Segundo um comunicado do Conselho Superior da Magistratura (CSM), a sanção é aplicada pela “prática de uma infração disciplinar por dever de correção”.
Quatro membros votaram a favor da sanção, incluindo o presidente do Conselho, que tem voto de qualidade, e o vice-presidente, e a favor de pena por multa outros quatro membros, tendo sido ainda registadas sete abstenções.
Os membros que anteriormente tinham votado a favor do arquivamento do processo são os mesmos que hoje se abstiveram.
O Conselho decidiu ainda arquivar o processo em que era visada a juíza desembargadora coautora do acórdão em causa, por onze votos contra quatro, “por se terem entendido que não era exigível demarcar-se formalmente de expressões que não integravam o núcleo essencial da fundamentação, antes constituindo posições da responsabilidade exclusiva e pessoal do autor”.
Em declarações à agência Lusa, o advogado do juiz, Ricardo Serrano Vieira, disse que vai recorrer da decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, passo que estava decidido "desde o início do processo".
"Estava acordado desde o início que qualquer que fosse a decisão haveria recurso, ainda que no caso em concreto tenha sido aplicada uma sanção ligeira", afirmou.
O advogado disse ainda que vai esperar para ser notificado da decisão e "ver quais os fundamentos na sua base" para poder recorrer.
"Expressões proferidas pelo juiz são ofensivas"
O presidente do CSM considerou que as expressões proferidas pelo juiz desembargador Neto de Moura, nos acórdãos que relatou, são ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas.
“As expressões proferidas pelo juiz desembargador arguido, nos acórdãos que relatou, em especial no processo n.º 388/2014.6GAVLC.P1, ao referir-se à ofendida, enquanto “mulher adúltera”, como “dissimulada”, “falsa”, hipócrita” e “desleal” são ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas”, segundo o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que é por inerência presidente do CSM.
António Joaquim Piçarra votou a favor da sanção de advertência registada aplicada ao juiz Neto de Moura, autor de um acórdão em que minimizou um caso de violência doméstica pelo facto de a mulher agredida ter cometido adultério.
Na sua declaração de voto, António Joaquim Piçarra refere que a independência dos juízes é um valor fundamental do Estado de Direito e da democracia e implica a capacidade de decidir sem constrangimentos assim como a faculdade de fundamentar e motivar as decisões de forma absolutamente livre.
Contudo, considera que essa independência não é compatível com a utilização de expressões que ultrapassam o limite da ofensa.
“O princípio da independência não é compatível, porém, com a utilização de expressões que ultrapassam o limite da ofensa ou do respeito devidos a qualquer interveniente processual, seja na fundamentação escrita de qualquer decisão, seja na condução oral de qualquer diligência processual”, escreveu António Joaquim Piçarra.
O presidente do CSM e do STJ acrescenta que “a valoração da prova é absolutamente insindicável por este Conselho, porque integra o tronco central do princípio da independência”.
Todavia, acrescenta, “as referidas expressões exorbitam a valoração da veracidade do depoimento da ofendida sobrelevando das mesmas o seu caráter ofensivo, que se constitui em infração disciplinar por violação do dever de correção”.
Já o vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, Belo Morgado, que também votou a favor da sanção, considerou que “a fundamentação das sentenças não pode resvalar para o campo não jurídico, de discussão moral, ideológica, religiosa ou panfletária, em especial quando esteja em causa a defesa de teses manifestamente contrastantes com valores essenciais da Ordem jurídico-constitucional (mormente, de tipo racista, xenófobo, sexista, homofóbico, etc.)”.
Na sua posição sobre a matéria o juiz Belo Morgado defende que “a fundamentação de decisões judiciais com recurso a elementos que não constituem fontes de direito, enunciados enquanto argumento histórico, social ou cultural, secundários e coadjuvantes do regime jurídico vigente, não envolve, só por si, qualquer desvalor da decisão, podendo até, em certos casos, contribuir para o enriquecimento da mesma.
No entanto, acrescenta, as decisões judiciais constituam espaço de expressão vinculada ao quadro de valores jurídico-constitucionais, que sobrepõe ao quadro particular de valores perfilhado por cada pessoa concreta.
Para o juiz Belo Morgado, está fora da esfera de proteção do princípio da independência “a utilização de expressões graves e desnecessariamente ofensivas dos intervenientes processuais, em especial quando as mesmas, no limite, até possam assumir relevância jurídico-criminal”.
Além disso, frisou, “é notório que a utilização de expressões ofensivas nas sentenças é incompatível com os imperativos de dignidade, decoro, retidão, probidade, prudência e sobriedade inerentes às funções dos magistrados judiciais, colocando fortemente em causa a confiança dos cidadãos nos tribunais e o prestígio/credibilidade dos Juízes”.
A 29 de janeiro, o CSM tinha rejeitado uma proposta de arquivamento do processo disciplinar instaurado ao juiz Neto Moura.
Em comunicado, o Conselho referiu na ocasião que no caso em apreciação as expressões e juízos utilizados "constituem infração disciplinar", pelo que rejeitou o projeto de arquivamento apresentado a plenário e determinou a mudança de relator, para apresentação de novo projeto na próxima sessão do plenário, a 05 de fevereiro.
O CSM escreveu ainda que "ponderou que a censura disciplinar em função do que se escreva na fundamentação de uma sentença ou de um acórdão apenas acontece em casos excecionais, dado o princípio da independência dos tribunais e a indispensável liberdade de julgamento, circunstancialismo que se considerou verificado no caso vertente, em virtude de as expressões em causa serem desnecessárias e autónomas relativamente à atividade jurisdicional”.
A deliberação do CSM foi aprovada por oito votos a favor e sete contra.
O processo de inquérito foi instaurado a 25 de outubro de 2017 na sequência de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto que minimizou um caso de violência doméstica pelo facto de a mulher agredida ter cometido adultério.
No acórdão, datado de 11 de outubro de 2017, o juiz relator, Neto Moura, faz censura moral a uma mulher de Felgueiras vítima de violência doméstica, minimizando este crime pelo facto de esta ter cometido adultério.
O juiz invoca a Bíblia, o Código Penal de 1886 e até civilizações que punem o adultério com pena de morte, para justificar a violência cometida contra a mulher em causa por parte do marido e do amante, que foram condenados a pena suspensa na primeira instância.
“O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, lê-se na decisão do tribunal superior, também assinada pela desembargadora Maria Luísa Abrantes.
[Notícia atualizada às 21h26 - Inclui decisão de recurso pelo juiz Neto Moura e declarações de juízes do Conselho Superior de Magistratura]
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