Quando em agosto de 2019 foi publicado o despacho do Governo que estabelecia as medidas que, dali para a frente, as escolas teriam de adotar no âmbito da autodeterminação da identidade de género, o debate foi aceso e o mesmo documento mereceu, de diferentes partes, rasgados elogios e profunda contestação.
Passados quase dois anos, o tema voltou a ser notícia depois de o Tribunal Constitucional (TC) ter “chumbado” a regulação pelo Governo da autodeterminação da identidade de género nas escolas, por considerar que a matéria é competência exclusiva da Assembleia da República.
A decisão deixa agora as escolas numa espécie de vazio legal, que tem preocupado alguns partidos e associações, ainda que, na prática, o mais provável é nem haver mudanças.
Quem o diz são os próprios representantes dos diretores, que relativizaram o impacto do despacho, sublinhando que as escolas já antes eram sensíveis e continuarão a ser, com ou sem regulamentação.
“Nada do que a escola já fazia foi preciso alterar, genericamente. Era uma não questão, porque, na altura, os problemas nessa área já eram tratados com todo o cuidado, garantindo os direitos dos jovens”, disse à agência Lusa o presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE).
Recuando até 2019, Manuel Pereira considera que a grande maioria das escolas já olhava para as questões de identidade de género com uma sensibilidade que, acima de tudo, priorizava o bem-estar dos alunos e, por isso, as medidas previstas no despacho já faziam parte da sua realidade.
Esta perceção é partilhada por Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), que também desvalorizou o potencial impacto da decisão do TC.
“Nós continuaremos a fazer aquilo que fazemos diariamente, a sensibilizar e fazer com que as crianças e os jovens se sintam bem”, assegurou, acrescentando que “as escolas continuam a querer saber deste tipo de situações e resolvem-nas muito bem”.
Do lado das famílias, não é o compromisso das escolas e dos professores que está em causa, mas a necessidade de uma rede de segurança para que não haja sequer margem para dar passos atrás.
“Se calhar não vai haver problema, porque as escolas já estão habituadas, mas precisamos de ter segurança”, frisou Manuela Ferreira, presidente da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (Amplos).
Falando em representação das famílias de pessoas LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexo), Manuela Ferreira considerou que a lei da autodeterminação da identidade de género e, em particular, o despacho referente às escolas foi fundamental.
“Foi uma coisa simplesmente maravilhosa, porque até haver aquele despacho, vivia-se um bocadinho ao sabor das escolas”, referiu, reconhecendo que na altura alguns estabelecimentos já estavam em linha com as novas regras, mas noutros essa realidade era distante.
Para a presidente da Amplos, a possibilidade de as crianças e dos jovens poderem começar a fazer a sua transição social num contexto tão central como o escolar tem um grande impacto no seu desenvolvimento e é importante isso estar previsto na lei.
Com a entrada em vigor do despacho do Governo, entre outras medidas, as escolas teriam de passar a assegurar “condições de proteção da identidade de género e de expressão” e, neste âmbito, os alunos seriam reconhecidos conforme a sua identidade autoatribuída (nome e género) e poderiam, por exemplo, escolher utilizar as casas de banho e balneários de acordo com a opção com que se identificam.
“A partir daquele momento, os meninos e as meninas começaram a ser tratados pelos nomes que escolheram. Havia todo um reconhecimento da sua própria identidade, o que era fundamental”, sublinhou Manuela Ferreira.
No entanto, em 29 de junho, o TC anunciou a decisão de declarar inconstitucionais as normas da lei da autodeterminação de género relativas à regulação em contexto escolar, sem se pronunciar sobre a substância das mesmas.
Agora, cabe à Assembleia da República legislar sobre o tema e várias associações já pediram que o fizesse “com caráter de urgência”, entre as quais a Amplos e também a ILGA Portugal, que defende que as escolas não podem voltar a ser deixadas no mesmo “vazio” que até 2019 se traduzia numa “realidade caótica”.
Até essa altura, recordou Ana Aresta, presidente da ILGA Portugal, “a proteção destas crianças dependia da sensibilidade e da vontade da escola em querer ajudar, mesmo não havendo uma lei que as protegesse nas tomadas de decisão”.
“Nós sabemos e sentimos que a maioria das escolas são aliadas e que irão continuar a aplicar boas práticas, mas o enquadramento legal é sempre necessário para proteger as crianças e jovens em contextos em que estas práticas de igualdade não estejam a ser aplicadas”, acrescentou, considerando que, a longo prazo, a existência de uma regulamentação também contribui para a mudança de mentalidade.
Da parte dos partidos políticos, até agora só o PAN entregou um projeto de lei na Assembleia da República, no qual propõe alterar a lei do direito à autodeterminação da identidade de género, para que o parlamento garanta “a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas”.
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