Maria, sentada no chão e apoiada na barreira metálica do IC8, tapa parte da cara com a mão esquerda. Parece chorar, enquanto um bombeiro, com um garrafão de água ao seu lado, tenta confortar a mulher que vive há mais de 50 anos em Pedrógão Grande.
É uma das primeiras fotografias da agência Lusa naquela noite de 17 de junho e capta o desespero de Maria, muito antes de o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, anunciar que tinham sido registadas 19 mortes - o número viria depois a subir para 64.
Momentos antes de ser fotografada, avisou os bombeiros: "Eu disse: ‘estou bem, mas vão acudir àquele gente, que estão todos a morrer nos carros'. As pessoas não tinham noção do que estava a acontecer", frisa.
A 17 de junho, já depois de ter estado numa unidade de turismo rural a tentar combater as chamas, recebe a chamada da filha a avisar que na terra onde os seus pais viveram, Troviscais, "está tudo a arder à volta".
Pega no seu pequeno jipe e põe-se a caminho, mas no nó dos Troviscais não a deixaram passar e indicaram-lhe o caminho para Vila Facaia.
Com Maria Cravo, vai uma bombeira, que "não estava de serviço".
Às 18:30, a aldeia já arde à volta e procuram a casa de uma colega de Maria, chamada Susana Neves.
"Quando chegámos ao quintal, já estava em chamas e a bombeira saiu do carro para ajudar" no combate, conta Maria Cravo, à agência Lusa.
Entretanto, aparece Matilde, filha de Susana Neves, apenas com uma t-shirt e uns chinelos, que trazia indicações da bombeira: "Disse para me levares daqui para fora".
As duas deixaram para trás uma aldeia praticamente cercada, com quintais a arder, a ouvirem-se estrondos de botijas e de carros, como recorda a mãe de Matilde, que, na altura, olhando para as chamas e "bolas de fogo", apenas se lembrava daquilo que tinha ouvido na catequese quando era criança: "Começámos com água, haveremos de acabar com fogo".
Com a criança de sete anos no carro, Maria Cravo acelera em direção à nacional 236-1. Corta para Castanheira de Pera, mas as chamas, da altura dos eucaliptos, obrigaram-na a dar a volta e tentar Figueiró dos Vinhos, no sentido contrário.
Pouco depois, encontra aquilo que diz ser "um inferno autêntico".
Vários carros enfaixados, "fogo por cima, dos lados, sem hipótese de saída", um barulho ensurdecedor do vento, das chamas e um calor que fez derreter parte dos retrovisores do jipe.
À sua frente, estava um carro. Lembra-se de vultos a caírem nas bermas assim que tentavam sair do carro para fugir e recorda-se do veículo do seu lado esquerdo que, com quatro pessoas dentro, começou a arder.
Nisto, sofre uma pancada por trás, que com o fumo a visibilidade era pouca, e o seu jipe acaba por embater no veículo da frente que se desvia para a esquerda e lhe deixa a estrada livre.
Matilde perguntou-lhe: "A gente vai morrer? Disse que não", relembra.
"Pensei: tenho que sair daqui, nem que rebente com os ‘rails’’", conta, sublinhando que foi ‘prego a fundo’ e que se valeu da memória que lhe dizia que naquela zona era tudo a direito, que, mesmo com Matilde a tentar encontrar "a risquinha branca" da estrada, pouco se via.
"Se fico lá mais um minuto, rebentava tudo - o depósito e os pneus", frisa.
"No momento em que estive parada, ainda me passou pela cabeça desistir, ficar ali. Mas, depois, olhei para o lado e vi a Matilde. Tive vários anjos da guarda, um chama-se Matilde", realça.
Logo a seguir, rebenta um pneu do jipe, mas segue com o carro, corta no IC8 em direção a Ansião e apenas trava quando avista os bombeiros. Assim que abre a porta do veículo, cai para o chão - desmaia.
"Eu estava ali e não sabia se estava viva ou se estava morta, se estava acordada ou a dormir", diz Maria Cravo.
Seguiu para Avelar e, durante a noite, a mãe de Matilde ficou a saber que a sua filha estava bem.
Nas primeiras semanas após o fogo, Maria tentou adiar sempre o sono, para tentar escapar às imagens que lhe surgiam dos vultos que viu naquela estrada.
Muitos dias depois, conseguiu usar pela primeira vez o fogão. Até aí, nem um fósforo acendeu.
O risco preto nos olhos de Maria vai-se desfazendo enquanto fala à agência Lusa do que viu na estrada nacional 236-1. Não consegue conter o choro, assusta-se quando ouve uma sirene e as imagens ainda a atormentam.
"Tenho um peso grande que não sai", conta a cozinheira, de 63 anos, que trabalha na escola de Pedrógão Grande.
No outro dia, um dos alunos da sua escola perguntou-lhe quando é que voltaria a pôr "aquele sorriso" a que as crianças estavam "habituadas há anos".
"Eu não sei se vou voltar a ser aquilo que era", explica, sublinhando que, na vila, as pessoas poderão esquecer, mas nas aldeias as marcas estão mais vincadas. Há mães, pais, irmãos, filhos, avós, tios e primos enlutados, em que é transversal "o olhar ausente".
"Fui-me abaixo, mas acho que me vou conseguir erguer. Mas isto são como as imagens de guerra - nunca vão desaparecer. Eu queria ver se conseguia viver normalmente. Quero ter a minha vida de volta, quero seguir com a minha vida em frente, mas vai ser muito complicado e nem sei se o caminho vai ser longo ou vai ser curto. Mas esse peso grande vai ficar".
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