As medidas restritivas de confinamento impostas em Wuhan, onde foram detetados os primeiros casos do « coronavírus, no final de 2019, serviram como guia para a política ‘zero covid’, que ao longo de três anos ditou a testagem em massa de centenas de milhões de pessoas e bloqueios altamente restritivos de cidades inteiras, marcados pela escassez de alimentos, violência ou isolamento de casos positivos em condições degradantes.

No dia a dia na China, há objetos que remetem para os tempos da pandemia: contentores abandonados em esquinas de Pequim, onde outrora milhares de pessoas acorriam diariamente para fazer o teste PCR obrigatório ou frascos de gel desinfetante à entrada dos estabelecimentos.

“Foi traumático”, observou à Lusa uma sul-coreana radicada em Pequim. “Quando sabes que a qualquer momento podes ser trancada em casa por tempo indeterminado ou arrastada para um local desconhecido perdes qualquer sensação de segurança”, descreveu.

A sucessão de tragédias e casos de abuso da autoridade acabaram por resultar em protestos que se alastraram por várias cidades chinesas no final de 2022, após um incêndio mortal, num prédio na cidade de Urumqi, no noroeste da China.

Imagens difundidas nas redes sociais mostraram que o camião dos bombeiros não conseguiu entrar no bairro, já que o portão de acesso estava trancado, e que os moradores também não conseguiram escapar do prédio. A porta estava bloqueada devido às medidas de prevenção epidémica.

Pequim optou então pelo fim abrupto das medidas restritivas, sem estratégia de mitigação, deixando famílias a lutar pela sobrevivência dos mais idosos, à medida que uma vaga de infeções inundou os hospitais e crematórios do país.

O epidemiologista Ben Cowling, da Universidade de Hong Kong, estima que cerca de 90% das pessoas na China ficaram infetadas com o coronavírus nas semanas após o levantamento das restrições.

“Para quem recebeu duas ou três doses da vacina, as infeções foram, no geral, muito ligeiras. Mas para pessoas não vacinadas, especialmente alguns idosos na China, as infeções foram um pouco mais graves”, afirmou Cowling à agência Lusa.

“Os meus colegas e eu calculamos cerca de 1,5 milhões de mortes em todo o país. Outras estimativas são ligeiramente inferiores, outras ligeiramente superiores”, descreveu.

Cinco anos depois, as referências às origens da covid-19 e à política ‘zero covid’ desapareceram da imprensa ou redes sociais do país.

O Partido Comunista Chinês (PCC), que inicialmente usou a estratégia ‘zero covid’ como fonte de legitimidade, manteve-se em silêncio sobre as consequências do surto. Os números oficiais da mortalidade são desconhecidos.

Após o levantamento das restrições, o PCC defendeu que a forma como lidou com a pandemia criou um “milagre na História da humanidade” e que os seus esforços levaram a China a uma “vitória decisiva” sobre o vírus.

“O Partido apostou no facto de que, se apenas enfatizar as evidências positivas, de alguma forma, após vários anos, as pessoas esquecerão o que se passou”, escreveu Willy Lam, analista da política chinesa.

Muitas pessoas com infeção por covid-19 continuam também a ser tratadas nos hospitais, segundo Cowling, que estimou que ainda há mais pessoas a precisar de ser hospitalizadas com infeções por covid-19 do que com gripe.

Os efeitos da política persistem sobretudo nos dados económicos, incluindo níveis recorde de desemprego jovem, débil consumo interno e uma prolongada crise no setor imobiliário, que geraram riscos deflacionários na segunda maior economia mundial. Isto reflete a perda de confiança entre investidores e as famílias, segundo analistas.

A empresária chinesa Chen Tong, que “nunca quis saber de política”, até o governo fechar os seus negócios e bloquear com chapas metálicas o prédio onde vive, decidiu emigrar para a Austrália.

“Os excessos, o controlo absoluto que o governo assumiu sobre a minha vida fizeram-me compreender: a política é importante”, explicou Chen, natural da província de Sichuan e dona de várias lojas de confeção de vestidos por medida, à Lusa.

“A confiança perdeu-se”, disse.

Cinco anos depois é “mais um vírus”, mas OMS continua alerta

Cinco anos depois dos primeiros casos de covid-19, que levaram à pior pandemia num século, a doença já não é vista como uma ameaça, mas continua a matar e a manter em alerta instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Em 2024, a agência da ONU foi notificada de três milhões de casos em todo o mundo, muito longe dos 445 milhões registados em 2022, o ano com mais casos notificados, segundo dados divulgados pela EFE.

Em 2024, morreram cerca de 70.000 pessoas, 50 vezes menos do que os 3,52 milhões de mortes contabilizadas em 2021, o ano mais mortífero, de acordo com os números oficiais.

O vírus SARS-CoV-2 transformou-se, graças às vacinas e à sua evolução para variantes mais contagiosas, mas menos letais, para um agente patogénico comparável à gripe: uma doença que na maioria dos casos causa sintomas ligeiros ou moderados, embora ainda possa ser perigosa para os idosos e outros grupos vulneráveis.

“Já não se ouve falar de covid, mas o vírus continua a circular amplamente em todo o mundo. Não há muita visibilidade porque já não há tantos testes, a vigilância foi reduzida”, de acordo com a especialista da OMS Maria Van Kerkhove, que tem liderado a resposta da agência à doença desde 2020.

A OMS estima, através de testes em águas residenciais em diferentes países, que a circulação real do vírus pode ser até 20 vezes superior à estimada oficialmente. E está preocupada com a persistência da chamada “covid longa”, que, segundo as suas estimativas, afeta seis por cento dos casos graves após a recuperação.

“Afeta múltiplos órgãos, do coração aos pulmões, ao cérebro ou pode mesmo ter consequências para a saúde mental”, sublinhou o especialista americano numa conversa recente no canal de YouTube da OMS para analisar cinco anos da doença.

Os primeiros casos do que viria a ser conhecido como covid-19 foram identificados em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, no centro da China, e foram reportados à OMS no dia 31 desse mês.

Em 05 de janeiro de 2020, a agência emitiu o seu primeiro alerta para o que então designou por “pneumonia de origem desconhecida detetada na China”. Em 30 de janeiro, declarou um alerta internacional para a doença, em 11 de fevereiro foi batizada de “covid-19” e, em 11 de março, foi declarada oficialmente uma pandemia.

“Lembro-me da primeira conferência de imprensa que dei sobre o assunto, a 14 de janeiro, e pensei que nunca mais ia participar noutra”, recorda Van Kerkhove, que deu centenas de palestras sobre o tema durante três anos, ao lado do chefe de emergência da OMS, Mike Ryan.

A OMS continua a recomendar que as pessoas com mais de 65 anos e outros grupos vulneráveis sejam vacinadas regularmente para evitar formas graves da doença que levem à hospitalização: atualmente, a vacina baseia-se principalmente na subvariante JN.1, a mais difundida atualmente e ‘descendente’ da variante omicron.

A OMS pede, sempre que tem oportunidade, que ninguém esqueça um vírus que afetou quase toda a população do planeta.

Acima de tudo, a OMS pretende que a memória seja o motor de um tratado contra as pandemias, em negociação há quase três anos. O objetivo é preparar todos os países para futuros agentes com potencial pandémico, sejam eles novos coronavírus, a temida gripe das aves (muito letal, mas não transmissível entre humanos) ou outro agente desconhecido, apelidado de “doença X”.

Este ano, a OMS não conseguiu que o tratado fosse assinado na sua assembleia de junho, pelo que as negociações prosseguem, dificultadas sobretudo pela falta de consenso entre os países sobre questões como a comercialização e distribuição de vacinas, tratamentos e testes de diagnóstico em caso de pandemia.

“As pessoas querem atirar a covid para o passado, fingir que nunca aconteceu porque foi traumático, mas isso impede que nos preparemos para o futuro”, alerta Van Kerkhove.

Os números oficiais da OMS indicam que desde o final de 2019 se registaram 777 milhões de casos e sete milhões de mortes por covid-19, embora a própria agência da ONU reconheça que o número de mortes pode ser até três vezes superior e ultrapassar os 20 milhões.

Desde 01 de março de 2020, quando foram notificados os primeiros casos, Portugal registou mais de 5,6 milhões de casos de infeção pelo vírus SARS-CoV-2 e mais de 26 mil mortes associadas à covid-19.

*Por João Pimenta, da agência Lusa