Théo L. foi agredido sexualmente por um polícia a 2 de Fevereiro, penetrado no ânus por um bastão telescópico, atacado com gás lacrimogéneo e pancadas na cabeça. O jovem de 22 anos, sem qualquer registo criminal, estava no bairro suburbano Aulnay-sous-Bois, ao norte de Paris, quando quatro polícias lhe pediram a identificação e o agrediram de forma brutal, acabando por ser internado no hospital, operado de urgência e com um prognóstico de internamento de dois a três meses.

Os polícias foram suspensos - um por acusação de violação e os outros por violência voluntária, mas todos negaram as acusações. A inspecção-geral da polícia francesa já revelou que se tratou de um "acidente" e não de uma violação.

Desde a noite de 6 de Fevereiro, começaram as manifestações de rua e, entretanto, dois jovens foram condenados a seis meses de prisão efectiva, enquanto outros três tiveram pena suspensa pelo mesmo período, acusados de "violências urbanas". No total, mais de uma dúzia de pessoas foi detida.

Para uma advogada de defesa dos jovens, o caso derrapou rapidamente para o lado político, a 7 de Fevereiro. "É a primeira vez que [o presidente François Hollande] se mexe por qualquer um de Aulnay-sous-Bois", lembrou, quando o caso já tinha sido ampliado pelo apoio de várias figuras conhecidas da sociedade francesa.

Outra advogada salientou que se estava a tentar dar o exemplo com a detenção destes jovens. Na cabeça de muitos, obviamente, estavam os eventos de 2005, uma recordação desagradável quando se está a três meses da eleição presidencial.

No final de Outubro de 2005, uma perseguição policial no subúrbio parisiense de Clichy-sous-Bois acabou com dois jovens de 15 e 17 anos a esconderem-se numa estação eléctrica, morrendo electrocutados e gerando uma enorme vaga de manifestações em toda a França durante três semanas. A 8 de Novembro, o então ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, teve de impor o estado de emergência.

Clichy-sous-Bois foi uma das zonas próximas de Paris onde agora as manifestações alastraram, à semelhança de Sevran, Montfermeil ou Tremblay (com a tentativa de incendiar uma esquadra de polícia), ou a outras cidades como Nantes (300 a 400 manifestantes), Lille (300 pessoas) e Rennes (200 manifestantes), segundo várias fontes.

Do hospital onde se encontra internado e ao lado de Hollande, Théo L. apelou à calma ("malta, parem a guerra, sejam unidos", disse). Isso parece ter funcionado em Aulnay-sous-Bois mas vai esta paz durar?

As manifestações também se deslocam

Um editorial do Le Monde explica o que se passa há vários anos: de cada vez que há tumultos, "o país excita-se por alguns dias, os media auscultam este profundo mal-estar, os sociólogos tentam decifrar esta fractura exposta, os especialistas lembram surtos anteriores de violência - as três semanas de motins urbanos de 2005 seguindo o drama de Clichy-sous-Bois, onde dois adolescentes foram mortos [ou] a conflagração mais antiga em Minguettes, um subúrbio de Lyon [onde, após a violência policial contra um jovem, emergiu uma marcha de 100 mil pessoas para Paris]. E depois cada um olha para o lado, a situação volta ao 'normal', a de uma tensão latente mas permanente. Até à próxima 'notícia', ao próximo 'erro'".

No fim de contas, diz ainda, "a França é o país da Europa onde a confiança da população na sua polícia é a mais fraca e onde a desconfiança da polícia para com os cidadãos é a mais forte".

Sebastian Roché é um dos sociólogos especializado nestas questões e considera que a polícia francesa fez pouco para melhorar a relação com os jovens, nomeadamente negros ou árabes, pobres ou desempregados, ou com as tensões em bairros ditos problemáticos. "Há uma situação de tensão estrutural entre a polícia e os bairros pobres, entre a polícia e os jovens saídos das minorias", constantemente sujeitos a controlos arbitrários de identificação pessoal na rua, enquanto "nenhum ministro da administração interna de direita ou de esquerda jamais pegou nesta questão", disse em entrevista.

Roché, do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble, sabe do que fala. Além de autor do recente livro "De la police en démocratie", é co-autor de um artigo científico sobre os eventos de 2005, onde explica como a violência se pode espalhar tal e qual como uma doença contagiosa.

Em "Epidemiological modeling of the 2005 French riots: a spreading wave and the role of contagion", os investigadores apontam ter sido o "motim mais longo e mais disperso geograficamente da história contemporânea da Europa". Sem líderes ou aproveitamentos políticos, os motins estavam confinados aos arredores das grandes cidades - em três semanas, as manifestações ocorreram em mais de 800 localidades de toda a França.

"Surpreendentemente, embora não houvesse deslocação de manifestantes, a actividade dos motins viajou", notam, explicando que o seu trabalho mostra pela primeira vez uma modelação baseada em dados à escala de um país e da "visualização da propagação em redor de Paris, mostrando uma onda de forma nunca antes descrita", e de como essa onda "viajou" e "contagiou" cidade após cidade ao nível de um país. Em suma, há um contágio, como se se tratasse da propagação de certas doenças biológicas.

Os investigadores tiveram acesso aos registos de todos os crimes de violência urbana registados pelas autoridades entre 26 de Outubro e 8 de Dezembro desse ano. O trabalho de investigação regista 6.877 eventos em 853 localidades, com 2.563 detenções.

Constataram que a "proximidade geográfica teve um grande impacto na propagação dos motins" mas assumem também como um "episódio" se inicia "com um certo número de indivíduos susceptíveis, alguns dos quais se tornam 'infectados' e começam o motim". Mas essas pessoas acabam por abandonar a "população infectada" para os tumultos devido às prisões, maior policiamento, medo ou fadiga.

Outro dado é que esses indivíduos tendem a ter um "comportamento racional e apenas se envolvem num evento quando o seu número é suficiente". Por outro lado, se "recuperados", não regressam aos tumultos também porque "uma vez que um distúrbio tenha terminado em determinada área, ele não se desencadeia novamente".

"A infecção ocorre através de contactos nas cidades" e a "proximidade física ainda é uma grande funcionalidade na circulação de ideias, neste caso de ideias de tumultos", mas também pelas redes sociais ou pela cobertura noticiosa, dizem os investigadores, e são estas "interacções de influência" as causadoras para os tumultos posteriores. Estes são normalmente desencadeados por um determinado "gatilho" (como pode ser o caso de Théo), uma tensão social (nomeadamente pelas "desvantagens sócio-económicas") e a sua disseminação local e global. "Quanto mais próximos os eventos, maior é a sua influência", colocam em hipótese, referindo que conseguiram modelar como o efeito global reproduz as "dinâmicas" sentidas a nível local.

Apesar da raridade de estudos deste tipo, os investigadores referem que o seu trabalho segue "ideias similares aplicadas a outros fenómenos sociais como a disseminação de ideias ou rumores e a propagação viral de memes na Internet".

Os motins de Paris em 2005

A informação é um vírus

Recentemente, um grupo de investigadores portugueses analisou precisamente este tipo de propagação no âmbito do marketing.

Em "Can information be spread as a virus? Viral Marketing as epidemiological model", Helena Rodrigues e Manuel Fonseca explicam que "na epidemiologia, uma epidemia é definida como a propagação de uma doença infecciosa para um grande número de pessoas numa dada população num curto período de tempo. No contexto do marketing, uma mensagem é viral quando é amplamente enviada e recebida pelo mercado-alvo através da transmissão pessoa-a-pessoa. Esta estratégia específica de comunicação de marketing é normalmente referida como marketing viral".

O trabalho lembra como esse marketing viral "explora as redes sociais existentes ao encorajar as pessoas a partilharem informação de produtos e campanhas com os seus amigos", também por email. "Este tipo de comunicação tem maior impacto no cliente, porque a informação é recomendada por amigos e parceiros das redes" e não pelas empresas de onde elas são originárias, obtendo "certas vantagens" relativamente à publicidade tradicional e "a capacidade de atingir grupos específicos de consumidores".

O modelo é semelhante ao que ocorre no apelo a manifestações ou tumultos: "quando uma mensagem de marketing se torna viral, é análoga a uma epidemia, dado que envolve uma transmissão pessoa-a-pessoa, espalhando-se numa população", dizem os investigadores. "A disseminação da mensagem em larga escala torna-se possível pela acção colaborativa de indivíduos nas redes virtuais", sendo inicialmente partilhada com certas pessoas para depois essa "informação ser espalhada como uma epidemia para um largo fragmento de potenciais consumidores".

Helena Rodrigues e Manuel Fonseca notam a existência de três vantagens para as empresas que, se aplicadas ao modelo de comunicação para o panorama dos criadores de tumultos, são potencialmente idênticas: "implica um investimento muito pequeno; o acto de encaminhar mensagens electrónicas com publicidade é voluntário e, portanto, pode ser visto de forma mais favorável; aqueles que passam as mensagens terão maior probabilidade de saber quem tem interesses semelhantes (uma segmentação mais eficaz)" e de forma mais rápida.