De sua tribuna, o líder Kim Jong Un prestou a maior atenção à apresentação, neste sábado, do míssil balístico intercontinental (ICBM). Instalado num veículo-lançador que desfilou na Praça Kim Il Sung, em Pyongygang, o momento da apresentação foi o clímax de um desfile noturno sem precedentes.

É o "maior míssil móvel de combustão líquida já visto até hoje", escreveu no Twitter Akit Panda, da Federação de Cientistas Americanos, uma ONG que analisa os riscos associados à energia nuclear.

Para Jeffrey Lewis, do Middlebury Institute, é "claramente destinado a testar o sistema de defesa antimísseis americano no Alasca". Se o míssil balístico intercontinental comportar três ou quatro ogivas, explicou, os Estados Unidos terão de gastar cerca de mil milhões de dólares para ter de 12 a 16 mísseis interceptores para cada míssil.

"A este preço, tenho quase certeza de que a Coreia do Norte pode adicionar ogivas mais rápido do que podemos adicionar interceptores", sublinhou.

O comprimento desse míssil é estimado em 24 metros e seu diâmetro em 2,5 metros, o que, segundo o especialista Markus Schiller, permite transportar 100 toneladas de combustível. É, no entanto, tão grande e pesado que é praticamente inutilizável, frisou.

"Isto não faz absolutamente nenhum sentido, exceto em um contexto de equação de ameaça de envio da seguinte mensagem: 'Agora temos um ICBM móvel com MIRV, tenham medo'".

Os especialistas em temas relacionados com a Coreia do Norte apontam, com regularidade, que os dispositivos exibidos por Pyongyang durante os desfiles podem ser modelos e que não há evidências de que funcionem até que sejam testados.

No sábado, o míssil estava num veículo de 11 eixos, nunca visto antes. Este modelo é muito maior do que os veículos de oito eixos fabricados na China e até agora usados no Norte.

"Este dispositivo é talvez mais assustador do que o míssil", declarou Melissa Hanham, investigadora da organização Open Nuclear Network.

"Se a Coreia do Norte for capaz de produzir os seus próprios chassis, haverá menos restrições no número de ICBMs que poderá lançar".

"Gostemos ou não, a Coreia do Norte é uma potência nuclear e provavelmente a terceira potência nuclear capaz de atingir cidades americanas, depois da Rússia e da China"

Pouco antes de ser empossado presidente dos Estados Unidos em 2017, Donald Trump tuitou que a Coreia do Norte "não teria sucesso" em desenvolver uma arma que pudesse atingir o território americano.

O primeiro ano do seu mandato, em que viu a Coreia do Norte lançar um ICBM capaz de atingir esse objetivo, foi marcado por uma série de trocas de insultos entre Trump e Kim antes de uma histórica reaproximação diplomática.

As negociações sobre a desnuclearização da Coreia do Norte estão paralisadas desde o fracasso da cimeira de Hanói, em 2019.

Este ICBM é a prova de que a Coreia do Norte continuou a desenvolver seu arsenal militar ao longo do processo diplomático, dizem os especialistas, o que dá a Pyongyang mais força para exigir um retorno à mesa de negociações.

"Gostemos ou não, a Coreia do Norte é uma potência nuclear e provavelmente a terceira potência nuclear capaz de atingir cidades americanas, depois da Rússia e da China", declarou à AFP Andrei Lankov, do Korea Risk Group.

Kim queria enviar uma mensagem aos Estados Unidos para mostrar que melhorou o seu armamento e que se  "não querem fazer um acordo agora, terão que fazer isso mais tarde, o que seria pior para a comunidade internacional", acrescentou.

Mais de 12 horas após o final do desfile, a televisão norte-coreana noticiou que nem Trump nem seu rival democrata Joe Biden haviam publicado qualquer tweet sobre o assunto.

De acordo com Shin Beom-chul, do Instituto de Investigação de Segurança Nacional da Coreia, ao exibir o míssil em vez de lançá-lo, Pyongyang evitou cruzar a linha vermelha.

"Mas também mostra que a Coreia do Norte poderia prosseguir com um lançamento se Trump for reeleito e ignorar a questão norte-coreana", disse à AFP. No entanto, "se Biden for eleito e não ouvir a Coreia do Norte, o país fará um lançamento".

Desfile assinalou os 75 anos da fundação do Partido dos Trabalhadores - e Kim Jong Un aproveitou para celebrar o facto de "nem uma única pessoa" ter contraído o coronavírus no país

A apresentação do novo míssil balístico fez parte das comemorações do 75º aniversário da fundação do Partido dos Trabalhadores no poder. O regime coreano festejou o acontecimento depois de fechar suas fronteiras há oito meses para se proteger do coronavírus, do qual não notificou nenhum caso.

No seu discurso, Kim Jong Un celebrou o facto de "nem uma única pessoa" ter contraído o coronavírus no país e afirmou que deseja "boa saúde a todas as pessoas do mundo que estão a lutar contra os males deste terrível vírus".

A emissora pública KCTV transmitiu imagens de esquadrões de soldados armados e veículos blindados, alinhados nas ruas de Pyongyang, prontos para desfilar pela Praça Kim Il Sung, em imagens noturnas.

Nem os participantes nem o público presente usavam máscara, mas havia muito menos cidadãos do que normalmente na praça.

A transmissão começou com a imagem de um cartaz de propaganda, apresentando três norte-coreanos com os símbolos da foice, martelo e pincel e o slogan "A maior vitória do nosso grande partido".

Em geral, os desfiles norte-coreanos são encerrados com um míssil que o governo quer destacar do seu arsenal, e os observadores tendem a prestar especial atenção a isso, em busca de alguma pista sobre o desenvolvimento de armas do Norte.

"Continuaremos a fortalecer nosso Exército, para fins de autodefesa e dissuasão", declarou o líder norte-coreano no seu discurso.

A comemoração do aniversário do Partido dos Trabalhadores significa que a Coreia do Norte "tem uma necessidade política e estratégica de exibir algo grande", interpretou Sung-yoon Lee, um professor coreano da Universidade Tufts, nos Estados Unidos.

A demonstração de armas mais avançadas "marcará um grande passo à frente na capacidade real de ameaça de Pyongyang", assegurou.

Ao contrário de outras ocasiões, a imprensa estrangeira não foi autorizada a assistir ao desfile e, como muitas embaixadas estão fechadas por causa do coronavírus, quase não havia observadores estrangeiros na cidade.

A embaixada russa em Pyongyang publicou uma mensagem na sua página do Facebook pedindo aos diplomatas e outros representantes internacionais que não "se aproximem ou tirem fotos" das comemorações.

No final de dezembro, Kim ameaçou revelar uma "nova arma estratégica", mas analistas acreditavam, até ontem, que Pyongyang tentaria não arriscar as suas chances com Washington antes das próximas eleições presidenciais em novembro.