Desde meados de março que todos os espetáculos presenciais foram cancelados e os espaços culturais fechados devido às restrições sanitárias para combater a pandemia da covid-19, que já provocou milhares de vítimas em todo o mundo.

Na área da dança, há uma grande preocupação sobre a subsistência dos artistas e a sobrevivência da sua atividade, "a mais pobre de todas as artes", como foi definida, nos depoimentos a propósito do atual contexto de crise.

"Os profissionais liberais estão muito mal porque dependem deste trabalho para viver, só recebem consoante os espetáculos que fazem. São situações muito complicadas. Quem tem salário mensal está melhor, mas é uma minoria", disse à Lusa Francisco Camacho, coreógrafo e bailarino.

O fundador e diretor artístico da EIRA - estrutura de produção artística com sede em Lisboa que promove o Cumplicidades-Festival Internacional de Dança Contemporânea, este ano interrompido poucos dias depois de apresentar alguns espetáculos - indicou que a entidade recebe apoios financeiros da Direção-Geral das Artes e da Câmara Municipal de Lisboa, mas "as outras receitas estão bloqueadas".

Todos os programas que tinha previstos foram cancelados, em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente um projeto que Francisco Camacho tinha como assistente da bailarina e coreógrafa norte-americana Meg Stuart.

"Algumas pessoas estão a dar aulas pela internet, outras preparam projetos, ou aproveitam para repensar a sua situação. Mas há uma grande angústia provocada pela incerteza desta situação. Não sabemos quando poderemos voltar aos espetáculos, porque a nossa atividade depende do contacto com o público", avaliou.

Sobre a possibilidade do gradual regresso à normalidade começar pelos espetáculos de rua, o criador comentou que "é uma possibilidade, mas não será uma solução para toda a gente", e "seria empobrecedor ficar limitado a esse formato".

Sobre a sobrevivência da EIRA, o diretor não está a pensar em avançar para 'lay-off', porque, com os apoios que ainda tem, pretende redimensionar os gastos, e também organizar novos agendamentos.

Além disso, fez um pedido de apoio ao fundo anunciado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e também está a incentivar os bailarinos com quem trabalha habitualmente a pedirem apoios.

"Estamos a falar mesmo em sobrevivência. Haverá companhias que podem fechar porque há muita incerteza sobre o futuro. Não sabemos se isto vai durar três meses ou um ano. É tão incerto o que vem aí que angustia bastante os artistas", confessou à Lusa.

Sabe que muitos bailarinos estão a receber ajuda da família ou de amigos, "mas mesmo partilhar espaços e custos é difícil, devido às exigências da quarentena".

Sobre os apoios públicos e privados já anunciados para os artistas considera que são insuficientes: "Não vão colmatar as muitas necessidades que há por todo o país".

Os bailarinos tentam adaptar-se o melhor que podem ao isolamento social, mas a falta de espaço amplo para treinarem o corpo e dançarem é um forte impedimento prático.

"Nas primeiras semanas fiquei bloqueado com o que se estava a passar. As notícias sobre as vítimas da pandemia e o impacto da quarentena eram drásticas. Agora tento manter-me em forma em casa, faço pesquisa sobre o movimento, procuro ocupar-me em imaginar projetos", relatou à Lusa sobre o seu quotidiano.

"Os bailarinos são a minha maior preocupação", disse por seu lado a coreógrafa Tânia Carvalho, contactada pela Lusa, que não tem uma companhia própria, mas possui uma empresa unipessoal para organizar os seus projetos na área da dança, para os quais contrata bailarinos pontualmente.

A incógnita sobre o futuro e o regresso da "normalidade" trouxe-lhe também as vicissitudes dos cancelamentos: "De início fiquei parada e até me estava a custar trabalhar em vários projetos em curso, coreografias futuras".

"Mas são os bailarinos que estão realmente em situação grave. Estão parados, sem acesso a estúdios para dançar, sem ânimo, com os corpos a ficar perros", descreveu.

Em 2018, a coreógrafa foi alvo de uma homenagem pelos 20 anos de carreira no Teatro São Luiz, o Teatro Maria Matos, e a Companhia Nacional de Bailado, que apresentaram várias peças icónicas e estreias.

Apesar de ter concorrido aos apoios sustentados da DGArtes, não recebeu qualquer financiamento para 2020/2021.

"Para já estou bem. Acho que me consigo aguentar alguns meses. Sempre fui organizada financeiramente, mas se esta crise durar muito tempo, não sei. Tenho para já o mínimo para manter a empresa", avaliou, em declarações à Lusa.

Para os bailarinos, a situação é outra: "Os apoios anunciados são bons mas não chegam. Eles recebem muito pouco com os apoios aos recibos verdes. Penso que os cancelamentos deveriam ser pagos", sugeriu.

O coreógrafo Vasco Wallenkamp recorda que "a dança é a mais pobre de todas as artes" para apelar a mais apoios para os bailarinos do país.

"Estou convencido de que há uma disposição para apoiar as estruturas mais carenciadas nesta situação de desgraça provocada pelos cancelamentos dos espetáculos", disse à Lusa.

O coreógrafo e ex-bailarino, que já dirigiu a Companhia Nacional de Bailado, tem companhia própria - a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo - que completa este ano duas décadas de existência.

Depois de uma paragem em 2014, a companhia recebeu um apoio privado da Allianz Portugal que lhe deu um novo fôlego, mas o cancelamento de espetáculos previstos para 2020 podem representar uma perda de 40 mil euros de receitas essenciais para as despesas.

Com os cancelamentos de espetáculos previstos para a Gulbenkian e uma digressão a Macau, entre outros, "pode não ser possível pagar mensalmente aos bailarinos", receia Vasco Wallenkamp.

A companhia emprega 12 bailarinos a quem paga regularmente, em recibos verdes, um modelo de sustentabilidade que o diretor quer manter "até poder".

"Eles não têm culpa nenhuma do que se passa", desabafou o coreógrafo à Lusa, que, mesmo nesta situação inédita, está convencido de que "vai ser possível retomar a atividade no futuro, mas com um grande sacrifício dos artistas".

O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já infetou cerca de 1,4 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais morreram mais de 82 mil.

Em Portugal, segundo o balanço feito hoje pela Direção-Geral da Saúde, registaram-se 380 mortes e 12.442 casos de infeções confirmadas, o que representa um aumento de 699 em relação a terça-feira (+5,6%).

Portugal encontra-se em estado de emergência desde as 00:00 de 19 de março e até ao final do dia 17 de abril, depois do prolongamento aprovado na quinta-feira na Assembleia da República.

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