Artur Manuel Rodrigues do Cruzeiro Seixas, nascido na Amadora, em 3 de dezembro de 1920, era o último dos surrealistas portugueses, o movimento liderado por Mário Cesariny (1923-2006), no final dos anos 1940.

"Perfiz uma obra que não é genial. É um depoimento", afirmou Cruzeiro Seixas, numa entrevista à agência Lusa, em 2011, em vésperas de completar 91 anos. "Reuni uma das melhores coleções de arte em Portugal. E fiz uns disparates", acrescentou, em jeito de balanço.

No documentário "As Cartas de Rei Artur", sobre o artista, concluído pela realizadora Cláudia Rita Oliveira, cinco anos mais tarde, afirmou: "Da minha vida nada vai ficar de definitivo. Não vivi, mas deixarei documentos desse não viver".

O artista plástico Artur do Cruzeiro Seixas morreu no domingo, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, revelou a Fundação Cupertino de Miranda.

Cruzeiro Seixas estudou na Escola António Arroio, em Lisboa, e ainda passou por uma fase de expressão neorrealista, mas no final dos anos 1940 começou a participar nas atividades dos surrealistas com Cesariny, com quem iniciou uma grande amizade e estabeleceu uma relação que o marcaria. Deu-se então "aquilo" a que Cruzeiro Seixas chamou "o milagre", na entrevista à Lusa, em 2011.

"Descobri a minha personalidade. Ele [Cesariny] abriu-me estas portas. Era um poeta a sério, um intelectual, uma pessoa extraordinária e apaixonante", recordou.

No mesmo grupo estavam António Maria Lisboa, Mário Henrique-Leiria, Pedro Oom, Risques Pereira, Fernando Alves dos Santos, Carlos Calvet, entre outros.

Foi André Breton, escritor francês, que publicou em 1924 o Manifesto do Surrealismo, responsável pelo lançamento do movimento, estabelecendo os princípios que influenciaram muitos artistas a nível mundial, e que passavam pela adoção de uma realidade superior, a recusa do controlo da lógica, da razão, da moral e da estética dominantes, na criação artística.

"O mundo artístico é hoje muito pobre comparado com o momento extraordinário de reinvenção que se viveu durante o período surrealista em Portugal, nos anos 1940 e 1950", disse Cruzeiro Seixas à Lusa em 2011.

"Nós reinventámos o surrealismo no tempo [da ditadura] do Salazar, quando não existia nada em Portugal. A fome era tão grande e não havia livros. Não chegava cá nada. Mas nós íamos reinventando. Havia ideias extraordinárias, sobretudo no campo da pintura", recordou o artista plástico, numa outra entrevista, em 2008.

"Hoje acha-se o mundo muito pobre, porque não há nada que se compare a um período em que tínhamos necessidade de inventar qualquer coisa", sublinhou ainda Cruzeiro Seixas, insistindo no caráter revolucionário do surrealismo. Nada o superara desde então, garantiu. "Estamos todos desesperados à procura de uma ideia nova".

Para o artista, o mais importante foi sempre "o desejo de liberdade".

Embora entusiasmado pela atividade artística em Portugal, na viragem da década de 1940 para a seguinte, Cruzeiro Seixas partiu para África em 1950, com o desejo de conhecer o continente, alistando-se na marinha mercante.

Viajou pela Índia e pelo extremo Oriente, fixando-se em Angola, em 1952, onde realizou várias exposições que marcaram profundamente a sociedade da época.

De regresso a Portugal, em 1964, recebeu uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e, em 1967, fez uma retrospetiva na Galeria Buchholz, em Lisboa, e uma exposição com Mário Cesariny, no Porto.

Entre 1968 e 1974 dirigiu a Galeria São Mamede, na capital portuguesa, e, de 1976 a 1983, a Galeria da Junta de Turismo do Estoril, assim como a Galeria de Vilamoura, no Algarve, de 1985 a 1988.

Realizou cenários para a Companhia Nacional de Bailado e para o antigo Ballet Gulbenkian.

Participou em exposições coletivas em França, no Brasil, na Bélgica, nos Estados Unidos, no Reino Unido, em Espanha, na Alemanha e no México.

Em 1999, doou a totalidade da sua coleção à Fundação Cupertino de Miranda, de Vila Nova de Famalicão, para a constituição do Centro de Estudos do Surrealismo e do Museu do Surrealismo, entretanto criados, existindo hoje o Espaço Cruzeiro Seixas, na Fundação, com uma exposição permanente dedicada ao artista.

Cruzeiro Seixas está representado em coleções públicas e particulares e em museus privados e nacionais, nomeadamente na Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado e na Biblioteca Nacional, em Lisboa, no Museu Machado de Castro, em Coimbra, na Biblioteca de Tomar e Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, entre outras instituições

A estreia do documentário “As Cartas do Rei Artur”, de Cláudia Rita Oliveira, em 2016, o terceiro filme dedicado ao artista plástico, sucedeu-se a “N.O.M.A – Cruzeiro Seixas” (2006), de Carlos Cabral Nunes, e ainda a “Cruzeiro Seixas: O Vício da Liberdade” (2010), de Alberto Serra e Ricardo Espírito Santo.

"As Cartas do rei Artur" resultam de entrevistas a Cruzeiro Seixas, que se cruzam com imagens da sua pintura, dos seus objetos, dos cadernos de anotações e desenhos do autor, num conjunto de testemunhos dos quais emerge, em particular, a relação com Mário Cesariny, que se estendeu por várias décadas, marcada pela amizade, pela paixão e pela rutura.

O filme aborda a homossexualidade de ambos, e a relação de Cruzeiro Seixas com a arte, com a forma de viver de Mário Cesariny e com África, da qual disse ter sido o grande amor de vida.

"Um dos meus suicídios foi em 1975, quando cortei relações com Cesariny", garantiu no filme.

Nas "Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas", que a Sistema Solar editou em 2016, abrangendo o longo período que vai de agosto de 1941 a dezembro de 1975, é testemunhada a "viagem interior", as "confissões do lado de lá da barricada", as "reflexões, iluminações, relâmpagos, faíscas que nos falam do amor consumado e fugidio e dos sucessivos objetos do desejo", como descreveu então o investigador Perfecto E. Cuadrado, organizador da obra.

A Cruzeiro Seixas dedicou Mário Cesariny alguns dos seus poemas. Mas o artista e a sua obra foi também inspiração para autores como Herberto Helder, Alfredo Margarido, José Pierre, Juan Carlos Valera, Bernardo Pinto de Almeida, Albano Martins, António Barahona, entre outros.

Em 2012, Cruzeiro Seixas foi homenageado pela Feira Internacional do Livro de Santiago do Chile (FILSA), que lhe dedicou um número exclusivo da revista "Derrame", do grupo surrealista chileno. No mesmo ano, recebeu a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores.

Em 2017, a Bienal de Arte de Vila Nova de Cerveira comemorou os seus 40 anos de existência com uma homenagem ao artista.

Um ano depois, foi Centro Português de Serigrafia, em Lisboa, a recordar o seu percurso, com uma exposição e a edição de um livro com a obra gráfica, a que se seguiria, em 2019, o álbum “Diário não Diário”, com "toda a sua dimensão criativa”.

Entre as suas últimas exposições de Cruzeiro Seixas estão “Colaborativa.mente”, com Valter Hugo Mãe, na Casa da Liberdade - Mário Cesariny, em Lisboa, em 2018, e "Nos Labirintos que Inventei", no Museu do Côa, em 2019.

Em junho do ano passado, associou-se ainda ao lançamento das obras completas de Mário Henrique-Leiria, editadas pela E-Primatur.

No passado mês de setembro, a Perve Galeria, em Lisboa, inaugurou um tributo a Cruzeiro Seixas, para assinalar o centenário do artista.

Pouco depois, em outubro, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, entregou a Cruzeiro Seixas a Medalha de Mérito Cultural, como "reconhecimento institucional, mas também como reconhecimento pessoal de alguém que se junta aos muitos que o admiram e que em si encontram um olhar que sempre viu mais longe e mais profundo”.

A entrega realizou-se na Biblioteca nacional de Portugal, que tem patente, até 31 de dezembro, a exposição “O Tempo das Imagens III”, realizada no âmbito do 35.º aniversário do Centro Português de Serigrafia (CPS), que inclui uma sala totalmente dedicada à obra de Cruzeiro Seixas.

Em junho deste ano, foi editado o primeiro de quatro volumes da “Obra Poética”, de Cruzeiro Seixas, no âmbito da coleção "Elogio da Sombra", coordenada por Valter Hugo Mãe, para a Porto Editora, numa recolha organizada pela poetisa e escultora Isabel Meyrelles, outro nome do surrealismo português.

Os três primeiros volumes da obra poética de Cruzeiro Seixas reúnem poemas já publicados, nomeadamente pelas Edições Quási, mas que se encontravam esgotados no mercado, e o quarto, que encerrará o projeto, colige inéditos e dispersos, disse à agência Lusa fonte da editora. O 2.º volume deve chegar à livrarias no final do ano e, o terceiro, “nos inícios de 2021”.

"O pior disparate do mundo de hoje - e Portugal ressente-se muito disso - é as pessoas pensarem que a vida intelectual, a arte, a cultura, são coisas subsidiárias e devem ficar em segundo plano", criticou Cruzeiro Seixas, em entrevista à Lusa, em 2011.