Uma vacina leva anos a desenvolver — entre a investigação, aprovação e a chegada das primeiras doses à população —, mas para travar a covid-19 a comunidade científica arregaçou mangas e em poucos meses conhece-se não uma, mas várias vacinas contra o "bicho" que fez de 2020 o ano da pandemia. No plano de vacinação nacional para a covid-19, os profissionais de saúde têm prioridade e se há quem não hesite em dizer que quer ser vacinado o quanto antes, outros preferiam deixar esse passo para mais tarde, já que os receios são muitos.
A vacina será facultativa — sim, é possível em circunstâncias muito específicas ponderar a obrigatoriedade da vacina, mas qualquer decisão tem de respeitar a Constituição — e é essencial para o regresso à normalidade. O primeiro lote chegou hoje a Portugal e a vacinação arranca este domingo, 27 de dezembro.
Andreia Leitão é enfermeira no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa. É um hospital covid free, ou seja, sem a "linha da frente" de que tanto se fala nos últimos meses. Mas não é por isso que a preocupação com a pandemia fica de fora. Além das pessoas que habitualmente são tratadas no hospital particular, agora chegam também "doentes da ARS, do Sistema Nacional de Saúde, que precisam de cuidados médicos ou cirúrgicos e que neste momento não os conseguem ter em tempo útil por causa da confusão que está instalada em termos da covid-19", começa por contar ao SAPO24.
O risco está em todo o lado, tanto dentro como fora das instalações hospitalares, ou não estivéssemos a falar de uma pandemia. Durante vários meses, e o mais provável é que assim continue — já que a campanha de vacinação corre em 2021, mas isso não significa que a pandemia acabe no próximo ano —, a palavra de ordem foi prevenção. Os equipamentos de proteção individual, a testagem regular e os cuidados com a desinfeção fazem parte do dia-a-dia dos profissionais de saúde, mas o inverno trouxe uma preocupação acrescida: a gripe e o peso que esta pudesse ter na capacidade de resposta das unidades de saúde já sobrecarregadas com a covid-19.
Rapidamente a vacina da gripe se tornou um balão de ensaio para a vacina contra a covid-19 que haveria de chegar. Será que a vacina chega a todos? Não chegou. Se a vacina da gripe é velha conhecida e já muitos não a tomam por opção, que dizer da vacina contra a covid-19, desenvolvida em poucos meses? E se houver um profissional de saúde que não a queira tomar, é obrigado?
Andreia tomou uma decisão diferente este ano. "Fui vacinada para a gripe, ao contrário dos anos anteriores. Dantes vacinava, depois interrompi porque ficava sempre doente a seguir à vacinação. Tinha sempre uma gripe daquelas à séria e deixei de fazer. Só que este ano, devido a estas características da pandemia, era aconselhável que os profissionais de saúde o fizessem, bem como todos os grupos de risco", começa por explicar, evidenciando que tal "evitava que houvesse sintomas respiratórios que possam confundir-se com a covid-19".
"Vacinei-me mais nesse sentido de consciência social, porque não sou muito fã da vacina da gripe. Este ano até correu bem e não tive nada, mas os meus colegas também fizeram e houve muita gente a ficar com dores no corpo e febre. Eu por acaso não", confidencia.
É Andreia quem nos apresenta Vera Malta, enfermeira no Hospital de São João, no Porto. Ao contrário da ex-colega de trabalho, do tempo em que esteve em Lisboa, Vera lida "todos os dias" com doentes infetados com SARS-CoV-2. Está há um ano no serviço de urgência.
"Consegui apanhar a urgência normal e depois, em março, quando começou a covid, toda a reorganização que a urgência sofreu, para fazer face aos números de doentes covid e não covid", começa por contar ao SAPO24. Na linha da frente, o ritmo é alucinante e nunca se sabe de onde pode espreitar o vírus. Agora, já na segunda vaga, Vera consegue olhar para trás e ver diferenças — o que a leva a ponderar os passos futuros.
"Nós sabemos que podemos ser um veículo de transmissão de doenças, entre nós e para os doentes"
"A primeira vaga foi um bocadinho mais assustadora porque havia pouca informação. Esta segunda vaga está a ser mais fácil de encaixar neste sentido, já estamos muito mais preparados e a população mais consciente do que é [a covid-19]. Mas o trabalho diário com os doentes é muito mais pesado em termos pessoais, em termos psicológicos e em termos físicos, porque o fato e todas as coisas que temos de usar — durante um período que às vezes vai até quatro horas — é um bocadinho limitador e limita também a avaliação dos doentes, porque temos de os auscultar e fazê-lo por cima dos fatos não é tão fácil como se pudéssemos pôr o estetoscópio nas nossas orelhas", exemplifica.
Pensando no bem-estar dos doentes e também em todo o contexto que se vive, Vera Malta também foi vacinada contra a gripe neste inverno. "Por escolha própria, eu nunca faço a vacina da gripe. Mas no São João temos um serviço de saúde ocupacional que de facto se preocupa connosco. Estou super feliz por trabalhar ali, acho que estou no melhor sítio para enfrentar a pandemia. Fui mesmo muito abençoada!", refere, explicando que toda a equipa com que trabalha foi "vacinada para a gripe, com vacinas distribuídas no próprio serviço".
Tal como Andreia e Vera, também João Silva, enfermeiro no Centro Hospitalar do Oeste, em Torres Vedras, optou pela vacina este ano. "A maior parte dos profissionais de saúde veem como um dever cívico porque é uma maneira de contribuir para que não haja um maior agravamento do quadro [de saúde pública] em que vivemos. Os doentes podem ter covid e ainda levam com o vírus da gripe em cima. Nós sabemos que podemos ser um veículo de transmissão de doenças, entre nós e para os doentes", explica ao SAPO24.
Contudo, a vacina não chegou a todos os profissionais. Por decisão própria ou pelas circunstâncias que nem sempre se controlam. Foi este o caso de Gonçalo Pinto, enfermeiro das Forças Armadas a trabalhar no Hospital Militar no Lumiar, bem como no atendimento do SNS24.
Ao SAPO24, conta que desde 2009, ano em que começou a trabalhar, tomou a vacina da gripe poucas vezes. "Alguns anos fui vacinado, noutros os surtos não eram tão grandes e eu achava que estava bem e não fui à procura da vacina. Vacinei-me duas ou três vezes e funcionou muito bem, achei que nunca mais precisava daquilo porque nunca mais me constipei. E é mesmo verdade", começa por dizer.
Este ano a situação seria diferente — e equacionou fugir à regra dos últimos tempos, o que acabou por não acontecer. "Estava em adaptação a novas funções e na entrega ao serviço deixei sobrepor-se a opção de voluntariado quando havia um calendário a cumprir para declarar a intenção de ser vacinado para a gripe", confidencia.
Da gripe para a covid-19, a consciência manda vacinar
Quando a conversa passa da gripe para a atual pandemia, as reações dos quatro enfermeiros com quem o SAPO24 falou relativamente à vacinação assemelham-se. Há medo, natural do ser humano, mas é contrabalançado por uma forte noção da responsabilidade. Todavia, se há quem não hesite em dizer que sim à vacina logo num primeiro momento, também há quem prefira esperar mais para o fim para a tomar.
Vera Malta está a viver sozinha desde o início da pandemia e assim continuará pelo menos até julho, "enquanto isto não se encaixar" — e até o Natal foi passado a trabalhar. Viver em "situação de crise" na saúde não é, contudo, uma novidade. "Durante estes 15 anos em que estive em Lisboa [a estudar e trabalhar], passei seis anos a trabalhar em Angola, pelo que tenho um processo diferente de encaixe porque já trabalhei em urgência de catástrofe. Mas é muito difícil. Tenho alguns colegas com mazelas um bocadinho difíceis de contornar. Depois ainda há o cansaço, porque as nossas férias foram canceladas e isso também leva a que haja uma exaustão um bocadinho mais difícil, porque não temos escape", desabafa.
"Apesar de termos algum receio, na verdade confiamos em todo o processo de investigação ao qual a vacina foi sujeita"
Desta forma, a saída de toda a confusão passa obrigatoriamente pela vacina. A dias de começar a vacinação — que numa primeira etapa chega aos profissionais de saúde de cinco centros hospitalares, entre eles o São João —, Vera recebeu um email que dá início a todo o processo.
"Temos um email institucional, por onde recebemos tudo o que é informação, protocolos, formas de atuação nacionais ou mais específicas do pólo onde trabalhamos. Ontem [20 de de dezembro] recebi um email com o plano de vacinação que se vai fazer a nível nacional e o que pretendem para o hospital, tendo em conta os vários serviços", revela.
"Logo a seguir recebi um email do meu chefe a dizer que até hoje [21 de dezembro] ao final do dia ele tinha de saber se eu queria ou não ser vacinada, porque a vacinação vai começar a ser feita no dia 27. Eu disse que sim e o feedback do meu serviço é que vamos todos fazer", garante.
Questionada sobre o medo que este passo pode trazer, Vera tem a resposta pronta. "Como trabalhamos todos os dias com doentes covid e também com epidemiologistas, temos acesso a pessoas que sabem mais. Apesar de termos algum receio, na verdade confiamos em todo o processo de investigação ao qual a vacina foi sujeita e então a nossa postura inequívoca é que sim, vamos ser todos vacinados", assegura.
Contudo, há sempre pontas soltas que é preciso referir. "Em saúde — e já o meu pai era médico —, não há preto ou branco, não há verdades absolutas. Faz-me menos confusão eu ser vacinada, que não tenho comorbilidade alguma e sou nova, do que se calhar uma pessoa mais velha ou com alguma doença. Da informação que eu tive e da posição dos meus colegas, a vacina não foi testada tão bem em doentes com muitas comorbilidades", refere a enfermeira do São João.
"Se somos um veículo de transmissão — porque é possível, trabalhando com doentes positivos e com não positivos —, é preciso proteger os negativos. Vou fazer a vacina não porque tenha receio de apanhar o vírus, mas porque a minha preocupação é proteger os meus doentes não covid. Eu não tenho medo de apanhar, isto não é uma coisa que me preocupe todos os dias. Mas tenho medo de passar", conta. "O meu comportamento é de possível positiva", remata.
"Qualquer medicamento tem um risco de fazer efeitos adversos, isso está sempre descrito, seja uma vacina ou não"
João Silva, que está em contacto com doentes no bloco operatório, também não hesita em dizer que assim que possível toma a vacina contra a covid-19, um "ato que fica na consciência de cada um".
"Na área onde estou a trabalhar são cirurgias programadas, todos os doentes têm de fazer o teste pelo menos com 48 horas e tem de dar negativo, obviamente. Para além disso, é-lhes feito um questionário rigoroso para tentar perceber se há algum risco ou não, apesar do teste. Pode haver sempre um falso negativo e tentamos reduzir ainda mais o risco. Mudámos muita coisa em termos de procedimento no bloco operatório, sempre que fazemos anestesias em que há manipulação da boca do doente, se é uma anestesia geral e temos de colocar um tubo, utilizamos os EPI, todo o fardamento, como se o doente fosse positivo. Para nós, fisicamente, é muito penoso porque passamos muitas horas com aqueles equipamentos todos vestidos e chegamos ao final do dia muito mais cansados", refere.
Por isso, vê a chegada da vacina como um passo importante e afirma que "não há outra forma de controlar a pandemia".
"Eu vou ser vacinado. Existe muita preocupação em relação à vacina, sobre os efeitos adversos. Qualquer medicamento tem um risco de fazer efeitos adversos, isso está sempre descrito, seja uma vacina ou não. A única vacina em que é utilizado um agente patogénico vivo é a da BCG. Todas as outras são agentes inertes e logo aí não existe o risco de padecer da doença para que está a ser vacinado. Pode é dar reações alérgicas ou anafiláticas, mas isso é um risco que corremos com todos os medicamentos que fazemos e com todas as vacinas a que nos sujeitamos", lembra.
Além disso, segundo o enfermeiro de Torres Vedras, as dúvidas das pessoas baseiam-se também em mitos que vão ficando ao longo dos anos. "Existe na cabeça das pessoas um fantasma sobre os efeitos adversos das vacinas. Isto surgiu de um falso estudo que ocorreu na década de 70 ou 80, em que associavam as vacinas ao aparecimento do autismo. Isso foi uma coisa que foi desmistificada, acho que os intervenientes foram condenados e presos — e nem tem fundamento científico. O ruído permaneceu e ainda hoje há pessoas que têm receio das vacinas, mas o que é certo é que a esperança média de vida aumentou de uma forma muito significativa nos países ocidentais e mesmo em alguns países africanos porque grande parte da população foi vacinada. A verdade é que conseguimos erradicar uma série de doenças através da vacinação".
Por outro lado, João Silva lembra que existe medo — até entre médicos e enfermeiros, o que acaba por ser natural. "Há pessoas que, apesar de serem profissionais de saúde, parece que também estão contaminadas por esses receios irracionais. No final no dia, somos pessoas iguais às outras. Apesar de toda a informação que adquirimos nos cursos de base ou ao longo da profissão, temos os mesmos receios primários que todas as outras pessoas", diz.
A certeza da vacina e a dúvida no processo — mas o exemplo é necessário
Andreia Leitão refere outro tipo de receio: o de quem, por estar na área, sabe como estas descobertas científicas se processam. "Sou muito sincera, tenho algum receio da vacina porque acho que, como todos os medicamentos desenvolvidos tão rapidamente, não há tantos testes assim. Há-de haver efeitos secundários que ainda não estão bem explícitos", começa por referir. "Nós, profissionais de saúde, pomos mais questões porque estamos dentro do campo e vemos mais ao pormenor", completa.
"Temos mesmo de aproveitar [a vacina], esta é a nossa janela de respiração, caso contrário não vamos sair disto tão depressa"
Contudo, afirma que se vai vacinar. "Tem de ser, é a única forma que temos de, como grupo, eliminar isto. Não vale muito a pena haver uma vacina e depois imensas pessoas não serem vacinadas. Assim não vai dar resultado em nada: não se vai criar imunidade, o vírus vai acabar por sofrer mutações e acabamos por andar nisto mais não sei quanto tempo. Por isso serei vacinada quando chegar a minha altura", assegura.
Apesar de não esconder algumas dúvidas, explica que também cabe aos profissionais de saúde dar o exemplo neste passo necessário. "Se nós nos recusarmos a tomar, por várias coisas, não faz sentido. As pessoas falam muito, porque não se conhecem os efeitos secundários. Há sempre o 'será que...'. Mas se nós nos recusarmos, estamos a dar aso a que as pessoas no geral também se recusem e isso não pode acontecer. Temos mesmo de aproveitar, esta é a nossa janela de respiração, caso contrário não vamos sair disto tão depressa. Vamos ter de tentar ir por aqui, para vacinar o mais possível", lembra a enfermeira do Hospital da Cruz Vermelha.
Neste sentido, fala dos companheiros de trabalho. "Tenho ouvido muita gente com o mesmo receio que eu, de não ter havido tempo suficiente para perceber que efeitos adversos é que a vacina pode ter que não sejam ainda reconhecidos. Mas ninguém me verbalizou que não quisesse ser vacinado, acho que até pelo contrário, as pessoas querem mesmo ser vacinadas".
Para justificar a necessidade de correr o risco, a enfermeira dá um exemplo prático. "Pode nunca se ter tomado um ben-u-ron e na primeira vez faz-se uma reação desgraçada e fica-se com necessidade de ventilação porque se fez um edema da glote [reação alérgica grave]. Nunca se sabe a não ser na primeira vez que se toma, isto é a mesma coisa", assegura.
Quanto toca à vacinação, também existem Velhos do Restelo
Gonçalo Pinto, com experiência em missões no estrangeiro, sabe o que é enfrentar a necessidade da vacinação para fechar a porta a complicações ao nível da saúde. "Temos de entender que descobrimos, através da ciência, como controlar as doenças. Já não somos navegadores à procura de terras desconhecidas e que levamos as nossas patologias para outros locais ou trazemos outras de lá. Temos de erradicar doenças e é para isso que existem vacinas", atira.
Todavia, o enfermeiro confessa-se dividido quanto à decisão de tomar no imediato a vacina contra a covid-19.
"Como não há uma obrigatoriedade, há mais do que uma perspetiva. Uma é o dever de me proteger, que está intimamente interligado ao de proteger a comunidade — que não é aqui a minha vizinhança, mas a pandémica, a nível global. Portanto, se eu apanhar o vírus hei-de distribuí-lo de certeza, por isso mais vale proteger-me e protejo assim o sistema pandémico geral", começa por dizer.
"Temos receio, como seres humanos, de coisas novas e desconhecidas. Todos nós temos cá dentro o Velho do Restelo"
"Mas depois há a perspetiva particular. A covid-19 faz lesões, pelos vistos multissistémicas. E há receios porque não temos referências estudadas para trás, isto tem meses. E não temos estudos nem referências [sobre o efeito da vacina]. Sabemos o que uma pneumonia faz a longo prazo, sabemos o que uma hepatite faz, mas não sabemos, senão por extrapolação, o que a covid-19 faz a longo prazo. É futurologia e adivinhação através de estudos, estatísticas e correlações, não é verdade?", questiona.
Desta forma, o enfermeiro das Forças Armadas coloca as duas perspetivas na balança e chega a uma conclusão: quer ser vacinado, mas não já. "Tenho intenção de me vacinar, mas gostaria de ser mais tardiamente", diz. "Só que este desejo particular — como somos todos humanos e às vezes pomos as nossas lógicas de parte — não é lógico. Quanto mais depressa me vacinar, mais depressa todos nos vamos proteger no geral. Temos receio, como seres humanos, de coisas novas e desconhecidas. Todos nós temos cá dentro o Velho do Restelo", conclui.
Gonçalo recorda ainda que, quer em ambiente profissional, quer na vida social, o risco de um possível "surto é praticamente incalculável". "Dizemos que sim, que conseguimos fazer controlos, mas não sabemos com quantas pessoas comunicamos, se aquela pessoa desinfecta as mãos, se esteve ou não de máscara... Para evitar a cascata de disseminação — que não é estanque —, vale mais acreditarmos que não há produtos que venham ao mercado, para proteger uma comunidade, que nos venham a fazer mal".
Enquanto a vacina não chega, o enfermeiro diz que a única atitude é "não baixar a guarda" — mesmo que, por vezes, até quando assim é, seja preciso travar o curso normal dos dias.
"Quinze dias para uma vida de patologias parece-me que passa num instante"
"Já estive em contacto com vários casos, agora tive um contacto mais próximo, a nível social, e fiquei 15 dias em casa. Todos os dias, em ambiente hospitalar, os contactos existem — inclusive assintomáticos que vêm ter connosco. Cuidamos das pessoas e ainda há uns dias aconteceu. Uma senhora veio ao hospital por outras questões, outras patologias. Como ia ficar internada, porque era necessário, fez o teste e teve a surpresa, deu positivo. Tivemos de falar com toda a equipa para ver se algum de nós baixou a guarda nos equipamentos de proteção. Toda a gente foi responsável, não baixar a guarda é essencial. É extenuante? É. Fatigante, exaustivo. Mas podemos ir para casa descansados, de outra forma temos de ficar isolados da família", acentua.
Sobre a dificuldade em estar fechado em casa, não tem dúvidas. "Chato é o distanciamento às nossas rotinas e às pessoas. Mas não é chato quando nos protege a nós e às pessoas com quem nos damos e que amamos. Claro que ao fim do quinto ou sexto dia em isolamento já custa passar este deserto de solidão. Mas se nos conseguirmos focar nos ganhos, é bom. Se estiver em casa em isolamento profilático não infecto ninguém. Quinze dias passam rápido. Quinze dias para uma vida de patologias parece-me que passa num instante", diz Gonçalo Pinto.
Neste sentido, para que a pandemia tenha um fim e o isolamento termine, refere que é necessário o "controlo da covid-19 e por isso temos de arriscar um bocadinho de maneira controlada", numa alusão à vacina.
Além dos seus receios, Gonçalo diz que tem ouvido vários profissionais de saúde na mesma situação e alguns a recusar a vacinação. "Tenho ouvido muita gente que se recusa a ser vacinada. Nas nossas conversas paralelas, nas pausas para cafés, há muita gente que diz que não está interessada. Obviamente que temos direito a isto para qualquer vacinação", recorda, dizendo no entanto que "se pensarmos todos assim vamos continuar a ser portas e janelas para a disseminação e continuamos a criar surtos aqui e ali".
Vacinas obrigatórias? Um pau de dois bicos
Relativamente à questão de uma vacinação obrigatória, Andreia Leitão refere que a situação é complexa. "Isto é um pau de dois bicos: não se pode obrigar ninguém a tomar, mas também se as pessoas não a fizerem não vale a pena estar a investir numa vacina que metade da população recusa. Não vamos a lado nenhum com isto", nota.
"Não se pode pegar nas pessoas e obrigá-las [a tomar a vacina]. Não se pode levar as pessoas com uma arma apontada à cabeça e dizer 'olhe, tem que fazer'. A questão aqui passa por desmistifcar um bocadinho esta parte dos efeitos secundários, acho que é onde existe mais receio. [As pessoas] Ouvem muita coisa", diz.
"A História mostra-nos [que] a vacina vai ter aqui um papel fundamental"
Também o enfermeiro João Silva acredita que "a postura nunca poderia ser essa" [obrigar a tomar vacina]. "Vivemos num estado de direito, acredito que noutros países, com outro sistema político, mais ditatorial, isso seja feito. Mas num país ocidental, não".
Vera Malta recorda os tempos idos para projetar o futuro. "Olhando para a nossa História, o vírus do sarampo e outros vírus igualmente mortais ou com uma grande capacidade de serem contagiosos foram eliminados pela vacina. A História mostra-nos isso, portanto a vacina vai ter aqui um papel fundamental. Se assim não fosse não manteríamos um plano de vacinação. Por exemplo, há muito tempo que não vejo um caso de tétano — e o tétano mata. Está erradicado", refere.
Todavia, tornar a vacina contra a covid-19 obrigatória "não seria justo", na opinião da enfermeira. "Estamos numa democracia. Ser obrigatório não é opção, as pessoas têm de tomar uma decisão e têm de se informar. Acho que à medida que o tempo for passando as pessoas vão querer ser vacinadas. As pessoas vão querer liberdade, vão querer viajar, vão querer sair dos seus países e para isso vão ter de ter a vacina. Isso vai acabar por acontecer. Acho bem ser gratuita e facultativa. Ser obrigatória não ia resultar, as pessoas não lidam bem com imposições", reflete.
Sobre a questão da obrigatoriedade, o coordenador da ‘task-force’ criada pelo governo para gerir o plano de vacinação contra a covid-19, Francisco Ramos, defendeu no parlamento que seria "um enorme erro" tornar a vacina obrigatória para a população portuguesa.
"Esta vacinação é voluntária e acho que seria um enorme erro torná-la obrigatória. Temos 40 anos de experiência de plano de vacinação, que é uma joia de coroa do Serviço Nacional de Saúde", afirmou, relativizando as estimativas de pessoas que não querem ser vacinadas: "Quem recusar receber a vacina deve ser respeitado. Os relatórios dizem que menos de 10% da população recusa tomar a vacina e esses números são animadores".
Ouvido numa audição conjunta da Comissão de Saúde e da Comissão Eventual para o acompanhamento da aplicação das medidas de resposta à pandemia, a 16 de dezembro, o responsável da ‘task-force’ reforçou que a "confiança é essencial" neste processo e que terá de existir "clareza e facilidade na comunicação".
"Temos de ganhar a confiança das pessoas para aderirem ao processo de vacinação. Se não a ganharmos, as vacinas vão servir de pouco. Temos de ser capazes de gerir a incerteza, garantindo que a vacina é segura, que os portugueses devem aderir e que o plano está a ser preparado com toda a cautela", observou, desvalorizando a preocupação que possa existir com reações alérgicas por essa ser "uma questão habitual" na administração de vacinas.
Ao SAPO24, fonte da Ordem dos Enfermeiros refere que, tal como consta no plano de vacinação para a covid-19, "a vacina é facultativa, universal e gratuita" e que "não tem qualquer conhecimento" até ao momento de profissionais de saúde que tenham comunicado recusa em tomar a vacina nem de administrações hospitalares que tenham já referido a imposição da toma.
O que diz a lei?
Mas seria possível, em Portugal, tornar a vacina contra a covid-19 obrigatória? Miguel Prata Roque, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, explica ao SAPO24 o que está em causa.
"A obrigatoriedade exige sempre uma lei, neste caso uma lei do Parlamento, porque a Constituição determina que a restrição de qualquer direito carece sempre de lei prévia. Neste caso, eu gozo da minha liberdade de desenvolvimento da personalidade, ou seja, a Constituição garante no artigo 26 que eu posso decidir como conduzir a minha vida", começa por explicar.
"Essa liberdade é, essencialmente, uma liberdade negativa, ou seja, eu posso impedir que o Estado me imponha coisas. Eu posso impedir que o Estado me imponha usar um uniforme, posso impedir que o Estado me imponha cortar o cabelo curto porque sou homem e deixar o cabelo comprido porque sou mulher. Ou seja, essa liberdade de desenvolvimento da personalidade pressupõe que eu tenho toda a liberdade para conduzir a minha vida como bem entendo, desde que isso não implique a prática de um crime, de lesão de bens a terceiros", exemplifica o jurista.
"Desse ponto de vista, a Constituição, no artigo 18 n.º 3, diz que a restrição de direitos fundamentais só pode ser feita por via de lei. Neste caso, a Constituição até diz que só a Assembleia pode legislar sobre direitos, liberdades e garantias. Portanto, das duas uma: ou é a Assembleia da República que legisla, ou é o governo que pede uma autorização legislativa para poder legislar por decreto de lei", explica.
"A lei pode restringir direitos mas tem de restringir direitos em respeito pela Constituição"
Assim, no que toca à vacina, "não pode ser a DGS" a tomar uma decisão — "para que fosse obrigatória teria de haver uma lei, aprovada pelo Parlamento, a determinar que todos são obrigados a ser vacinados", assegura Miguel Prata Roque.
Por outro lado, também não é possível, segundo o professor, "estabelecer restrições a outros direitos se a pessoa não se vacinar", como por exemplo "impedir a pessoa de receber subsídio de desemprego ou impedir a pessoa de aceder aos serviços públicos de saúde. Todas essas restrições são restrições que carecem sempre de previsão legal", aponta.
E no que diz respeito ao trabalho? Os patrões podem impedir os empregados de trabalhar por decidirem não ser vacinados? Miguel Prata Roque explica que tal "não é absolutamente impossível" — mas o caso é complexo.
"O direito à liberdade de desenvolvimento da personalidade também pode ser alvo de restrições para a defesa de outros direitos. Aí, tínhamos depois de aplicar o chamado princípio da proporcionalidade, que diz que quando existem dois direitos em confronto, não podemos optar por um deles excluindo completamente o outro, ou seja, não posso dizer que a liberdade de desenvolvimento da personalidade dos médicos e enfermeiros é tão importante que não interessa para nada a saúde pública, não interessa para nada a vida dos doentes que contactam com eles e a saúde dos doentes", começa por explicar.
"Eu não posso dizer isso no plano do direito constitucional e, portanto, é possível impor restrições aos médicos. Ao cidadão comum já me parece mais difícil, mas a determinadas profissões, como professores — ainda que ache mais duvidoso —, médicos, pessoas das forças de segurança, parece-me eventualmente aceitável impor-se essa vacinação obrigatória", diz.
Mesmo assim, Miguel Prata Roque deixa um alerta: "quando eu digo vacinação obrigatória não é agarrarem no funcionário e espetarem-lhe uma vacina no braço. Felizmente ainda vivemos num estado de direito democrático", aponta, acrescentando que "a lei pode restringir direitos, mas tem de restringir direitos em respeito pela Constituição, o que quer dizer que essa lei que determine a vacinação obrigatória pode ser entendida como inconstitucional".
Todavia, a situação não é fácil, uma vez que "em Portugal, e nos sistemas de direito constitucional europeu, não existem fundamentais mais importantes do que outros ou absolutos".
"Todos eles podem ser restringidos, não podem é ser completamente eliminados. Portanto, teríamos de ver se no confronto entre a saúde pública, o risco para a vida, o risco para a integridade física e saúde dos outros, se justifica restringir a liberdade de desenvolvimento da personalidade", reforça o professor da Faculdade de Direito de Lisboa, lembrando que "este processo de validação mundial da vacina foi um processo muito acelerado", o que pode levar a algumas questões.
Miguel Prata Roque refere ainda que "do ponto de vista da lei é essencialmente uma decisão política, mas é uma decisão que tem de respeitar a Constituição".
"Pessoalmente, não enquanto jurista, mas enquanto cidadão, não seria favorável à vacinação obrigatória", embora seja possível "chegar a uma circunstância em que o nível de vacinação é tão baixo que não conduz à dita imunidade de grupo" — o que pode ser um problema para ultrapassar a pandemia, reconhece.
Desta forma, será que a vacinação obrigatória é necessária para proteger outro direito, neste caso a saúde pública? Admitindo que sim, vejamos o que está em causa.
"Vamos admitir que a vacina de facto tem 95% de possibilidades de ser eficaz. Imaginemos que de facto a tomada da vacina vem reduzir a propagação da doença — então parece que ela é necessária", começa por explicar, frisando que depois seria necessário ver se a medida é adequada, "o que significa que eu tenho de verificar se a restrição do direito promove o outro direito que nós queremos proteger".
Mas as perguntas não ficam por aqui. "Será que a tomada da vacina tem o mesmo efeito ou um efeito superior às outras medidas alternativas que eu posso adotar? E aí é que começa a ser mais duvidoso", diz o jurista.
"Se continuarmos a tomar medidas de distanciamento social, medidas de higiene pessoa e ética respiratória, eventualmente o efeito seria um efeito idêntico ao da vacina, porque, não tenhamos ilusões, a toma da vacina numa fase inicial — e se calhar durante alguns anos —, não vai erradicar a doença. Ela continuará em circulação, vai é diminuir, obviamente, a pressão sobre os hospitais públicos. Mas vamos admitir então que a medida é adequada. Eu depois ainda tinha que provar se a medida é a menos restritiva possível e se ela acautela suficientemente os outros direitos em presença; aqui é que eu tenho mais dúvidas", remata.
Em conclusão, o professor refere que "há determinadas categorias profissionais e etárias para as quais talvez não seja inconstitucional a vacinação obrigatória", mas percebe o porquê de isso não ter sido equacionado até ao momento.
"Eu percebo que o governo português e que a Assembleia da República não tenham imposto a vacinação obrigatória porque de facto é difícil justificar uma vacinação obrigatória universal. Para profissionais de saúde talvez seja tolerável, para funcionários de lares de idosos também me parece que talvez seja tolerável. Vacinação de professores que lidam com menores de 18 anos parece-me pouco tolerável, porque a taxa de incidência é tão reduzida que tornar obrigatória não me parece aceitável. Mesmo a vacinação obrigatória de professores e funcionários de universidades e institutos politécnicos também me parece difícil, ainda que apesar de a maioria da população ser jovem haja alunos maiores de 23, com 40, 50 ou 60 anos. Aí teria de se pensar se era preferível impor a vacinação obrigatória ou se se devia garantir o ensino não presencial a alunos com mais de 60 anos, por exemplo. Se calhar, como são poucos, talvez fizesse sentido. Ou seja, a decisão legislativa tem de ser sempre uma decisão ponderada. Temos de tentar afinar a medida para ser o menos lesiva possível", diz.
No fim de contas, "qualquer vacinação obrigatória corresponde sempre a uma limitação de direitos". E contra a covid-19 não seria diferente.
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