados. Por isso mesmo, precisamos de respostas, precisamos que as equipas existam no país, mais, que estas equipas tenham os profissionais capacitados para o fazer. Não podem ser criadas equipas sem que os profissionais tenham essa formação e essa competência diferenciada.
Para isso acontecer, precisamos que os jovens que estão a estudar medicina, enfermagem, serviço social, psicologia – pelo menos estas quatro grandes áreas –, tenham na sua formação de base alguma formação sobre cuidados paliativos, porque precisam de saber mais sobre isto, para trabalharem melhor com doentes com necessidades paliativas. E eles estão em todos os contextos. Precisamos que os profissionais que tenham um gosto e um interesse especiais pela área, possam fazer a diferenciação na sua formação nesse sentido e vejam essa diferenciação reconhecida na sua carreira. Sem isso não é possível que as pessoas escolham fazer cuidados paliativos e fiquem a fazer cuidados paliativos durante a sua vida – se não houver um retorno na sua carreira, na sua vida profissional. As condições são basicamente estas: termos profissionais com formação e com diferenciação na área e com possibilidade de desenvolverem o seu trabalho no dia a dia sem limitações, nem ao nível de recursos físicos, nem ao nível de horários, nem ao nível de desenvolvimento na sua carreira.
É isso que acontece agora?
A Rede está com problemas porque não há respostas em todo o país. Nomeadamente, ao nível da comunidade – ou seja, para os doentes que não estão dentro dos hospitais, que estão em vários sítios da comunidade –, não há uma resposta para todos. Não existem equipas comunitárias de suporte em todo o país que garantam as consultas no domicílio, a orientação dos profissionais que estão à volta destes doentes, etc.. Para a grande maioria dos doentes, continua a não existir. Dentro dos hospitais, continuamos a ter equipas intra-hospitalares – as equipas que se deslocam aos vários serviços onde os doentes podem estar – com escassos recursos e horários, com uma dificuldade na resposta por causa das várias limitações. A Rede está com problemas não só porque há menos equipas do que devia, mas também, e muito, porque as equipas que existem não têm as condições de que precisam. [Devemos] olhar para isto como absolutamente estratégico para o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde [SNS] – porque o é.
Um grande número de doentes que procuram diariamente o SNS tem necessidades paliativas e é uma área de necessidade muito importante. Necessidades paliativas são necessidades de alívio de sofrimento, de alguém que olhe para eles e consiga orientá-los naquele que é o percurso de uma doença que é crónica, que está a progredir. Grande parte dos doentes que procuram o SNS são doentes que estão com uma doença já conhecida e progressiva e que está a piorar ou que está a trazer muito stress e não estão a saber lidar com ele. Portanto, se não prepararmos melhor o nosso Serviço Nacional de Saúde do ponto de vista de cuidados paliativos, não há maneira de ter futuro no SNS, precisamente porque, respondendo de forma errada, gastamos muitos recursos, mas não estamos a tratar bem os doentes. E é isso que [está em causa] neste momento.
Nesse contexto adverso, o que leva, ainda assim, a que alguém persista em trabalhar nesta área? Que atratividade é que tem, por exemplo, para a enfermagem, se eventualmente essa for a área que conhecer melhor?
É transversal aos vários profissionais que escolheram fazer cuidados paliativos e persistem nesta área. Quando temos encontros, congressos, jornadas, e até nas funções que tenho agora na Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, em que lido com colegas de vários pontos do país, verifico que há uma dedicação muito grande à área, por parte dos profissionais que a escolheram. Podíamos fazer um estudo sobre isso: o que é que leva as pessoas a escolher e o que é que leva as pessoas a persistir.
Posso-lhe responder por mim. Primeiro, e penso que é transversal, a descoberta que fazemos quando realizamos a formação específica em cuidados paliativos, de uma resposta para aquilo que achávamos que não tinha resposta ou para aquilo em que tínhamos tanta dificuldade em encontrar respostas. E, de repente, temos várias ferramentas, várias soluções para problemas que para muitos são problemas que não têm solução. E nós temos solução, temos a forma de lidar.
Essa descoberta, primeiro, anima-nos imenso; depois, quando começamos a aplicar aquilo que aprendemos com os doentes, temos um retorno que mais nenhuma área dá. Ou melhor, poderá haver áreas parecidas ou até áreas em que as pessoas digam o mesmo, mas não há uma sensação de retorno tão grande. E isto dito por vários profissionais que também já trabalharam noutras áreas.
Essa gratidão que nós percecionamos vinda de quem recebe os nossos cuidados é recíproca, porque também sentimos um agradecimento. Eu agradeço sempre ao doente e à família. No final de cada visita agradeço, porque confiam em nós, porque nos permitiram ajudar um bocadinho em toda esta vivência e toda esta situação. E as pessoas normalmente dizem “quem tem a agradecer sou eu”. Mas é genuína esta sensação de gratidão da parte de quem lida. Isso alimenta muito, acaba por compensar muito – se calhar inteiramente –, as dificuldades, os constrangimentos, as injustiças, aquilo que nós vamos encontrando de difícil no caminho, enquanto profissionais da área.
Voltamos à questão da esperança?
Sim. Voltamos à questão da esperança que acaba por também nos animar no dia a dia.
E também leva esperança a quem pensava que já não a tinha.
Sim, sem dúvida. Aquilo que nós aprendemos quando fazemos a formação em cuidados paliativos como ferramentas para lidar com as adversidades… quando agarramos nisso, quando vamos aplicar isso com o doente e com a família, há uma obrigatoriedade na verdade. Tem de ser verdade, tem de ser completamente genuíno. Ou seja, quando eu estou perante um doente, que até pode ter uma doença avançada, irreversível, e estou a trabalhar com ele a possibilidade de ele conseguir sentir-se bem apesar da doença, viver em pleno apesar da doença, ser feliz apesar da doença, eu só posso fazer isto se eu acreditar completamente que é possível viver feliz apesar da doença. Se isto em mim não for claro e não for verdade, não o posso fazer, não consigo fazer este trabalho.
Exige um trabalho importante dentro de nós, que é uma compensação enorme por termos escolhido cuidados paliativos, porque nos permite um contacto connosco próprios, com a nossa fragilidade, com a nossa vulnerabilidade. Estamos constantemente a pôr-nos no nosso lugar: somos só mais um. Estamos sempre a reconcentrarmo-nos no sentido de relativizarmos a importância que as coisas têm. Esse trabalho diário que fazemos também cá dentro vai-nos permitindo trabalhar com as pessoas, com as famílias. Isso é algo que nos leva a um lugar que é “eu não consigo imaginar-me fazer outra coisa, não consigo imaginar-me a trabalhar noutra área, não consigo, não é possível”.
No fundo, lidam com a vida e com o que transcende a vida?
Sim, lidamos com a vida, com a possibilidade de a vida acabar, mesmo quando as coisas correm bem ou mesmo quando as coisas têm a possibilidade de correr bem. Há um momento numa doença grave, mesmo que a doença seja curável ou tenha uma possibilidade de cura, em que nós podemos acompanhar essa situação. Porquê? Porque há um sofrimento intenso em determinado momento que é demasiado complexo para não ter cuidados paliativos. As pessoas devem ter esta noção.
Mas, mesmo quando tudo tem possibilidade de correr bem, há neste percurso o medo, o receio e a angústia. Há a possibilidade de as coisas não correrem bem, há a possibilidade de a morte ser mais cedo do que se esperava ou do que se desejaria. Essa consciência leva-nos muitas vezes para assuntos que normalmente não abordamos.
O que nos dá força, o que nos dá sentido, o que nos importa, o que nos dá uma esperança, aquilo que nos sustenta, aquilo que nos agarra – e aquilo que nos tira força, por outro lado também, aquilo que nos tira energia, aquilo que nos tira capacidade de viver as coisas – é falamos sobre estes assuntos. E de repente, cada um dos profissionais, à sua medida e dentro daquilo que é a sua intervenção (um psicólogo naturalmente fará isto de uma forma diferente de mim, que sou enfermeira), mas o objetivo de todos é que aquela pessoa consiga ser feliz apesar da doença, que consiga ser plena. Todos nós temos esse objetivo.
Mas sempre com intervenções diferentes…
A intervenção de cada um é diferente, mas não é por ser enfermeira que eu não abordo esses temas ou não converso sobre este tipo de assuntos, porque eles vêm a propósito daquilo que nós queremos, que é dar ajuda. E como é que eu posso ajudar? O que é que o ajuda nisto tudo? O que é que tem ajudado? “É estar com a família”. “É a minha religião”. “Eu não tenho uma religião, mas eu acredito que há algo que nos transcende e há mais alguma coisa para além disto e eu agarro-me muito a isso, é a natureza”. Cada pessoa terá a sua forma, mas há muito este lado da espiritualidade, que faz parte de nós.
Somos seres espirituais, não há volta a dar, independentemente de o assumirmos ou não, ou de falarmos sobre o assunto. A espiritualidade faz parte do ser humano; é o que nos diferencia verdadeiramente de qualquer outro animal. Mas sermos espirituais e abordar esses temas faz-nos aprofundar, na relação. Claro que o tempo que temos de acompanhamento de um doente diferencia a profundidade da relação, assim como se o doente quer ou não ter essa abordagem. Mas é muito frequente este lado mais humanizado da relação profissional de saúde/doente, a par de um rigoroso controlo de sintomas, por exemplo.
Ninguém consegue falar destas coisas se não tiver a dor controlada ou se estiver a vomitar ou se tiver contas para pagar… São muitas dimensões e todas elas contribuem para um aumento ou uma diminuição da esperança ou da capacidade para viver bem aquela situação difícil. Nós somos apenas uma parte da ajuda, mas é preciso conhecer a situação, mesmo que nós não tenhamos a solução para todas as coisas. Se eu tiver um filho com problemas na escola, ao mesmo tempo tenho o meu marido que ficou desempregado e tenho um cancro, como é que se tem esperança? Mas é possível. Então, se eu não conhecer nada disto, essa é uma questão que está reprimida.
E assim a intervenção pode envolver a família e não apenas o doente.
Tem de envolver sempre a família.
Portanto, a multidisciplinaridade vem das respostas ao contexto da pessoa.
Ao contexto, sim, que é a pessoa e a sua família ou aqueles que lhe são próximos e que a pessoa considera como ajuda e como importante naquela vivência. Isso é fundamental. São os quatro pilares: o controlo dos sintomas, a comunicação, o trabalho em equipa e o apoio à família. São as quatro grandes áreas dos cuidados paliativos. Sem estas áreas não há cuidados paliativos. Há uma intervenção para aliviar não sei o quê, mas não são cuidados paliativos.
Mais facilmente se cai num centrar sobre o corpo…
Sim, é o mais fácil. Confundem-nos com a consulta da dor. “Ah, sim, é porque tem uma dor”. “A consulta da dor ou paliativos é a mesma coisa”. Isso é quando querem aligeirar. Porquê? Porque falar em paliativos, como está muito associado ao fim da vida,… “Isso é muito agressivo. Ainda a pessoa vai pensar que está tão mal, é melhor não”. Então, não se fala.
É outro papel importante da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, é precisamente informar e desmistificar tudo isto para que as pessoas sejam mais capazes de tomar as suas decisões, mais informadas, com um sentido crítico para as coisas. E também com um sentido crítico perante uma “equipa de cuidados paliativos” e que não esteja a garantir aquilo que eu estou a dizer. A pessoa pode dizer assim: “A mim disseram que cuidados paliativos implicavam apoio à família, controlo rigoroso dos sintomas, comunicação adequada, trabalho da equipa. Eu não vejo nada disto aqui. Eu aqui só vejo um enfermeiro, só vejo um médico que vem aqui de vez em quando e que pergunta se a minha dor está melhor. Isto não é ‘cuidados paliativos’, pois não?” É preciso ter esse sentido crítico e essa exigência. “Eu quero mais. A mim disseram que cuidados paliativos era mais que isto.” É muito importante, porque só assim é que as coisas evoluem e se diferenciam e há mudança e cuidados.
E as pessoas sabem a que é que têm direito dentro de um serviço que surge associado ao SNS…
O primeiro Plano Nacional de Cuidados Paliativos é de 2004. Começa a haver cuidados paliativos no final dos anos 90. A Rede em si é criada mediante uma lei em 2012, a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, que define como é a Rede Nacional. Mas só em 2017 surge o primeiro Plano Estratégico para o desenvolvimento dos cuidados paliativos. Estes planos estratégicos são de dois em dois anos. Foi muito importante o primeiro Plano, porque há uma orientação. Agora, todos os outros são basicamente cópias do primeiro, porque o que foi projetado ainda não foi alcançado, portanto vamos continuar a tentar alcançar aquilo que foi projetado em 2017 e continuamos atrás do problema.
Mas esta forma organizada de prestação de cuidados centrados na pessoa, dirigidos ao alívio do sofrimento que decorre de uma doença, é muito recente, comparativamente com outras áreas. E isso depois nota-se naquilo que é o nosso dia a dia. Todos os dias temos de explicar o que são cuidados paliativos. Todos.
Não há dia nenhum que não seja preciso explicar “olhe, o que a nossa equipa faz é isto”. Porque, às vezes, confundem-nos com uma equipa do apoio domiciliário ou do centro de saúde que vai a casa fazer não sei o quê. Todos os dias temos de explicar às pessoas em geral e aos nossos próprios colegas “olhe, a nossa equipa o que faz é isto”.
Aos profissionais de saúde também?
Exatamente. Daí eu dizer que é fundamental que todos tenham formação, que todos saibam o que é que são cuidados paliativos, mas que todos tenham, ao longo da sua formação pré-graduada, o acesso a uma unidade curricular que o explique. Porquê? Porque todos vão lidar com isto. Não há forma de ser enfermeiro, não há forma de ser médico, não há forma de ser psicólogo, sem lidar com pessoas com necessidades paliativas. Não há maneira.
Sim, até uma criança.
Claro, as crianças são uma área muito importante para os cuidados paliativos. Os cuidados paliativos pediátricos são uma área muito sensível para nós. Já temos algumas equipas no país, não podemos dizer que estamos a zero, mas continuamos com um acesso muito difícil para muitas zonas do país. Em muitas regiões não temos cuidados paliativos pediátricos. Temos ações paliativas, feitas por profissionais da pediatria, que vão desenvolvendo as suas competências, o seu conhecimento e que conseguem aliviar famílias, crianças, e dão apoio. E é muito importante. Agora, cuidados paliativos organizados frequentemente não temos. É diferente viver em Coimbra ou em Lisboa do que viver em Beja e ter uma criança com necessidades especiais ou ter uma criança com uma doença complexa, grave.
Nós pensamos muito em cancro, mas o grande número de crianças com necessidades paliativas são crianças com doença neurológica, com problemas de desenvolvimento, crianças que têm uma carga de dependência e de dificuldades ao longo de todo o crescimento. A isto acresce a angústia, o medo do que pode acontecer, porque estamos sempre perante a fragilidade de uma criança com problemas graves, para uma família, pai, mãe, irmãos, que estão a lidar com toda a situação. Se tivermos profissionais preparados para ajudar esta família a lidar com isso, é diferente de só termos isto em Lisboa e só ter uma consulta de vez em quando, indo a Lisboa.
Imagino que aí surja o desafio acrescido da outra família que é a escola.
Com certeza. Equipas comunitárias de suporte em cuidados paliativos pediátricos, temos pouquíssimas. Temos uma em Coimbra, uma em Lisboa, outra no Porto… serão três. São equipas que se deslocam aonde as crianças vivem, aonde as crianças vão à escola. E isso é fundamental, porque, cá está… como é que se lida com isto? Como é que se lida com este medo? Como é que se lida com o medo da criança ter um problema e não saber o que fazer? Como é que se lida com os outros? Como é que se fala deste assunto com os outros todos? Como é que se gera esta comunicação? E se alguma coisa corre mal, ou se esta criança vem a falecer, como é que se lida com isto? Como é que se gere toda a situação com a escola, com as crianças, como é que se fala da morte? Enfim, todo esse trabalho que nós nem pensamos até passarmos por isso.
É preciso conhecer por dentro. Para isso, ou se trabalha na área e se está muito embrenhado nisto, ou se receberam cuidados em algum momento e, a partir daí, ficamos comprometidos com o tema. Outro dia, estava a participar num programa no Porto Canal, entrevistaram uma pessoa na rua e perguntaram-lhe “acha que devia ser dada mais prioridade aos cuidados paliativos?” Resposta: “Oh, então não há dinheiro para as outras coisas, vai haver para isto?” Ou seja, isto é realmente visto como uma coisa menos importante ou menos prioritária, até pela população em geral.
Como se fosse um desperdício…
Sim. Quando estamos a falar de sofrimento humano. Quando se resolvem tantas questões da área da saúde, como se pode melhorar a resposta do sistema investindo nos cuidados paliativos. Porquê? Porque muitas das necessidades das pessoas dizem respeito a esta intervenção. São angústias, medos. As pessoas vêm muitas vezes à urgência, ou porque precisam, ou porque não têm outra resposta… e deviam ter outra resposta.
A maior parte das pessoas que estão na urgência não era preciso lá estarem? Provavelmente não. Provavelmente deveriam ter outra resposta, num outro local, com outro tipo de condições. Como isso não existe, têm esta. E nós continuamos a dizer que queremos mais urgências, mais médicos de urgência, mais enfermeiros de urgência, mais respostas de urgência. Fechamos tudo à volta para reforçar a urgência. É difícil sair deste círculo. Porque se não melhoramos nada à volta, é difícil as pessoas acreditarem que é melhor ficar em casa. Como é que é melhor ficar em casa? A sofrer?
Isso ninguém deseja…
Muitas vezes o sofrimento não desaparece, mas deixa de estar naquele local, parece que é um alívio associado ao não ver. “Pelo menos não vejo”. Ou “pelo menos não me sinto tão impotente porque estou a fazer alguma coisa”. “Estou a levá-lo ao hospital e lá deve haver alguém que saiba responder”. É isto o que as pessoas dizem.
Recebi uma chamada de um doente que falara com o oncologista e tinha recebido uma má notícia. É um senhor do meio rural, tem tido uma boa relação connosco, porque melhorou bastante dos sintomas físicos, e disse “vocês foram a minha sorte”. Entretanto, agora recebeu uma má notícia e disse “Fiquei em baixo. Já viu, enfermeira? Fiquei tão em baixo com esta notícia. Eu sabia. Mas você já sabia que tinha alguma coisa, não é?” “Sim, eu sabia, mas não sabia que era tão grave. Amanhã nós passamos aí, para falarmos pessoalmente mais um bocadinho. E conta connosco.” “Pois, eu sei que conto convosco”. E conta connosco, independentemente do que acontecer. E nós dizemos isto como um compromisso em que acredito mesmo para que as pessoas também sintam esse compromisso.
Esta experiência de trabalho, este investimento pessoal que tem posto nos cuidados paliativos, são realizados por uma enfermeira que é cristã, católica. Essa circunstância pessoal proporciona-lhe uma compreensão acrescida da experiência de Deus ou da vida eterna, tanto quanto ela é acessível a um humano vivo?
Esse caminho de entendimento, de consciência, de reflexão, de como me coloco enquanto cristã, enquanto católica, nesta vivência, não tem sido linear. Houve alturas em que eu não tinha de todo essa reflexão permanente, embora sempre considerasse que isto não era menor do que qualquer outra coisa que eu pudesse fazer. Eu tinha uma coisa… Não ia tão regularmente à missa, por exemplo. Mas era como se compensasse. [Pensava que] no meu dia a dia faço uma coisa que é muito importante. Encaixava isto, mas à minha maneira, sem muita reflexão.
Felizmente, tive o privilégio de estar próxima durante vários anos da Irmã Céu [Valério, da Congregação das Oblatas do Divino Coração]. E isso possibilitou algumas reflexões com ela sobre estas coisas. Foi-me ajudando a posicionar de uma forma mais consciente de como faz todo o sentido eu ser católica e crente, como isto faz todo o sentido na minha vida e como encaixa tão bem no meu trabalho a possibilidade de estar ao serviço, de me colocar ao serviço e poder oferecer isto todos os dias.
Isto é um privilégio tão grande, do ponto de vista da pessoa que é católica. Na Quaresma, [fomos] convidados à renúncia quaresmal. Eu posso fazer isto todos os dias. Todos os dias renuncio a mim própria. Todos os dias renuncio com consciência, mas sem culpa. Sem “ai, agora estou a fazer isto a mim própria, que horror”. Aquela coisa de “ai, estás a tirar às tuas filhas, a tua atenção, estás a tirar à tua mãe, estás a tirar à tua família”. Às vezes, [pergunto-me]: “será que eu estou a fazer isto para alimentar o ego?”. Há uma reflexão profunda sobre isto tudo. Mas o poder entregar isto e dizer “estou ao serviço”, poder oferecer isto todos os dias, sem precisar de falar disto com ninguém, é um privilégio.
Falava disto com a irmã Céu, que tinha também uma maneira de estar nesta área, ao serviço dos mais frágeis, ela estava muito… a partir do momento em que conheceu os cuidados paliativos, é como se tivesse conhecido uma boa nova. “Então, é possível? É isto que é preciso para aqui, para as pessoas que estão aqui no lar [D. José do Patrocínio Dias, em Beja]. É isto que as pessoas mais frágeis precisam. Como é que não percebem uma coisa que é tão evidente? Toda a gente saber fazer isto para as pessoas viverem melhor o tempo que têm. Sejam anos, sejam dias”. E, então, ao compreender isso e ao ter querido saber mais desta área, também me ajudou a mim a saber mais e a estar mais por dentro daquilo que é a forma de um católico estar.
A Irmã Céu, perante alguém que estava no fim da vida, ensinou-me como aquele espaço era tão importante, tão único. E como ela me dizia: “a mim, quando as pessoas estão nesta fase, apetece-me ajoelhar. Porque é Cristo”. É fragilidade no limite, quando estamos quase a partir para outra dimensão, para a vida eterna, mas estamos a fazer a passagem, deixamos um corpo frágil, doente.
Isto quando estamos a falar de uma morte que é esperada: estamos à espera que aconteça a qualquer momento. Estamos perante um corpo doente, frágil, vulnerável, completamente dependente do que os outros fizerem. Quando tudo tem de ser muito sensível, quando tudo tem de ser muito cuidadoso para não fazermos mal, para não fazermos sofrer alguém que já está tão, tão, tão… É mais fácil quando integramos isto na vida, com consciência de que esta pessoa não é alguém que é inferior a mim. É exatamente como eu um dia serei, se tudo correr bem – ter isto presente sempre. Um dia tenho de estar nesta situação e alguém há de estar a ajudar-me também. Portanto, é pensar muito nessa dimensão humana e que, ao mesmo tempo, tem um lado espiritual. Do ponto de vista de quem é crente, como pode ser aproximar-se mais de Cristo, aproximar-se mais de ser superior àquilo que é, porque já está a caminho…
Como um milagre da vida ao contrário?
Ao contrário do nascimento. Exatamente! Porque também nasce um ser frágil… É um milagre! Nasce um ser frágil, dependente, à mercê dos outros. E no fim da vida o corpo é muito frágil, é fisicamente tão frágil, mas espiritualmente atinge uma dimensão tão maior, que já vai para outro caminho, para outra vida, para algo muito superior a esta. Felizmente, nós temos a consciência disso, por algumas experiências. Claro que entram aqui condicionalismos de a pessoa estar tranquila, de a pessoa estar a gemer, de a pessoa estar angustiada, de a pessoa ter feito as pazes com toda a gente e estar em paz, tranquila, segura, ou se a pessoa está revoltada e continua revoltada, e, no momento em que está a morrer, ainda está revoltada…
Claro que as mortes são todas muito diferentes, mas a nossa função é permitir que a pessoa viva o mais plenamente possível, em qualquer fase e também nessa. Qualquer colega meu que não tenha fé não tem diferença em relação a mim, no rigor, no humanismo, na entrega, na qualidade, não tem. Não tem diferença.
Imagino que experiências tão intensas, que nos põem para lá daquilo que é um quotidiano expectável, ainda longe dessas situações, permitam a qualquer pessoa, seja religiosa ou não, ter uma experiência transcendente.
Tenho colegas que não são religiosas, mas que, de facto, assumem que é impossível não reconhecer que há uma transcendência, há algo que não se explica. Nós percebemos entre todos que não há diferença na forma como estamos, na forma como abraçamos. Fiz uma visita a uma senhora muito frágil, 30 quilos, muito doente, e que não falou comigo, que recusou falar. Não consegui perceber se foi porque não conseguiu ou se foi porque estava triste, extremamente triste, com a situação de estar dependente. Não sei… alguma coisa aconteceu ali. Mas, no momento em que a fui ajudar para se posicionar, eu abracei a senhora, e nesse momento a senhora abraçou-me… Nesse momento, eu chorei, emocionei-me e fiquei naquele abraço.
Depois, estava a falar nisso com uma colega, que não é crente, e que tinha ido fazer essa visita anteriormente. Estava a dizer-lhe “A senhora abraçou-me, e foi um momento tão… é abraçar a minha própria vulnerabilidade naquele momento; nós somos tanto, mesmo nesta vulnerabilidade tão grande”. E ela disse-me: “Eu também chorei na minha visita a essa senhora. Também me emocionei assim”…
No fundo, uma experiência de fraternidade.
Exatamente, uma experiência… e não foi isso que lhe aconteceu, não foi o abraço, foi outra coisa, mas emocionou-se com essa vulnerabilidade, com a fragilidade da senhora, com o filho estar a tentar fazer tudo, mas estar um bocado perdido com tudo isto. São as coisas com que nós lidamos, tão diferentes. Deus existir na nossa vida de forma consciente, e nós assumirmos essa crença, traz… A doutora Cristina [Galvão] costuma dizer “Esta é a oração que é ação”. Eu adoto essa frase. E sossega-me. Sossega-me perceber que isto tem algo que me transcende. Sozinha era impossível. Claro que tenho a equipa, mas… há algo mais que estou a pôr ao serviço e que não se explica como é que aconteceu.
Quando nos conhecemos e começámos a trabalhar juntas, a Cristina uma vez disse “Catarina, tu tens um dom”. Porque eu estava a começar a trabalhar em cuidados paliativos de forma oficial, pouquíssimo tempo depois de ter feito o mestrado. Eu não tinha experiência. Mas, a falar com as pessoas, com os doentes, tinha uma forma de fazer isso com cuidado, com respeito, com verdade. Conseguia misturar isso, e eu sei que consigo fazer isso, hoje consigo identificar, mas na altura não sabia. Não sabia que tinha essa capacidade.
Percebi que isto é muito mais do que a nossa dedicação, o nosso esforço. É algo que nós descobrimos e depois pomos ao serviço. E cada um de nós tem os seus dons para pôr a render. Escolhi esta profissão e ainda bem que isto se orientou para eu poder exercer algo que ajuda as pessoas e a mim própria perante a vulnerabilidade e a fragilidade.
Então, não se surpreendeu com o Vídeo do Papa do mês de fevereiro?
Só me surpreendo quando a Igreja não se associa. Não me surpreendeu e gostei muito do vídeo, porque toca em vários pontos que são absolutamente essenciais, daquilo que andamos a transmitir e a explicar às pessoas. O Papa Francisco, para além de ser importante para os católicos, é importante para a humanidade. Acho que ele ter feito este vídeo e ter explicado pelas suas palavras a diferença entre ser “incurável” e “incuidável” ajudou bastante a explicar a importância desta área. Não me surpreende absolutamente nada. Acho que é natural para a Igreja Católica empenhar-se para que as pessoas tenham acesso a cuidados de saúde adequados quando estão com uma situação de maior fragilidade por causa de doenças. Colaborar nisso faz todo sentido. E esta colaboração é importante.
Aquilo que eu gostaria que acontecesse era que a Igreja toda – os leigos e também o clero – tivesse esta consciência, esta reflexão, até porque há muitas oportunidades para que os padres, as pessoas que estão na vida religiosa, usem este conhecimento e ponham este conhecimento ao serviço. Porquê? Porque eles estão muitas vezes envolvidos em respostas sociais, em respostas em que há pessoas com doença, em respostas às pessoas com mais fragilidade e vulnerabilidade, em respostas às pessoas que estão no fim da vida. E, portanto, muitas destas pessoas que são da Igreja e têm responsabilidades a estes níveis devem ter também esta consciência e este saber na área da abordagem paliativa, centrada na pessoa, no alívio do sofrimento. Devem saber que pôr isto ao serviço das pessoas é essencial para que as pessoas possam viver plenamente a vida que têm, mesmo quando a vida está marcada por uma doença. Isto é fundamental e tem de ser uma lição de todos.
Comentários